Este Verão, fomos – eu e a minha família - a Istambul. Teria sido uma viagem como outras se não nos tivesse marcado tanto. Em artigos que escrevi para o AO, onde mantenho uma coluna, falei, na época, dessa viagem - de como foi poderoso estar nos sítios das mesquitas reservados apenas às mulheres, de como o meu filho me ensinou mais sobre como comunicação com outros povos do que quaisquer academias (e até da barbaridade que é os fraldários do aeroporto de Lisboa estarem dentro dos wc femininos porque não tenho de ser obrigatoriamente eu a limpar o rabinho da criança, perdoem-me este aparte).
Mas, na verdade, quando regressei, lembrei-me de Sarah Mousavi, uma ex-aluna minha que usava um véu na cabeça. Era muito comum no Canadá haver uma enorme diversidade cultural, mas a Sarah foi a única muçulmana que ensinei que fazia questão de tapar os cabelos com um véu e as coxas com roupas largas. Embora a Sarah fosse bem aceite por todos, havia, ocasionalmente, algumas piadas menos simpáticas e imagino que, fora das aulas, a coisa se incendiava muito mais. A certa altura, por obrigatoriedade disciplinar, os alunos tiveram de escrever um texto sobre tradições culturais e este foi o texto da Sarah que - corrigido por mim é certo - segue aqui, para vossa reflexão. Acredito que toda a literatura deve acordar-nos e abrir-nos os olhos para o real, como se nos desse uma marretada na cabeça. Portanto, o que a Sarah escreveu, nesta óptica, é literatura.
Antes de o transcrever, tenho de agradecer às centenas de alunos de tantos países que tive ao longo dos anos. Não sei quem mais aprendeu, se eu, se eles…
“Uso um véu nos cabelos e interrogo-me porque é que os meus colegas pensam que isso me faz estar presa a seja o que for. Este uso é uma escolha minha, pessoal, ainda que condicionada pela minha cultura. Mas não é verdade que todos eles estão condicionados pelas suas culturas? Não é verdade que todos eles estão agarrados a conceitos que trazem do que lhes ensinaram os pais, os avós e até do que lhes disseram os amigos e vizinhos? Os meus pais não me obrigaram a usar hijab. Educaram-me dentro da filosofia da religião islâmica, é certo, mas eu podia ser islâmica e não usar nenhuma espécie de véus, se quisesse. Sinto-me bem como estou e, sobretudo, como sou.
O que sabem vocês do Islão? Provavelmente tanto ou menos do que eu sei do Cristianismo, do Judaísmo, do Hinduísmo. É fácil criticar quando somos ignorantes acerca de algo. Dizem-me “oh Sarah, como podes andar de burka?!” Mas eu não uso uma burka, uso um hijab. Há muitas formas de véus, desde a abaya (aqueles véus negros que tapam as mulheres completamente, só lhes deixando os olhos à vista) e muitas tradições de os usar. Aliás, hijab é também a palavra que usamos para definir a forma de vestir das mulheres muçulmanas.
O meu propósito ao escrever este texto, porém, é outro. Gostava de fazer uma observação: todas vocês, minhas colegas e algumas até minhas amigas, usam burkas e não sabem. São burkas invísiveis e, por isso, são mais poderosas ainda. Algumas até usam abayas: estão tão tapadas que apenas os vossos olhos se vêem e, quando olhamos para vocês, baixam-nos, envergonhadas de terem abdicado da vossa liberdade. Não têm mãos livres e a vossa cara está presa em negros véus. Eu sou um passarinho que voa em eterna Primavera perto das vossas gaiolas de grades douradas, por comparação. E sabem porquê?
Vocês dizem-se livres e emancipadas, por serem mulheres estudantes. Isso também eu sou. A minha liberdade é a mesma – participo em todas as actividades, desportivas e culturais. Mas, ao contrário de vocês, eu não sofro de dupla personalidade. Não tenho de fazer o papel de leoa que dá nas vistas quando está na Universidade e no café, soltando urros para se fazer mais notada e caçando para alimentar o leão (sim, o leão, e não vocês próprias… pois vocês passam o tempo a satisfazer o macho egocêntrico e dizem-se mulheres livres). Tanta pintura, tanto creme e tanto gritinho não é para que se sintam bem… mas pura competição para que o preguiçoso e aborrecido leão – que pouco vos liga – vos dê um pouco mais de atenção do que tem dado ultimamente. Ou do que dá à leoa do lado. Eu não preciso disso.
Ah, mas desculpem. Eu falava de dupla personalidade. Sim, porque ao pé do leão e dos vossos pais, vocês são uns cordeiros. Enfiam a burka por completo. Fazem tudo o que lhes mandam. Sim, meu senhor, que mais quereis? Já estais satisfeito? Julgam que assim ele vos dará mais. Mais do quê? Mais ordens? Que prazer ou vantagens retiram vocês da vida, para além de uma minúscula prenda no Valentines Day, dada, com certeza, para que vocês continuem a obedecer? Ah sim, um sorriso… Pois, tenho notícias: todo o tirano, para ser bem obedecido, ordena com ar simpático. Não deixa de ser uma ordem categórica isso que ele vos dá. Já experimentaram ser rebeldes? Então porque me aconselham rebeldia?! Vocês não conhecem o significado da palavra. Fazem-me rir com os vossos conselhos sem sentido.
Sou Sarah Mousavi. Consciente das minhas escolhas. Sempre a mesma, em qualquer situação. Feliz e confiante no meu Deus, na minha família, em mim própria. Não me minto. Não acredito em culturas perfeitas e não sou extremista em nada. Apenas quero sublinhar que eu vivo num mundo que conheço, do qual vocês pouco sabem (e inventam tolices como circuncisão feminina, que parvoíce!), e não tenho vergonha de ser como sou. Vocês dizem-se livres mas vivem na hipocrisia: vendem-se quase diariamente por dinheiro, por status e até algumas por uma cama quente ou por um bocadinho de atenção a que chamam amor. Amor é companheirismo, viver para um fim comum. Vocês vivem na obediência cega em vez de viverem na comunhão que prega o vosso Deus. Mas eu é que uso burka, segundo me dizem...”