Há algumas crónicas atrás, falei da minha saga com os mecânicos. Os espíritos mais elevados perceberam a minha análise das pessoas que realmente mandam neste território. Sim, a ideia de que são os governantes que mandam é muito relativa. É por saber isso mesmo que a maior parte das pessoas não vai votar (vide nível de abstenção em quase todas as últimas eleições, sejam elas municipais, presidenciais ou o que forem). Quem realmente manda são aquelas pessoas que têm determinados poderes que nós, tristes seres que ficamos embasbacados a olhar para eles e a pedir “por favor não me arranja isto até ao meio-dia?”, nós não temos. Essas pessoas realmente poderosas estão inteiramente conscientes de que têm o resto do mundo na mão. Há um risozinho de triunfo na maneira como nos olham de lado, um esgar ligeiramente superior no modo como ajeitam os óculos e fungam antes de dizerem “por acaso, não vai ser possível”. Por acaso. Reparem no pormenor. Se tivessem acordado bem dispostos, talvez até tivessemos sorte.
Entre estas pessoas realmente poderosas da nossa sociedade contam-se os senhores das Finanças, as meninas das companhias aéreas (porque é que são quase sempre mulheres? é requisito preferencial?), os técnicos de informática, o pessoal das companhias de telemóveis, os polícias de trânsito e demais fauna policial, os porteiros das discotecas e os taxistas. Isto só para referir alguns. Há uma data de etcetera, mas não vamos agora meter-nos a fundo nisto, até chegar aos médicos e aos padres, por exemplo (ui, aí é que tinha mesmo piada!). Desiludam-se os advogados, porque já lá vai o tempo em que mandavam alguma coisa. Agora, na generalidade, falta-vos engenho.
Se julgam que estou a brincar, pensem na maior parte dos vossos dias. Imaginemos um dia normal: um tipo chega ao trabalho e os computadores não funcionam. O técnico de informática diz:”epá, não sei o que se passa!”. Seguindo o bom e velho esquema da tuguice, fica tudo a bezerrar até que ele resolva o assunto, porque, enfim, não há computadores (como é que se trabalhava há dez anos é um mistério para todos, incluindo para a Maria que não sabia trabalhar com computadores há dois anos!). O técnico decide que, uma vez que o pessoal está todo dependente dele, bem que pode ir tomar um café ou dois. Raras vezes se tem uma tal sensação de poder, caraças.
Entretanto, telefona o senhor da TMN (da Vodafone, se quiserem). Como telefonam sempre de um número que a gente não descodifica nem à lei da bala, acabamos por atender. Erro. Depois de um questionário sobre mil serviços que nunca utilizámos, “oh senhor, eu estou com pressa!”, ele quer vender-nos um pacote muito interessante a preço super para “si, cliente especial”. Mas eu agora não posso atender. Volto a telefonar ao atendimento de clientes no dia a seguir, quando tenho tempo, mas a treta da promoção de um telefone por metade do preço e mensagens grátis era só ontem. Pffff! Mas volte sempre, “até já” (dou um bombom a quem me explicar porque é que se despedem sempre com “até já”; eu não estou interessada em voltar a ouvi-los já).
Depois, vamos a correr tratar da nossa vidinha. Somos apanhados pela polícia porque íamos chocando de frente com a viatura policial. “A senhora estava distraída?”(Os polícias, amavelmente, perguntam sempre. Pode dar-se o caso de eu querer mesmo chocar contra o carro deles e desfazê-los, suicidando-me em grande estilo também). Explico toda a minha vida, o porquê de estar com pressa e da minha distracção. O polícia exclama“Ahhhhh!” compreensivamente. Chama o colega (andam sempre aos pares, como na TV) e eu explico tudo outra vez. São amáveis, gentis, cavalheiros. Levo com multa. Perdi 40 minutos. Detesto fardas.
Lá consigo chegar às Finanças. Depois de duas horas e meia de espera, contribuindo para que me rebentem as veias das pernas e algum aneurisma, a senhora, com uma boa disposição só comparável à de uma mosca ao ver o frasco de DumDum, diz-me que faltam os documentos X e Y. “Porque é que não me avisou quando estive cá ontem? É que assim já vou ter de pagar multa, porque o prazo é hoje!” A senhora diz que eu me devo ter esquecido. Sim, eu estou interessada em dar ao Estado mais 100 euros de minha livre e legítima vontade. Sim, sim, devemos dizer sempre que sim porque nunca se sabe quanto mais se podem irritar... e quem paga a frustração é a nossa carteira.
Depois, apanhamos um táxi a correr para ir para o aeroporto. O taxista cobra-nos mais não sei quanto pela bagagem, e mais não sei quanto porque é de tarde e mais não sei quanto porque temos um animal dentro de uma caixa. Vai a pisar ovos e eu com pressa. Relata-nos as agruras do Benfica, enquanto a rádio toca a Ruth Marlene em altos berros e a rádio táxi vai guinchando de vez em quando.”É um problema isto do Scolari”. Na verdade, o maior problema para mim, neste momento, é a Ruth Marlene.
Ruth Marlene devia ser o nome da menina da companhia aérea. Não era mas ficar-lhe-ia bem. Há um erro de sistema. Ok. Já consegue entrar no sistema. Fixe. Não consegue encontrar um passageiro chamado Cook. Interrogo-me se é a primeira vez que ela faz isto. Já encontrou. Não sabe fazer não sei o quê que me escapa. Chama a colega (também andam sempre aos pares, curiosamente, mas no caso presente, graças aos céus). Não sabe o que fazer com o gatinho. Explico-lhe (como se fosse minha função saber, mas enfim...) Lá consigo ter um talão de excesso para o bicho e um de embarque para mim – era giro se fosse ao contrário, não era?!
Já noutro local, decido ir espairecer deste dia. À porta da bendita da discoteca, o porteiro diz-me que não posso entrar porque estou de ténis. “Devia vir de salto alto?” Ele responde que não deixam entrar pessoas de ténis e ponto final. E não há volta a dar. Viro costas e cara alegre, que isto é só para moças com ar de quem trabalha na Côte d’Azur.
Gostaria de finalizar esta crónica, assegurando a todos que adoro a Humanidade. Mais ou menos como a Madre Teresa a adorava e o Dalai Lama a adora. Isto é: quanto mais se puder fazer por ela, melhor. E quanto mais longe se estiver dela, melhor ainda.