Já todas as questões foram levantadas sobre a Wikileaks: será ou não legítimo impor um certo nível de censura à Internet e aos OCS para proteger a diplomacia? Sendo a censura lato sensu algo de inaceitável o que se entende, ao certo, por “um certo nível de censura para proteger”? Não é isso uma das bases do nacionalismo, cujos perigos tão bem conhecemos de Guerras devastadoras ainda frescas na memória? O povo tem direito a saber aquilo que fazem os seus governantes. Mas o que é privacidade e o que são assuntos de Estado? É importante desvendar que Berlusconi e Putin são machos-alfa e fazem wild parties ou isso pertence ao foro íntimo dos mesmos? Pertencerá, de facto, à intimidade quando a qualquer momento as meninas podem chantagear e humilhar representantes de um país? “Os governos, como os casais, têm direito ao segredo” diz o Washington Post. É possível haver segredos na era da alta tecnologia e da comunicação em massa? E não será que a construção de um segredo de Estado, nesta época, devia prever sempre (para sua própria protecção) a possibilidade de ser descoberto? Quando Hillary Clinton pede aos funcionários do seu Sate Department para espionarem literalmente diplomatas de outros países das Nações Unidas, obtendo o seu código genético, informações bancárias, palavra passe de e-mail, informações médicas e de relações pessoais, pode enervar-se por agora o seu voyeurismo ter sido elevado a uma escala global com a fuga para os OCS? O que é, então, a diplomacia nos dias de hoje? Já Eça de Queiroz, ele próprio diplomata, brincava com o pouco crédito dado à sua classe dizendo que os seus deveres eram bem saber dançar a valsa e comer com os talheres apropriados; hoje, incidentes como o da Tunísia não ajudam à imagem que se tem do corpo diplomático. O diplomata, não sendo propriamente político, é alguém que deve exercer boa política: conciliador, culto e social q.b., com um enorme sorriso e estima aparente por todos… até chegar a casa, descalçar os sapatos e dizer “ufa!”. Mas ainda que as embaixadas não façam política, não deixam de elaborar relatórios com pareceres políticos (sem sorrisos oblige).
Facto é que sempre houve revelações de escandâlos políticos em todas as épocas. A forma de os revelar é que foi mudando: o avanço do high tech e da comunicação em rede permitiram a forma Wikileaks. Mas fugas sempre existiram. Tomemos como exemplo o escandâlo Watergate, por ter sido o único que até hoje levou à demissão de um Presidente dos EUA. Todos sabem que a história de corrupção foi revelada a jornalistas por um informador, mas a História encarregou-se de tentar apagar o papel fulcral de Martha Mitchell no processo, provavelmente porque é muito humilhante pensar que Nixon não conseguiu calar a boca da esposa do seu Conselheiro. Diz-se que quando John Mitchell foi contactado pelo (então candidato a) Presidente Nixon para dirigir a sua campanha, avisou-o de que a sua mulher Martha era dominadora e falava demais, mas que Nixon terá ignorado e até rido. Quando ficou claro para Martha que a Administração Nixon estava envolvida em actividades ilegais, ela passou a telefonar assiduamente a jornalistas. Incapaz de conter o ímpeto da mulher, o desesperado John Mitchell tentou de tudo, desde sedativos a trancá-la em casa e mesmo dentro de um armário. Mas Martha nunca deixou de passar informação.
Então, a Administração Nixon fez o que a lógica exige para desarmar um inimigo poderoso: fez correr a ideia de que Martha sofria de problemas mentais graves e de dependências, desacreditando, assim, a sua palavra… mas não para sempre. Num curto espaço de tempo, provou-se o escândalo Watergate que fez cair o Presidente e os seus rapazes (incluindo o sarcástico Mitchell, que ao ouvir a sua sentença disse que preferia a prisão a uma vida com Martha). Martha Mitchell teve um funeral solitário, do qual ressaltou um pormenor misterioso: uma coroa de flores anónima com a inscrição “Martha was right”. O seu nome ficou famoso na Psicologia e Psiquiatria, denominando um efeito que caracteriza o processo através do qual o profissional de saúde mental interpreta as percepções reais de um paciente como sendo delírios, questionando a sua veracidade por achar tais acontecimentos pouco prováveis e classificando o paciente erroneamente de doente mental. Resumindo: quando alguém são é tido como louco porque não acreditam nas suas palavras, estamos perante um “efeito Martha Mitchell”. Nada de novo, pois já Cassandra, filha do rei de Tróia (diz a lenda), era tida como louca e ostracizada apesar da sua espantosa visão superior.
Quem sabe se, no futuro, teremos um efeito Wikileaks? Para já, como a acusação feita a Assange é apenas de foro sexual e não atingiu o grau de loucura, não creio que ele deva preocupar-se. Ele ainda não incomodou o suficiente o Rei que vai nu.