... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 30, 2010

Da obediência à autoridade

Uma discussão recente sobre ditadores, o misto de insegurança profunda que neles existe em contraponto com a sua extraordinária força para mover multidões, sobre revoltas sociais contra regimes e outras conversas usuais no mês de Abril levou-me a falar com alguns amigos sobre a experiência Milgram. Para meu espanto, apesar de serem indivíduos ligados às ciências humanas ou à biologia, não a conheciam, o que me fez pensar que realmente o lado obscuro do Homem passou a ser considerado tabu, mesmo nas instituições que se dedicam a estudá-lo.


 
Stanley Milgram era psicólogo na Yale University e começou as suas experiências sobre obediência a figuras de autoridade em 1961, poucos meses depois do início do julgamento em Jerusalém de Adolf Eichmann, o criminoso de guerra Nazi. Um dos seus propósitos era tentar obter uma resposta para a noção de intenção por parte de Eichmann e seus companheiros em relação às suas atitudes – como sabemos, a intenção é fulcral para a determinação do crime. Por outras palavras, Milgram testou a capacidade de obediência à autoridade do ser humano, mesmo que as ordens recebidas fossem profundamente contra o sentido de ética e de moral do ser que obedece.


A experiência continha 3 personagens: experimentador, vítima e participante. A vítima era um actor e não sofria danos, embora isso fosse ignorado pelo participante. Os participantes (pessoas comuns entre 20 e 50 anos, obtidas através de anúncio de jornal, pagas à hora), tinham de ensinar alguns conceitos às vítimas, assumindo com estas o papel de professor perante o aluno. Por cada resposta errada, davam-lhes um choque eléctrico de baixa intensidade. Simplesmente, por cada erro, o choque ia aumentando de intensidade até atingir 450 volts.


 
Se o participante/professor manifestasse desejos de terminar com os choques, o experimentador – assumindo uma figura impassível e na posse do poder – dizia-lhe apenas: “A experiência exige que continue” sem mais conversas.


 
Milgram sondou os colegas psicólogos sobre os resultados das experiências e estes apostaram na ética e bom coração do ser humano. Mas falharam. No primeiro grupo de experiências, 65% das pessoas administraram o choque final de 450 volts e apenas um parou aos 300 volts. A vítima-actor estava instruída para gritar de dor. Os participantes questionaram-se, indagaram o experimentador sobre o propósito da experiência, alguns choraram pelas suas acções, tremeram. Mas fizeram-no. A maior parte continuava após ser assegurada pelo experimentador que não lhes seria imputada responsabilidade pelo acontecido, o que nos leva a conceptualizar sobre a necessidade de assumir para sentir.


 
As experiências de Milgram (mais tarde, plenas de variações) foram muito criticadas devido ao stress que inflingiam nos participantes e atacadas como pouco éticas. Milgram publicou-as em livro “Obedience to Authority” em 1974, com algumas interpretações teóricas resultantes. Segundo ele, ao obedecer, o indivíduo vê-se como um agente dos desejos de outro e portanto desresponsabiliza-se das suas acções, ocorrendo um desvio crítico do seu ponto de vista – “they made me do it”. Outra situação que ocorre é explicada pela teoria do conformismo, a sensação de que estamos perante um grupo ou alguém mais forte do que nós; não podendo escapar, resta-nos obedecer. Actualmente, adaptou-se a esta teoria o conceito de “desamparo adquirido”, mais ou menos aquilo de que sofrem as mulheres vítimas de violência, que passam a obedecer cegamente como forma de sobrevivência, porque “aprendem” que nada as pode ajudar a sair de uma situação em que existe uma autoridade que não as deixa escapar.



Seja qual for a razão, os ditadores conhecem bem como aproveitar os recursos de obediência que cada ser humano tem em potência. A Igreja usa-os há séculos, como um dos seus três votos fundamentais. Nestes casos, ter cabeça pensante não ajuda pois também existe um fundo de ignorância: o único participante da primeira experiência que recusou ir mais longe disse “Eu sou engenheiro eléctrico. Eu sei o que os choques fazem às pessoas. Você não me pode convencer.”, donde se depreende que para obedecer cegamente convém ser um pouco tonto e que a inteligência não ajuda ninguém a sobreviver a um ditador… Já dizia a minha avó “mulheres burras fazem homens dominadores muito felizes”.



Friday, April 16, 2010

Empatia e a Mulher Esqueleto


Sempre me foi muito fácil meter-me na pele de outra pessoa e sentir como ela sente. Aquilo a que os ingleses chamam “getting into someone else’s shoes”. Se é qualidade ou defeito, prefiro não classificar, até porque creio bem que pode ser ambas as coisas, dependendo das circunstâncias e do quanto nos deixamos envolver pelas emoções alheias. É condição indispensável em certas profissões, mas também pode dar-nos um saco de angústias extra.  Não é uma emoção e/ ou um estado fácil para todos e há mesmo quem seja absolutamente incapaz de sair de si para ir ao encontro do outro. As pessoas  narcissistas não só não o conseguem fazer como sofrem de um mal ainda maior: precisam com urgência de quem as admire intensamente mas não fazem a mínima ideia de como atrair a verdadeira admiração, que só se consegue ao dar algo de nós próprios.


A propósito de tudo isto, há uma velha lenda Inuit, inacreditável e metafórica como todas as lendas do Grande Norte. Uma rapariga Inuit discute com o pai que, irado e frustrado com a rebeldia dela, imprópria para meninas submissas, acaba por a atirar de um penhasco. A rapariga afoga-se e acaba por descansar no fundo do oceano em forma de esqueleto perfeito. Algum tempo mais tarde, um pescador que por ali passava predatoriamente apanha o esqueleto no seu anzol. Ao puxar a sua presa, vê o esqueleto emergir das águas e quase morre de susto. Então, foge como louco, no seu botezinho, tentando escapar dela. Mas como nunca retirou o anzol, o esqueleto persegue-o onde quer que vá… A perseguição do esqueleto torna o pescador cada vez mais assustado, incapaz de se aperceber que é ele que a tem fisgada e não a deixa escapar, e vocifera contra a mulher esqueleto enquanto tenta libertar-se dela e rema cada vez com mais velocidade. Até que volta para o seu igloo, sempre com o esqueleto na ponta do anzol. O pescador está exausto e aterrorizado, mas olha para a mulher esqueleto e apercebe-se que a tem presa. É nesse momento que se dá conta que ela nunca o perseguiu, mas que foi ele que a andou a arrastar, sem que ela pudesse libertar-se. O terror do pescador é substituído por um sentimento de compaixão pela mulher-esqueleto. Parêntesis para dizer que embora “compaixão” sugira em português um sentimento galináceo, de peninha coitadinha, noutras línguas é uma coisa muito nobre e segue a raíz da palavra latina. Ao dar-se conta da sua tolice e de como terá magoado o esqueleto ao arrastá-lo todo o caminho, o pescador liberta uma lágrima pela mulher. Nessa altura, o esqueleto ganha carne, músculos, nervos, sangue, em suma, vida. Num final feliz, torna-se companheira  amantíssima do pescador.


Esta pequenina lenda é uma ode à nossa capacidade de nos despojarmos do nosso ego e ver para além dele, no reconhecimento da emoção alheia e , porque não, da nossa quota parte de responsabilidade naquilo que aos outros acontece e os faz sentir de determinado modo. Actualmente, há uma grande propensão para cultivar o oposto – no entanto, curiosamente, esse mesmo umbigo para o qual tanto nos incentivam a olhar é já uma cicatriz de uma ligação a outro ser humano…


Ensinaram-me que “empatia” é o nome que se dá à capacidade de sentir com o outro, partilhar das suas emoções quase como se nossas fossem. Mas em si mesma, “empatia” também não é uma palavra fácil…  A palavra deriva do grego – empatheia – e os meus amigos gregos dizem-me que nós podemos ter deturpado a coisa como quisermos , mas empatheia em grego não quer dizer nenhuma maravilha dessas. Vem de “em” e “pathos”, que é paixão intensa, com uma conotação geralmente negativa (e.g. a paixão de Cristo). Portanto em grego ter empatia por alguém não dá um calor prazenteiro. Para isso, usam sympatheia (que será a nossa simpatia, o mesmo que a compaixão latina), traduzida na partilha de sentimentos com (syn) outro, embora também usem a mesma palavra para manifestar agrado por alguém. Portanto, a partir de agora proponho que deixemos essa coisa do sofrimento empático de parte e passemos a ser mais simpáticos… de mão dada com alguém.

Friday, April 2, 2010

Pequenos Anjos Demoníacos e Bullies


Até há pouco tempo, uma mãe precisava de um vocabulário relativamente restrito para comunicar com as professoras: faltas, comportamento, higiene, varicela... Hoje, não. Uma mãe para poder mostrar que percebe o que estão a dizer tem de se esforçar muito mais. Vem isto a propósito da moda do bullying. A ministra da Educação, senhora que respeito muito pois sou da geração que leu os livros da colecção Uma Aventura – única coisa que em Portugal se fez a puxar ao espírito dos Famous Five, meus preferidos – já declarou que o bullying é crime.
Tudo isto me parece louvável. No entanto, quando me dizem que recentemente decidiram adoptar medidas severas contra o bullying, faço um ar de ignorante. O espanto do outro lado: "Então a senhora, que é bilingue, não sabe o que é o bullying?! Todas as escolas decidiram tomar providências." Apenas posso imaginar o esforço desesperado de uma senhora sem grande instrução e sem grande conhecimento sequer da sua língua materna quanto mais de outras, para compreender o crime de que está a ser acusado o seu rebento. Imaginemos: vai a educadora à escola falar com a professora e esta informa-o de que o filho é um bullie, pronunciando a palavra como se estivesse a falar de um recipiente para servir chá (o que torna a compreensão imediata muito mais difícil…)
Não é fácil, convenhamos!
“Mas vejo que a senhora está muito desactualizada. O bullying é um fenómeno recente. Tem a ver com o abuso dentro das escolas, feito por alguns alunos a outros. Isto está mesmo a ser muito estudado nalguns países mais avançados, como os EUA, e nós agora em Portugal também já estamos a implementar intervenções e resolução de disputas.”
Um fenómeno recente?! A sério? Qual de vocês, tenha 30, 40 ou 80 anos não andou numa escola em que o aluno mais fraquinho não apanhava pancadaria do mais forte? Em que o melhor aluno apanhava umas bofetadas do menos dotado intelectualmente no recreio? Em que a rapariga que conseguia o papel principal na peça de teatro tinha os adereços misteriosamente rasgados antes da estreia? É impressão minha ou toda a gente se esquece da sua escola primária quando cresce? De facto, a primária é apenas um estágio do que vem a seguir, como dizia a minha professora (a quem devo uma excelente preparação).
O bullying não é mais do que uma forma de abuso, mas o português gosta de usar estrangeirismos, que, no caso, não trazem clareza ao discurso. Não creio que seja com sanções que esta forma de abuso acaba. Não é propriamente exterminável (ou não seria tão antigo, como já recordámos…), mas pode ser minorado. Se, por exemplo, convencermos o aluno z (intelectualmente mais fraco mas musculado) que tem de proteger o aluno y (com qualidades opostas às dele) no recreio e em troca dissermos a y que ele deve ajudar z na sala de aula, podemos contribuir muito mais para minorar o bullying do que aplicando castigos, que geralmente só dão fogo à coisa.
Além disso, há outro ponto importante que gostava de acrescentar (já que me falaram nos "países desenvolvidos", frase de coitadinho que me irrita sempre bastante): há uma coisa que muitos países já perceberam e nós ainda não, provavelmente porque temos a sorte de ter poucos crimes cujos perpetradores são menores. As crianças não são sempre angelicais. A infância não é sinónimo de bondade; é sinónimo de pouca experiência de vida, o que, obviamente, acarreta candura. Mas muitas crianças, infelizmente, já passaram por muitas experiências adversas e a candura está deturpada. São mais adultas do que a sua idade, à partida, ditaria. E quanto à bondade, esta é uma questão íntima, de personalidade, não de faixa etária. Os estudos sobre crianças ou adolescentes que assassinam outras crianças mostram que eles são absolutamente indiferentes aos gritos de dor que ouviram, ao sofrimento que causaram, , em suma a toda a dor que não seja sua. Felizmente, casos raros.
Resumindo: os anjos não são anjos por serem jovens. Que eu saiba, Lúcifer também era um anjo.