... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, October 28, 2011

Manteigueiros


Manteigueiro é uma profissão antiga mas, dada a actual situação económica, está cada vez mais em voga. Nos Açores, talvez devido à enorme profusão de vacas sorridentes, como foi notado pelo Presidente da República aquando da visita ao torrão do Corvo, e da consequente produção de lacticínios, ser manteigueiro é profissão de grande futuro.

O manteigueiro encontra-se, sobretudo, em posições de chefia intermédia, embora haja manteigueiros aspirantes que ainda não alcançaram a mestria suficiente para lá chegarem. O manteigueiro dá, graciosa e generosamente, manteiga a todos aqueles que considera estarem hierarquicamente numa posição favorável ou, tão somente, visível. Como a hierarquia é fugaz, flutuante, volúvel e outros adjectivos efémeros neste mundo de enganos, o manteigueiro tem imenso trabalho porque lhe cabe a árdua tarefa de distribuir manteiga a muitos. De facto, a uma multidão. E não raro, o infeliz manteigueiro se vê na posição de ter de dar manteiga a quem – por inépcia profissional – anteriormente desprezou. Em tais casos, é justo dizer que o manteigueiro enfrenta muito bem a situação: o nariz que antes todo se retorcia à presença do outro como se este fora um insecto dá agora lugar à vénia que respeitosamente se desdobra perante a mesma personagem como se ele fora um nobre. Da mesma forma, o coração do manteigueiro é como o da Maria Bethânia naquela canção do Adeus, isto é, “não guarda memória de quem já passou”, embora, no caso particular do manteigueiro, ele guarde um back-up para o caso da hierarquia se lembrar de ressuscitar personagens e de essas personagens lhe poderem ser úteis.

“Utilidade” é o slogan que rege a vida do manteigueiro. Desenganem-se todos os que vêem no manteigueiro apenas um servidor – e mais ainda se iludem os que nele vêem um servidor fiel. Para o manteigueiro, “fiel” é nome de cão e não tem outro significado. Quanto a ser servidor, claro que sim, ele é mais do que isso – é servil, mas com o único intuito de se aproveitar de quem serve. A psicologia do manteigueiro é complexa porque radica na mais profunda antinomia do ser humano – ele mostra-se submisso para melhor dominar. O manteigueiro não ignora que é com mel que se apanham moscas. Mais do que isso, ele está plenamente convicto de que a hierarquia apenas escolheu moscas, tontas e sedentas de que alguém lhes dê um bocadinho de mel para não se sentirem tão tontinhas. Convencido da sua superioridade e maldizendo a sua pouca sorte de não ter (ainda) sido escolhido para líder, o manteigueiro - que não possui qualquer tipo de escrúpulos e é profundamente hipócrita - dá aos seus superiores o que eles precisam para se sentirem bem: elogios. Elogia-os tão profusamente e com um ar tão sincero e repleto de devota e fingida escravidão que eles ficam a precisar dele para tudo. E assim, devagarinho e insidiosamente, dento de algum tempo o (suposto) chefe só se mexe para o lado que o manteigueiro ordena, perdão, sugere. Sugere com o toque de mestre “parece-me que é isto o que fazia V. Excª parecer melhor na fotografia!”. S. Excª fá-lo imediatamente e ainda agradece ao manteigueiro!

O manteigueiro, embora ufano do seu poder e domínio, vive sempre em secreto ódio contra aqueles a quem dá manteiga. Excepto, é claro, se receber o inusitado prémio de chegar à tribo superior. O manteigueiro é uma profissão sem problemas de mudança pois não tem limite de idade nem tão pouco exige currículo académico nem experiência profissional anterior. De igual modo, o manteigueiro distribui manteiga à esquerda e à direita, não tem cor política e não se preocupa com convicções ou filosofias, muito menos com questões éticas. De facto, há manteigueiros que se dizem firmemente crentes em algo ou seguidores de um caminho… Mas a experiência mostra-nos que são os mesmos que, passados poucos dias, têm a mesma força e convicção em afirmar-se crentes no oposto e seguidores de outra via. O manteigueiro confia numa coisa apenas: o melhor para si. O resto são modos de lá chegar. O manteigueiro com experiência sabe que não é, pois, suficiente dar manteiga apenas aos superiores hierárquicos… Muito longe disso! Efectivamente, é necessário manteigar aqueles que se encontram ao seu lado (seus concorrentes), pois a qualquer momento podem passar a ser seus chefes. De igual modo, o manteigueiro experiente não desdenha e até se compraz em manteigar os seus subordinados, porque não ignora que deles obtém toda uma panóplia de coisas que dão jeito, nomeadamente trabalhinho feito a tempo e horas, segredos mantidos a sete chaves, favores que lhe ficam a dever por terem trabalho ou promoções, e até uma certa adoração pacóvia vinda de algum mais falho de miolos, o que sempre sustenta a necessidade inesgotável que o manteigueiro tem de ser admirado por alguém.

A todos os jovens que desejam ser manteigueiros, recomenda-se hipocrisia, astúcia, olho vivo e paciência. São inúmeros os casos de manteigueiros promissores que apostaram no cavalo errado e, infinitamente pior, desprezaram o cavalo correcto, vindo depois a sofrer consequências muito funestas. Manteiguem, pois, o maior número de indivíduos que puderem, pois nunca se sabe qual deles é que vai ganhar.

Monday, October 24, 2011

A Boa Terra de Pearl Buck


A Boa Terra é uma obra ainda hoje polémica. Fala-nos de Wang Lung, camponês pobre e trabalhador mas fiel aos princípios de dever familiar e para com a terra que regem a China. Em contraponto, está a casa de ricos proprietários Hwang, cujo pequeno império começa a declinar devido ao esbanjamento e ao uso incontrolado de ópio. A mulher de Wang Lung serviu como escrava na casa de Hwang e foi comprada pelo marido: só isso serve para demonstrar todo um feixe de relações.

O-Lan, a mulher, tem vários filhos, inclusive uma deficiente mental cujo nome é irrelevante pois todos na família lhe chamam “pobre tonta” e ainda uma filha que sufocam à nascença por não ter comida para lhe dar. Wang Lung vive miseravelmente durante a seca, as migrações para a cidade, os abjectos negócios de compra e venda entre ricos e pobres mas trata os filhos com a severidade de um patriarca, ensinando-lhes que prefere deitar comida fora e passar fome do que comer o que eles tenham surripiado a outros. Com o tempo, porém, desorientado e cansado da desgraça, também Wang Lu roubará e se revoltará contra os poderosos. A reviravolta da roda da fortuna faz com que Wang Lu desonesto consiga lucrar na vida o que jamais lucrara com a honestidade: prospera, educa os filhos, compra terras a Hwang, torna-se um senhor. Wang Lung esquece os valores: um rico merece uma concubina… ou mais. Com a compra de concubinas, a família de Wang Lu passa a ser um núcleo de guerras constantes entre as suas mulheres e seus filhos. Wang Lung, velho, não tem paz; sente que falhou.

A Boa Terra é tão criticado quanto aplaudido. Muitos argumentam que a cultura chinesa não pode ser criticada tão linearmente por uma “estrangeira” e que os sistemas políticos, familiares e sociais do Oriente jamais serão entendidos pelo Ocidente. Outros defendem que Buck escreveu muito cuidadosamente, sem juízos de valor em adjectivos, com pura e simples descrição de um tempo e espaço em que ela própria viveu.

Pearl Buck ganhou o Nobel da Literatura em 1938 “pelas suas ricas, verdadeiramente épicas descrições da vida na China rural e ainda pelas suas obras-primas biográficas”. Não era uma “estrangeira”. A China foi onde Buck passou a maior parte da sua vida, apesar da sua cidadania americana. Aos três meses, muda-se para lá, com os pais, missionários; aprende a falar chinês clássico e inglês desde os primeiros tempos; foi a menina “Sai Zenzhu” para todos e “Pearl” apenas em casa; em adulta, escolhe também a China para viver com o seu primeiro marido (de quem herdou o nome “Buck”). O casal vive momentos difíceis nas revoluções tormentosas da China, acabando por se mudar para os E.U.A. e por se divorciar. Buck volta a casar, mas não mais regressa à China… Foi impedida de o fazer pelos oficiais de estado chineses que a acusaram de “imperialista americana”. Ironicamente, a sua prosa e a sua forma de estar revolucionária eram mal vistas na América. O amor de Buck pela China e pela Humanidade foi demonstrado toda a vida em inúmeras acções, nomeadamente na forte campanha contra a discriminação da pobreza na Ásia, na promoção de oportunidades para todas as crianças e numa rede de adopção (na época, o regime chinês considerava as crianças filhas de nacionalidades mistas uma aberração). Buck foi uma das primeiras defensoras do povo, por convicção e não por moda. Marginalizada por duas culturas, a sua lápide está escrita em pinyin, por desejo seu.

Tuesday, October 18, 2011

O Jogo das Contas de Vidro de Herman Hesse



O Jogo das Contas de Vidro é um romance que joga com a utopia do conhecimento absoluto numa comunidade de intelectuais brilhantes versus a vida secular, vibrante de sensações.
Num local imaginado (com muitas semelhanças com a terra Natal do autor e sem dúvida bebendo das suas experiências educativas), Hesse conta a história de um grupo de escolas de elite, onde só os verdadeiramente dotados se dedicam ao estudo das ciências e das artes. O Jogo por eles gerado é a consagração de todas as disciplinas em conjunto, espécie de linguagem universal onde se relacionam valores e símbolos. Os jogadores fazem conciliações harmónicas de temas inicialmente paradoxais, partindo de qualquer proposição científica ou questão artística. A simbologia inerente a esta batalha mental é a “busca da perfeição, uma aproximação ao espírito que, para além de todas as pluralidades, é Um em si mesmo.”

Limando a vida até à unidade máxima, espera-se dos jogadores que sejam o ideal do Homo Universalis. As escolas são uma comunidade fechada em si própria, vivendo num tempo futuro em relação ao nosso, desprezando os académicos vulgares e pseudo-intelectuais e criticando altivamente a mesquinha materialidade e a vaidade inflamada da sociedade pública. Josef Knecht, magister ludi da Academia, homem empático e questionador, acaba por interrogar-se se sua tarefa é mais útil do que a vida de um preceptor juvenil ou do que a de um homem do campo. Dando-se conta da esterilidade que regula a vida da Academia, Knecht não pode continuar a defendê-la e abraça a vida “real”; por seu lado, a Academia teme-lhe a coragem e o carácter e etiqueta-o como perigoso.

Herman Hesse ganhou o Prémio Nobel em 1946 pela sua “escrita inspirada, que, embora sempre crescente em ousadia e espírito de penetração, nunca deixou de ser exemplo dos ideais clássicos humanitários e das mais altas qualidades”. O Prémio surgiu após a supressão das suas obras na Alemanha nazi, de onde era natural. Hesse nunca acedeu a ser igual à sua “tribo”, apesar dos desconfortos. Trocou de nacionalidade e abraçou a multiculturalidade em pleno – “que a diversidade em todas as formas e cores possa viver neste mundo” proclamou Hesse aquando do Nobel.

Sunday, October 16, 2011

A Parada Alegre


O Correio da Manhã noticiou: “Governo dos Açores promove parada gay em S. Miguel em 2012”. Agora, escolha o que isto é: 1) uma notícia do dia 1 de Abril; 2) uma anedota; 3) um erro de impressão. Nenhuma das opções referidas; ao que tudo indica, a notícia publicada em Setembro último está correcta. O Governo Regional vai promover uma Gay Parade.

Primeiro, quero esclarecer que não tenho absolutamente nada contra quem é gay. Aliás, seria ridículo eu achar-me no direito de ser contra ou a favor da opção sexual de cada um. Também não dou a ninguém a confiança de se pronunciar sobre a minha – muito menos ao Estado, a quem não me ocorre, em caso algum, que vá promovê-la. Que tem o Estado a ver com isso? O Estado promove muita coisa, e ainda bem, mas promover questões sexuais parece-me totalmente descabido. Imaginem se ao Estado lhe dá para promover a castidade. É que se lhe damos o direito para se pronunciar e deliberar sobre assuntos da nossa vida mais privada e íntima, sujeitamo-nos ao que daí advier.

Também não tenho nada contra as famosas Gay Parades. Aliás, vivi em locais onde elas existiam: Holanda e Canadá, e também cheguei a assistir na Dinamarca e nos E.U.A. São eventos cheios de cor, espécie de corso de Carnaval temático e com uma função muito particular. Nem todos os homossexuais acham interessante a participação numa Gay Parade, como é natural. Esta história de meter os homossexuais todos dentro do mesmo saco é discriminatória, por si só. Os homossexuais, como os heterossexuais (não seria preciso dizê-lo, mas parece que é…) são um grupo heterogéneo – há os tímidos e os extrovertidos, os recatados e os histriónicos, os que têm uma data de parceiros e os que vivem em união com o mesmo há muito tempo. Alguns casaram. O primeiro casamento entre homossexuais nos Açores aconteceu em Agosto de 2010. O casal Carlos e Manoel teve de lutar contra uma tonelada de burocracia e preconceitos. Tudo isso exaspera, dói e massacra.

Mas o ponto aqui não é a questão dos direitos dos gay ou de como o mundo de hoje devia ter abertura de espírito e não tem. Há muitos direitos que deviam ser respeitados, por fazerem parte dos direitos inegáveis a todo o ser humano, mas que são espezinhados todos os dias junto à nossa porta. A questão é que o Governo deve executar medidas para que os direitos dos cidadãos sejam respeitados. Sem qualquer dúvida. Dentro de tais medidas, no caso em concreto, farão parte, com certeza, a desburocratização para que mais gay possam casar-se sem que as autoridades emperrem o caso como se fosse pecado; farão parte eventualmente acções junto da população mais jovem para que os jovens gays não sejam discriminados pelos colegas mais violentos (como tanto se vê…); fará parte o que o Estado entender por bem fazer para preservar os direitos das pessoas.

Mas uma Gay Parade não é propriamente isso. É uma manifestação e, como todas as “manif”, vai quem sente na pele os problemas que advém da condição e ainda assim não vão todos, mas apenas os que concordam que desfilar pelas ruas é solução. Todas as “manif” são, indubitavelmente, movimentos de cidadãos ou de associações comunitárias. Não são promoções e organizações estaduais. Porque, obviamente, uma “manif” protesta contra o status quo. O Governo vai organizar uma “manif” para protestar contra um estado de coisas que se vive nos Açores… quando ele é o organizador da nossa sociedade?! O papel de protestante cabe aos cidadãos, senhores, não ao Governo! Quando muito, o Governo poderá apoiar as instituições que queiram expressar-se deste modo.

Claramente, nos Açores sofremos de um problema que começa a ser crónico. O Governo passou a ser o Pai de todos. Não há nenhuma iniciativa que o Governo não subsidie, não organize, não pague, não decida. E todos, filhos dependentes e nunca maiores de idade, ficam sem autonomia mas também sem voz. Isto é muito confortável para os filhos que vivem sempre à custa de. Simplesmente, não podem jamais dizer que algo está mal... De vez em quando, chega-se ao ridículo de situações como esta que não se passam noutros locais, onde o promotor se ridiculariza a si mesmo (será que sem dar por isso?).

Portanto, a partir de agora quem quiser fazer uma “manif” basta contactar aqueles contra quem protesta. Eles organizam e promovem. Parece-vos estranho? Bem, não tão estranho quanto ver a “manif” em si. Sim, porque isto das Gay Parade são basicamente Drag Queens em desfile. E eu sempre gostava de saber quem é que irá predispor-se a representar o Governo – promotor do evento – para desfilar como Drag Queen à cabeça deste corso. Não me digam que, protocolarmente, tinham esquecido esta obrigatoriedade?