... "And now for something completely different" Monty Python

Sunday, November 27, 2011

Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago


Deste livro disse o autor ser um romance terrível que sofrera muito a escrever: “é brutal, violento e foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida”. Saramago descreveu-o como uma constante aflição e tortura, onde “se mostra que não somos bons e é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.” 

A obra é uma parábola onde todos vão sendo acometidos por uma treva branca que os deixa cegos, embora, como alguns reconheçam “cegos já éramos antes de cegar”. Todos, menos a mulher do oftalmologista, que finge ser cega para acompanhar o marido na reclusão a que, a princípio, votam os cegos quando ainda são minoritários na comunidade. É por ela que nos damos conta do feroz mundo de luta humana, onde o egoísmo é uma constante, exarcebado aqui pela ausência de restrições que - tristemente nos damos conta - não serem uma obrigação da ética íntima de cada ser mas apenas e só uma questão de receio de punição social que se torna inexistente dada a cegueira. Assim, sucedem-se os casos animalescos de brutalidade, de luta pela comida, de desprezo total pelo asseio, e, finalmente, de invasão da liberdade alheia e de descaso pela dor de outrem como são as violações e os homicídios.

Para retirar ainda mais da humanidade das personagens, nenhuma delas tem nome, sendo apenas referida por uma característica acessória, e.g.: a mulher do médico, a rapariga dos óculos escuros, o ladrão, o rapazinho estrábico.

Saramago ganhou o Nobel em 1998, três anos depois da publicação deste romance, pela sua “imaginação, compaixão e ironia, que continuamente nos permitem apreender uma realidade indefinível.”

Saturday, November 26, 2011

INSULAmento - Condição do ser-se Ilha


A seguinte comunicação foi proferida no X Aniversário de ADIASPORA.COM em Londres. Está aqui publicado, visto que A Diáspora, enquanto orgão de divulgação, publica na íntegra as comunicações dos seus encontros.

Informações sobre o aniversário e ciclo de conferências podem ser encontrados aqui:

http://www.adiaspora.com/X_Aniversario_2011/index3.html
http://www.adiaspora.com/X_Aniversario_2011/discurso_carla_cook.html




Muito boa tarde a todos os presentes. Peço licença para saltar os cumprimentos protocolares, mas há uma lista grande de personalidades ilustres na sala e eu receio não ter presente os nomes e cargos de todos, pelo que iria decerto esquecer alguém involuntariamente se fosse tentar nomeá-los. Por esta razão, cumprimento numa só linha todos os presentes com o mesmo respeito e a mesma fraternidade.

Não posso, porém, deixar de nomear os aniversariantes. É, para mim, um grande prazer voltar a estar presente num aniversário de Adiaspora.com. A primeira vez que o fiz leccionava, precisamente, numa universidade do Canadá (morava no mesmo país que é a casa deste portal de divulgação da lusitanidade) e foi aí que me dei conta da existência do portal que eu, até à data, não sabia que existia.

Há tantas coisas, como todos nós aqui presentes sabemos, das quais só nos apercebemos melhor e mais profundamente quando emigramos. Na época, eu vivia numa cidade canadiana onde praticamente não moravam portugueses e, em Toronto (repleta de portugueses, como sabemos), conhecer A Adiaspora.com foi importante, aproximou-me de um grupo de pessoas alegres, que preservavam a cultura portuguesa com paixão sem deixarem de se integrar na sociedade do país onde estavam com firmeza. E isso fez o frio do Canadá menos frio.

Fico feliz por verificar que, cinco anos depois, Adiaspora.com continua a unir pessoas em torno da língua e da cultura portuguesas, com a mesma alegria e a mesma determinação que sempre lhes conheci.

Pediram-me para me debruçar hoje sobre um tema que aproximasse a Inglaterra dos Açores. Embora a Inglaterra também me seja um país familiar, eu não sou especialista em História – a minha área é a Cultura - pelo que em vez de fazer aproximações de carácter historicista entre o Reino Unido e a Região Autónoma dos Açores, optei por vos falar um pouco de algo que, efectivamente, é comum à essência de um e de outro, determinando, por isso, todo o seu quadro de acção e sendo o pilar-base da sua cultura. Refiro-me, é claro, ao facto de tanto a Grã-Bretanha ser uma ilha como os Açores serem ilhas, mutatis mutandis, isto é, com as devidas distâncias e cuidados que devemos ter ao falar de uma ilha que é a maior da Europa e a nona maior do mundo, sendo a terceira a nível de população, e um arquipélago que é frequentemente esquecido em muitos mapas dada a sua pouca área e cuja ilha mais pequena - o Corvo - tem 400 habitantes concentrados em 17 km2 de superfície total.

A diferença entre a realidade destes 400 habitantes versus 60 milhões de pessoas na Grã-Bretanha é, pois, abissal embora o ponto de partida de realidade insular seja comum.

Como verificam, esta linha de pensamento de cariz geográfico tem um âmbito de exploração muito factual e, a meu ver, restrito, dado que eu poderia passar aqui uma hora a fazer aproximações várias e outras tantas distinções entre a Grã-Bretanha e os Açores, mas todas essas aproximações e distinções de índole puramente territorial, demográfico ou matemático são coisas que fazem parte do nosso próprio saber enciclopédico, sendo apenas a base constituinte das diferenças e aproximações posteriores de matriz cultural que derivam da condicionante geográfica de ser ilha e de ser ilhéu. São essas matrizes culturais que aqui nos interessam muito mais. Aqui, tentarei mostrar que o ser-se ilha condiciona toda uma forma de ser, de estar, de agir e de pensar, e até de ser encarado pelos demais que não são ilhas.

Nestes breves minutos, vou restringir o meu pensamento por questões metodológicas,“fechando” naturalmente o âmbito para rigorosamente cair mais a fundo na Grã-Bretanha e nos Açores, mas a verdade é que poderíamos levar esta questão da Ilha como fundamento isolador e de diferença a um leque muito mais vasto: basta pensarmos que os cabo-verdianos e os são-tomenses, povos linguisticamente irmãos dos portugueses, têm uma perspectiva muito particular de si próprios enquanto africanos porque são povos insulares e arquipelágicos, contrariamente aos africanos continentais.

Já aconteceu estar em encontros dos países lusófonos, e verificar que as pessoas vindas de ilhas (Açores, Madeira, São Tomé e Cabo Verde) acabam sempre por se juntar, por oposição às que vivem numa plataforma continental - isso acontece porque estão unidas por aspectos inequívocos de semelhança, nomeadamente a ligação profunda e, mais do que profunda, necessária ao mar, que, se por um lado é o que as separa do resto do mundo e as isola, por outro é também a ponte que faz a sua comunicação com o resto do mundo: o mar é a sua fonte de subsistência, de prazer, a sua auto-estrada, o seu oxigénio na verdade. Esse sentimento que as une é aquilo a que, em 1936, o conhecido escritor e ensaísta Vitorino Nemésio chamou o “sentimento de solidão atlântica”.

Vamos penetrar mais fundo na exploração deste sentimento de solidão atlântica que compartilhamos aqui também na Grã-Bretanha, embora noutro prisma. À primeira vista, poderíamos pensar que não. Afinal, é uma ilha-potência, uma ilha-força maior no quadro da Europa que hoje vivemos, e até no mapa actual do nosso mundo. Ao pensarmos nos países economicamente fortes da União Europeia neste momento - que são, por inerência, também os decision-makers dos caminhos que tomamos - só nos ocorrem 3 nomes: a Alemanha, a França e o Reino Unido (que é, na sua maioria, constituído pela Grã-Bretanha, acrescentando-se depois o bocadinho correspondente à Irlanda do Norte, embora seja uma porção bastante limitada do território em termos percentuais e, ademais, também é um pedacinho de outra ilha, portanto… junta-se ao clube).

Ora, estes gigantes económicos europeus – e até mundiais (já que o Reino Unido é a sexta economia mais forte do mundo, segundo dados da Central Intelligence Agency referentes ao ano de 2010) –, estes pesos pesados da economia da Europa não são encarados da mesma forma pelos demais povos e países. Todos colocamos a França e a Alemanha num lado da balança e o Reino Unido no outro… E isto porquê? Porque desde o primeiro momento em que se pensou na criação de uma federação de estados unidos da Europa, o Reino Unido, embora querendo estar presente activamente e salientando ser totalmente a favor de uma União Europeia, diferenciou-se desde o primeiro instante dos restantes países que a constituem, nunca partilhando por inteiro dos acordos de total indiferenciação de países-membros que constituem o caroço das linhas de acção da UE.

Refiro-me, concretamente, a dois exemplos por serem os mais mediáticos – o Reino Unido nunca aceitou a moeda única, optando sempre por preservar a boa e velha libra que aliás provou ser uma moeda bastante forte; o Reino Unido também nunca aceitou fazer parte do Espaço Schengen, isto é, fazer parte do sistema de passaportes unificado da Europa, porque quis continuar a manter - e cito de um comunicado de 1999 - “as suas fronteiras bem delimitadas e controladas, com verificação de passaportes” para os seus vizinhos europeus e política necessária de vistos para entrada no país para os que viessem de mais longe (há aqui uma excepção, que é a excepção feita ao acordo que o Reino Unido mantém até hoje com a Irlanda e que se denomina Common Travel Area).

Ora, se pensarmos que há mais países na União Europeia resistentes ao euro - como a Dinamarca - , já em relação a Schengen, o Reino Unido e a Irlanda foram os únicos países a rejeitar a proposta de não abrir as suas fronteiras aos seus vizinhos. E a“desculpa”, ou melhor dizendo a razão, é a mesma que davam para o euro ou que sempre evocam quando acham que algo é ameaçador da sua forma de ser e de estar como povo: dizem à Europa “Nós somos diferentes. Vocês são o continente; nós somos o Reino Unido, isto é, implicitamente, somos uma ilha, temos de proteger a nossa especificidade, temos de preservar a nossa cultura particular da grande massa que está do outro lado oceânico.”

Esta convicção que foi dita de forma ainda mais forte quando recusaram Schengen porque acharam que tinham de proteger as suas fronteiras limitativas insulares (abrindo uma porta de confiança apenas à Irlanda, ilha como eles e sua vizinha) é uma frase muitíssimo interessante pela própria diferenciação que carrega não só da percepção NÓS (Reino Unido) versus VOCÊS (Europa), mas, indo mais longe, ao radical que está na base da diferença dessa percepção que tem por base: NÓS (ilha) versus VOCÊS (continente europeu).

A este propósito, permitam-me que vos conte uma pequeníssima história que se passou comigo. A certa altura da minha vida, estava a estudar em Inglaterra, numa cidadezinha da costa do Sul. Encontrava-me num café com um colega de curso que era francês. Dado que falo francês razoavelmente bem, a dona do café, que nos escutava, perguntou-me se eu era do Continente: “Are you from the Continent?” Mais tarde, estranhei ela não dizer mainland que era a palavra, a meu ver, mais correcta e usual mas, na associação rápida e talvez provinciana da minha cabeça de açoriana só me ocorreu que ela falava do “Continente” que é a palavra, como sabem, pela qual os açorianos designam habitualmente Portugal Continental. Pelo que lhe respondi “No, I’m not from the continent, I’m from the Azores!” Claro que a senhora nem tão pouco sabia o que eram os Açores e de modo algum viu a relação entre o “continent” dela e as minhas ilhas! Só mais tarde, percebi que para os ingleses, “continent” é uma forma de dizer “Europa”como para os açorianos “continente” é uma forma de referir “Portugal”, muito embora os ingleses façam efectivamente parte da Europa e os açorianos façam parte de Portugal… mas demarcam-se eles próprios do território, que já de si os demarcou por um acaso geográfico de distância inegável que eles assumem e acentuam ainda mais com a utilização deste vocábulo “continente” para referir a realidade da plataforma da qual, apesar de tudo, fazem parte. Ora, isto tem tanto mais graça quanto é uma referência comum aos ingleses e aos açorianos, salvas as devidas distâncias.

Aliás, os Açores também têm um estatuto diferente dentro da União Europeia, um estatuto que partilham com outras ilhas e que lhes advém precisamente do facto de serem ilhas que se encontram em território considerado fora da União, pertencendo, no entanto, a países da UE. Como sabem, a Madeira, os Açores, as Canárias, e territórios franceses como a Martinica, Reunião, Guadalupe e a Guiana Francesa são considerados regiões ultra-periféricas da Europa (“outermost regions” em inglês). O tratado da União que lhes atribui esse estatuto especial diz claramente que isso se aplica pela sua “insularidade” e claro que acrescenta outros factores, todos eles advindos desse primeiro factor, como sejam a sua “natureza remota, topografia e clima difíceis e particulares, dependência económica de alguns produtos, seu tamanho reduzido, a permanência e combinação de todos estes conjuntos factores [que agora citei] que largamente restringem o desenvolvimento destas ilhas”. Quase que diríamos, depois de ler estas linhas, que, mau grado pertencerem legalmente à União Europeia, estas ilhas estão quase que perdidas no mapa…

Claro que é fundamental aqui, mais uma vez, a diferença de tamanho geográfico e, posteriormente, de autonomia económica entre as nossas ilhas açorianas e esta grande ilha que é a Grã-Bretanha – naturalmente que essas diferenças condicionam a sua resposta e forma de estar na União Europeia, que é, curiosamente, sua vizinha mas também sua casa.

Como estamos a ver, a condição de se Ser Ilha é, por si só, um factor de isolamento em relação às plataformas continentais.

A etimologia explica-nos muitas coisas. Aqui, socorri-me dela para fazer o trocadilho do título desta breve conversa convosco por me parecer sumamente interessante que a própria origem da palavra “ISOLAMENTO” viesse exactamente da palavra “ILHA”. Utilizei INSULA que é a palavra latina para ilha, por nos ser talvez mais familiar do que ISOLA, embora ISOLA seja a actual palavra italiana que precisamente significa ILHA por derivação do Latim INSULA - daí o “Isolamento”, que é a junção de ISOLA (Ilha) e do sufixo latino mentum que se usa em substantivos derivados de verbos para especificar o resultado de uma acção. Assim, e sem querer maçar os presentes com lições de gramática mas tão só exemplificar que as palavras contêm significados que não podem ser desprezados - até porque a língua é sempre a manifestação de uma realidade cultural que lhe está subjacente - vemos que esta palavra ISOLAMENTO significa nada mais nada menos que o “ser-se ilha”. Nós é que, posteriormente, lhe atribuímos significados extra, tais como solidão, reclusão, e eventualmente sentimentos depressivos ou de ostracismo. Mas todos eles são já uma marca a posteriori, serão, por assim dizer, efeitos do ser-se ilha ou do que nós entendemos que a realidade “ilha” traz em si.

A propósito desta nossa concepção posterior do que significa “isolamento”, gostava de vos falar um pouco de um ensaio de Nemésio acerca de um poeta açoriano chamado Roberto de Mesquita, poeta de que quase ninguém fala mas que, no entanto, foi provavelmente quem melhor encarnou a representação de ser ilhéu. Desde já, pelo seu percurso de vida - nasceu em 1871 em Santa Cruz das Flores, um local bastante isolado. Só saíu das ilhas dos Açores para uma única viagem em toda a sua vida, indo ao Continente, (em 1904), para visitar o irmão, que lá era professor. Teve, aliás, uma vida plena de vicissitudes cujas penosas circunstâncias mais acentuaram o seu carácter melancólico e reservado, contribuindo para que o isolamento geográfico fosse também mais marcado devido ao seu ensimesmamento pessoal. Na sua produção poética, vamos notar o pessimismo reflexivo, um sentimento de abandono, a animização da Natureza, o spleen envolto em mágoa e, sobretudo, “o isolamento ilhéu” que, como disse Nemésio, era, na sua poesia “a mensagem […] de valor principal.”

Nemésio considerava os escritos de Mesquita “o melhor exemplo do perfil difuso (…) da Açorianidade”. Este adjectivo é importante, como as brumas e os nevoeiros que circundam todas as ilhas deste mundo, incluindo aquela onde hoje nos encontramos (se os Açores têm as brumas, Londres tem o famoso nevoeiro e isto é, sem dúvida, a matriz caracteriológica do clima de uma ilha!). Mas do clima e sua importância, já falaremos…

Roberto de Mesquita tinha certos traços simbolistas porque lia Baudelaire e Verlaine (famosos na época) mas distinguia-se deles pelo seu “sentimento de solidão atlântica”que é, afinal, a condição humana de todos nós os que aqui nos encontramos, ilhéus no meio do grande mar.

Quando Nemésio se debruçou sobre a poesia de Mesquita, tinha há muito pouco tempo cunhado o célebre conceito de Açorianidade - fê-lo quase involuntariamente num artigo publicado na Revista Ínsula em 1932 onde fala exactamente da consciência de ser ilhéu e, mais concretamente, de ser ilhéu nos Açores. Nesse mesmo texto, ele diz-nos:

Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água.

Nós, ilhéus isolados, não nascemos apenas junto do mar, o que prefiguraria liberdade e câmbio. Nós nascemos, como disse Nemésio no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes.

E isso faz toda a diferença.

É o isolamento, a solidão que define a condição de ser ilhéu; nesta e por esta circunstância, todo o íntimo, toda a cultura do ilhéu se torna ilha, à semelhança do exterior que o rodeia.

Estarmos insulados faz-nos tão diferentes porque acabamos não só por ESTAR insulados mas por SER insulados.

E é por isso que o ser-se ilhéu adquire uma geografia muito mais ampla: o ilhéu leva a Ilha para onde quer que vá, torna-se “homem que transporta um centro” e em função dele se vai completando. Leva a Ilha consigo dentro dele quando emigra, como bem sabemos – ela torna-se um arquétipo mítico da Ilha Perdida que já só dentro dele existe, porque é impossível voltar ao lugar de onde se partiu. Passa a ser, efectivamente, uma Ilha Perdida, que só existe dentro do próprio – “começamos”, como também dizia o poeta “a ser estrangeiros onde nascemos” (tema que já nos dava outra palestra!).

Voltando um pouco atrás – ao Ser Ilha e à notória influência dos elementos naturais e climatéricos na psique e no estado de espírito dos ilhéus. Na nossa Literatura, a ambiência natural aparece como parte intrínseca do sujeito, quase deixando de haver distinção entre a objectividade da Natureza e a subjectividade de quem escreve. O clima como definidor da anima é uma noção tão verdadeira quanto terrível pois o clima açoriano é de mormaço, de humidade abafada, de “totalidade saturada do ar” (Martins Garcia) que é também o que se sente noutras ilhas e até mesmo aqui.

Esse tipo de clima, de nevoeiros baixos é propenso à reflexão profunda, a uma certa melancolia do espírito e à “ilimitação parada “ de “ilhas acobardadas em neblina”, como se lê no Mau Tempo no Canal.

Não é por acaso que refiro este livro – refiro-o primeiro por ser um livro extraordinário para avaliar da cobardia e dos repentes de coragem, conforme a montanha do Pico tem nuvens ou não, de tal modo as personagens se deixam influenciar pelo clima que as circunda; refiro-o, também, porque a este sentimento provocado pelo clima deu Nemésio um nome inglês na obra - chamou-lhe Azorean Torpor, a modorra açoreana, o torpor açoriano. Talvez porque uma das personagens do trio central de Mau Tempo no Canal é, como sabem, Roberto Clark, que emigrou em pequenino para Londres e volta agora ao Faial para “salvar” a família Clark Dulmo, eles próprios meio-ingleses, meio faialenses. Roberto Clark, a mais perfeita “junção de um gentleman londrino com um homem do Pico”, discorre longamente na obra sobre o Azorean Torpor e sobre o modo de ser dos ilheús.

Para além disso, este mesmo livro define muito bem a “clausura insular”, a noção de ilha como prisão, conceito facilmente compreensível para qualquer não-ilhéu. O que já é mais difícil de explicar é porque é que os ilhéus são paradoxais na sua visão da Ilha, encarando-a como prisão mas vendo-a também como miragem de total liberdade, de lugar onde o puro e o natural estão mais presentes.

Assim, é curioso que a Ideia de Ilha acabe por ser antagónica mas coexistente, sendo a“Ilha considerada como escravizante e redutora” quando os ilhéus lá habitam mas“sedutora e maternal” quando dela se encontram apartados.

É por isso que ser Ilhéu é também e, forçosamente, viajar. A visão atlântica impele-nos, chama-nos para além, mas também aqui residem elementos contraditórios, pois embora a vontade de seguir em frente pelo espelho marítimo seja grande pois o mar é sempre uma voz que chama quem vive nele (o que no caso das ilhas pequenas, como os Açores, se verifica com a emigração e no caso das grandes, como a Grã Bretanha, com a saga das Descobertas…), há igualmente um certo gosto em deixar-se ficar no seu canto conhecido, no encanto dos cheiros da terra de sempre… e é isso que impele, decerto, o ilhéu a voltar à Ilha.

Vão desculpar-me ter feito aqui esta brevíssima incursão literária, mas conhecer uma cultura é, em grande parte, mergulhar nas suas histórias, já que a Literatura mais não é que o reflexo de uma Cultura, como todas as formas de arte. Não temos, porém, muito mais tempo e creio até que já me excedi nos minutos que me foram destinados.

Gostava de fechar esta minha exposição com uma frase de Nemésio sobre “O Açoriano e os Açores” que é, para mim, o resumo daquilo que representa nascer ou viver em ilhas:“As ilhas são o efémero, o contingente; só o mar é eterno e necessário.”

Estamos, portanto, todos nós, ilhéus, como que plantados na vastidão do mar e um pouco à sua mercê. Damo-nos conta - muito mais do que os povos continentais poderão alguma vez fazê-lo - da vastidão, da profundidade, do que está para além e nos ultrapassa, que é o Mar, face à nossa pequenez, à nossa circularidade, ao nosso insulamento. Este sentimento de autognose dos ilhéus e a sua íntima comunhão com o mar que tão bem Nemésio caracterizou de “necessário” – como todo o ilhéu poderá confirmar! – é o que aproxima as ilhas, todas as ilhas, umas das outras. Todos nós nesta sala – madeirenses, são-tomenses, açorianos, britânicos – não foi por acaso que nos juntámos num aniversário que tem por tema “Insularidades”… Isto acontece por sermos ilhas e porque o mar é o nosso oxigénio.

Espero ter contribuído com estas minhas reflexões para a celebração do espírito Insular, tal como me foi proposto. Muito obrigada pelo vosso tempo e pela vossa atenção. E, mais uma vez, parabéns ao Adiaspora.com.


Friday, November 25, 2011

A epidemia da doença mental


Li no jornal o caso de uma menina de 12 anos que tinha sido adoptada e foi devolvida porque os (então) pais adoptivos, moradores em Lisboa, dizem que ela “sofre de esquizofrenia grave”. Não faço julgamentos sobre a vida íntima, mas há mesmo que levantar a voz neste caso. O casal teve a menina em sua casa menos de um mês, altura em que percebeu que ela “fazia teatrinhos e falava com amigos imaginários, era demasiado tranquila e isolada e tinha dificuldade em criar laços emocionais”. Finalmente, decidiram-se a falar mais intimamente com ela e foi quando, dizem eles, a menina confessou que “falava com a irmã gémea que morreu mas que continuava dentro dela e ouvia vozes dentro de si”. O casal, a beirar o meio século e com idade para ter juízo, diz que percebeu “num fim de semana” que havia ali um quadro de esquizofrenia, contactou a instituição onde a menina vivera seis anos e foi informado de que “ela não tinha nenhum quadro clínico, mas tomava um psicotrópico, que é dado a casos de esquizofrenia ou de dupla personalidade.” 

É só a mim que isto me parece um caso de Polícia e não de Psiquiatria? E, caso seja de Psiquiatria, o paciente não é, de certeza, a menina de 12 anos!...
Não vos parece normal o isolamento inicial de uma menina que chega a uma casa estranha, habitada por estranhos? Não seria invulgar que ela criasse laços emocionais em tão pouco tempo? Não é saudável uma criança brincar aos teatrinhos? Não é comum às crianças e aos adultos terem saudades dos entes importantes da sua vida que já partiram e sentirem-nos como se continuassem presentes dentro de si? No caso concreto, isso será tanto mais exacerbado quanto essa pessoa importante e falecida é provavelmente o ideal de família e estabilidade desta criança e, portanto, bem se pode compreender o que essa perda representou. “Anormal” e, seguramente, sem sentimentos, seria o ser humano que não se sentisse perdido e só.

O que me parece invulgar aqui são outras duas coisas. Primeiro, estes “pais” que não viram nenhuma destas evidências e que, pelo contrário, esperavam uma menina perfeita e pronta-a-usar, que respondesse com um abraço quando se carregasse no botão dessa “função”. Depois, a leveza e irresponsabilidade com que eles diagnosticam um problema severo em dois dias (já não se entrevistam os proponentes a adopções?). Segundo, a instituição que administra, com a mesma displicência, psicotrópicos a crianças.

Não é por acaso que a esquizofrenia é detectada no início da juventude (isto é, depois de terminada a adolescência). É precisamente porque, antes disso, as respostas emotivas bizarras, os pensamentos desorganizados, as alucinações, as falsas crenças e a falta de distinção entre o real e o imaginário que caracteriza a doença não podem ser facilmente destrinçados da vida usual de um adolescente com hormonas saltitantes e muito menos da de uma criança, em cujo mundo a fantasia desempenha um papel preponderante na aprendizagem e quantas vezes de saudável escape (ao contrário do que devia acontecer na vida adulta). Só depois da passagem para esse mundo cognitivo e emocional adulto se podem determinar que certos processos de pensamento desintegrado ou de descontexto emocional são esquizofrénicos. Antes, poderão ser simples brincadeiras, fases de crescimento, etc, etc.

Para além disso, o uso de psicotrópicos em quem quer que seja tem efeitos severos. São drogas fortes que actuam no sistema nervoso central, elas próprias alterando o comportamento, o humor e a cognição, quantas vezes de forma negativa. Todo o psicotrópico cria dependência. Como diz um psiquiatra que é tio de um bom amigo meu: “Se fores são mas tomares estes remédios, deixas de o ser em pouco tempo.” Posso imaginar o efeito pernicioso e devastador que estas drogas têm numa criança. Dá-las a uma menina pequena devia ser considerado crime, porque o é, de facto. Uma instituição que o faz não devia continuar a ter menores ao seu cuidado. Está a criar doentes que não existiam e a contribuir para a taxa de perturbados na sociedade.

A terminar, aponto outra situação: uma educadora de infância aconselhou os pais de um menino de 4 anos a darem-lhe calmantes porque ele “era hiperactivo” e, segundo a experiência dela, beneficiaria disso...

As pessoas parecem estar esquecidas que as crianças são ruidosas, brincam, saltam, fazem teatros, têm amigos invisíveis, choram, riem, são tímidas e envergonhadas hoje, atrevidas e respondonas amanhã, não gostam de colos que não conhecem, têm saudades, gostam de mimos, confundem-se e fazem partidas, são… crianças saudáveis. Se querem robots, encomendem um pela internet. 

Sunday, November 13, 2011

Ilhas à Venda



Em Março do ano passado, apareceu a notícia “Ilhas gregas são vendidas para fazer frente à crise que o país enfrenta”. Não se tratava das ilhas turísticas que todos bem conhecemos, aquelas que fazem parte do circuito habitual dos iatistas nos Mares Egeu e Jónico; nem tão pouco de ilhas habitadas. Tendo em conta que a Grécia possui mais de seis mil ilhas, e que apenas pouco mais de duzentas têm habitantes, o país bem podia vender algumas das desabitadas a excêntricos milionários. Afinal, quem, tendo dinheiro para tal, não gosta da realidade fílmica de possuir uma ilha no Mediterrâneo?

No entanto, muito em breve se colocou outra questão. Porque não vender ou talvez alugar por um prazo longo algumas das ilhas mais turísticas (e habitadas)? Aí, já se começou a falar de ilhas tão conhecidas como Mykonos e Rhodes. Falou-se até da venda de parte dessas mesmas ilhas. Ninguém explicou muito bem como se faria a divisão: metade da ilha pertencia ao Governo Papandreou e a outra metade ficava na posse de um privado? Onde se traçava a linha imaginária que ia dividir a ilha a meio? Que direitos tem o privado face às casas e aos habitantes que moram na sua parte da ilha? Quem lá se desloca está, automaticamente, a trespassar terreno de outrem? E se o privado não fosse da União Europeia, os gregos que morassem na parte grega da ilha teriam de se munir de passaporte sempre que quisessem ir a esse terreno visitar a família que lá morava? Confuso…

Os factos, porém, eram os seguintes: os dirigentes alemães – qui d’autre?... – aconselharam a medida de venda de ilhas ao Governo grego para fazer face ao défice público. Claro que tal conselho surgiu na sequência da ajuda da União Europeia e do empréstimo do FMI à Grécia. Os gregos “ganharam” 110 mil milhões de euros emprestados com juros e, com eles, uns quantos “conselhos” sobre como os pagar rapidamente. O Financial Times e o The Guardian especularam amplamente sobre o quanto podia render uma ilha grega ao Governo grego. Qualquer coisa como 2 a 15 milhões de euros. Nada de se desprezar. Investidores chineses e russos e milionários conhecidos como Abramovich manifestaram imediato interesse na compra dos paradisíacos bocados de terra e tinham planos para magníficos investimentos nos locais.

Foi possível entrar em portais da net e “ver” certas ilhas à venda. Como exemplo, Nafsika, uma ilha do mar Jónico, estava em leilão por 15 milhões. Mas nem todas estavam tão bem posicionadas. Algumas ilhas vendiam-se por cerca de 2 milhões, ou seja, menos do que uma casa em certos bairros de Londres. Makis Perdikaris, director de uma empresa chamada Greek Island Properties, afirmou estar duplamente entristecido por “vender terreno do seu país e do povo grego” e ainda por ver que este era “o último recurso” da Grécia. Analistas internacionais acharam o caso “uma vergonha”; outros, com a mesma leveza, declararam que esta acção “prova[va] que a Grécia esta[va] a levar a sério o pagamento da sua dívida externa.”

Entretanto, vieram desmentidos a público a par de re-afirmações da notícia e, apesar de eu ter muitos amigos gregos que vivem nos mais diversos locais da Grécia, nunca fui capaz de apurar ao certo se o Governo tinha vendido as ditas parcelas de ilhas ou não. E isto porque os gregos, actualmente, são os últimos a saber o que lhes acontece. Eu mesma já cheguei a informá-los de coisas que vi na televisão e que eles ainda não sabiam. Há uma espécie de sonegar de informação, suponho que – como eles me disseram – “para manter o povo sossegado e evitar uma revolução”.

Como todos sabemos, as últimas notícias reportaram que a Alemanha está disposta a perdoar à Grécia metade da dívida desta. Ora, todo o perdão tem pouco de magnanimidade e muito de troca, como bem nos tem ensinado ao longo da História a Santa Madre Igreja. Pessoalmente, estou em crer que o perdão alemão está de olho no enorme exército da Grécia. À conta de muita guerra no curso dos tempos com os seus vizinhos turcos – para além de uma enorme complexidade com os macedónios e os cipriotas – e da sua posição geográfica mais ou menos frágil, a Grécia não abdica de um exército fenomenal. Para além de ter serviço militar obrigatório durante 9 meses (sem qualquer excepção para estudos) para todos os rapazes e serviço militar voluntário para as raparigas, a Grécia ainda hoje é o maior importador de armas da Europa e gasta muito do seu PIB em armamento. Curiosamente, segundo aqueles labirintos políticos do costume, os países europeus que cobram a dívida à Grécia (e.g. França e Alemanha) são os mesmos que lhe vendem armas… Mas claro que é bastante mais simpático receber o dinheiro do armamento, perdoar uma dívida e ainda ficar com o maior exército vivo da Europa a lutar por nós e sob o nosso comando, quando e se a gente quiser…

Estou a contar uma pequena parte desta historieta porque agora com as medidas da Troika me ocorreu que Portugal não tem, nem de perto nem de longe, um exército que interesse à Sra Merkel. Que moeda de troca lhe havemos de dar? O Algarve seria uma boa ideia, mas os ingleses já o foram comprando devagarinho e o que resta não dá nem para saldar uma dívida de mercearia. E se fossem as ilhas, como primeiro ocorreu ao cérebro Papandreou? Ah, mas felizmente, nós, ilhas dos Açores, temos uma sorte estupenda. Primeiro, porque turisticamente somos quase desconhecidos. As pobres das ilhas gregas, não lhes bastava terem um clima espectacular como ainda estão no berço da Civilização Ocidental e atreveram-se a fazer do turismo a sua primeira fonte de recursos, tendo quem as visite por razões históricas e quem as visite por razões de sol e mar. Já os Açores, abençoados por Deus com um capacete de brumas quase todo o ano, e historicamente muito pouco relevantes no contexto mundial (vá… convenhamos!), não podem ter tais pretensões. Há mapas-mundo que nem contemplam a representação dos Açores. Temos muitíssima sorte!

A Grécia recebe uma média de 18 milhões de turistas por ano e a esmagadora maioria destes vai visitar as ilhas. Os que de entre vós conhecem as ilhas gregas saberão que, se não fossem os turistas, elas não teriam muito mais de onde retirar lucro, para além de ovelhas, azeitonas e laranjas. Dizem-me que os Açores têm cerca de 160 000 turistas por ano - não encontrei estatísticas e acho um número inflacionado, mas ainda bem que não são mais! Ovelhas não temos, mas não esqueçamos que as nossas vacas parecem bastante felizes, segundo foi apreciado pelo próprio Presidente da República. Mas angustia-me o facto de, contrariamente à Grécia, possuirmos tanta boa infra-estrutura a todos os níveis: hotéis, marinas, estradas, restaurantes. Nas ilhas gregas, isto é tudo caseiro e rural. Só para dar um exemplo, em toda a Grécia, só há 50 marinas… Quem quiser amarrar barcos, amarra em bóias e salta para terra (o que nunca impediu ninguém de lá ir anualmente, inclusive eu mesma que por lá andei a navegar).

Porque é que estou angustiada com isto? Porque imaginem se, por um infeliz acaso, um dirigente alemão – não esqueçamos que estes povos do Norte acham que Açores é “tropical” – tem a infeliz ideia de saber da nossa existência e sugerir a nossa venda ou aluguer ao Governo português? A minha grande esperança é que, dado que ninguém nos dá qualquer importância, se esqueçam que cá estamos. Caso contrário, imagino já o leilão na internet do Corvo, de Santa Maria, da costa norte de São Miguel… Felizmente, nós não valemos tanto que alguém nos queira comprar; aliás, nós damos muita despesa… Recordo um célebre estudo, defendido publicamente, da Universidade dos Açores que reflecte o assustador gasto que é manter cada ilhota açoriana cheia de povinho. Portanto, graças a Deus, ninguém nos há-de querer. Mas, pelo sim, pelo não, o melhor é não fazermos muito barulho. A não ser que queiramos aparecer no E-Bay com uma etiqueta: “Vende-se ou aluga-se. Usado mas em estado razoável. Terreno produtivo. Clima húmido, nevoento, chuvoso, deprimente. Povo tranquilo e conservador, habituado a obedecer sem custo. Vacas felizes.”

Friday, November 11, 2011

DNA - Do Not Ask


Há poucos dias, li uma entrevista no “Público” feita a Torsten Heinemann e a Thomas Lemke, investigadores da Goethe Universität de Frankfurt que estiveram em Portugal a participar num seminário de Patologia e Imunologia no Porto. À primeira vista, pode parecer estranho que dois homens das Ciências (ditas) Humanas tenham vindo a tal encontro, mas a razão é simples: Heinemann e Lemke dedicam-se actualmente ao projecto “DNA and Immigration” que estuda as implicações éticas e sociais da análise de ADN enquanto sistema usado na política de imigração europeia.

Confesso que foi uma surpresa saber que alguns governos europeus usam, desde há anos, as análises de ADN como forma de travar a imigração para os seus países. Isto tem peso sobretudo na questão do reagrupamento familiar, em que os candidatos têm de passar pelo teste de ADN para provar que são filhos biológicos do imigrante em causa e da sua legítima mulher, tal como consta da certidão de nascimento. Na prática, isto significa que tanto os filhos adoptados como os que resultaram de processos de fertilização tecnológica (in vitro, doações de esperma ou de óvulos) ou os filhos de relações anteriores que coabitem com este casal têm a entrada no país automaticamente negada e devem, portanto, permanecer num país diferente do pai se este continuar a optar pela imigração. Escusado será dizer que outras relações familiares com laço biológico (e.g. pais ou avós do imigrante em causa ou seus filhos biológicos maiores de idade) ou sem este laço (e.g. unidos de facto) são automaticamente recusadas.

Heinemann e Lemke estudam a aplicação deste sistema sobretudo na Alemanha, embora estes testes sejam utilizados por 21 países, dos quais 16 são europeus. Teoricamente, não se pode obrigar o imigrante a sujeitar-se ao teste, mas quem não o fizer tem a entrada negada. Não são aceites razões culturais, religiosas ou éticas para a recusa. Nalguns países, é o imigrante quem tem de pagar o teste; noutros, não. Há ainda a interessante variável de (pasme-se!) o sujeito apenas ter de pagar se o resultado se apresentar negativo para ele. Os perfis de ADN ficam na posse dos governos e podem ser usados para identificações criminais, desde já diminuindo a presunção de inocência de um imigrante no contexto da Lei.

Como se prevê, há casos caricatos. Por exemplo, um viúvo africano que teve de submeter dois filhos ao teste e descobriu que um não era seu… Essa criança, órfã recente de mãe, teve de ficar na Somália, enquanto o pai e o irmão emigravam para a Alemanha. Como se vê, é humanamente desastroso, mas bastante eficaz do ponto de vista governamental de “travão” à imigração.

Pessoalmente, tenho a mesma opinião que estes investigadores  que são peremptórios ao afirmar que a noção de família não se restringe à biologia; pelo contrário, é uma noção plural e larga que faz parte do conceito de vida do cidadão alemão – porquê negar um direito básico usufruído por este ao cidadão que vem de fora? Tal negação tem efeitos catastróficos, desde já na integração do imigrante, que vê membros importantes da sua família nuclear excluídos do seu dia a dia sem razão para tal.

Acredito no slogan que surgiu quando a febre dos clones se tornou moda: DNA pode traduzir-se por “Do Not Ask”. Nenhum governo devia arrogar-se o direito de comparar códigos genéticos para decidir se ficamos ou não com aqueles que escolhemos por Amor. Utilizar algo tão pessoal e ademais tão acidental como a biologia de um indivíduo para decidirmos da sua vida é brincar aos deuses e, no caso concreto, aos deuses territoriais e cruéis, fazendo de outros seres humanos as nossas casinhas do tabuleiro do monopólio. Isso terá, decerto, um preço muito caro no futuro.

Heinemann e Lemke consideram que a (sua) Alemanha é o país que aplica os testes de ADN de forma mais implacável, seguindo à risca a genética e sem consideração pelo aspecto humano.

Vagamente, do fundo da memória, salta o nome de Josef Mengele, o médico “Anjo da Morte” que, há 60 anos atrás, fazia experiências nos campos de concentração alemães, transformando meninos de olhos escuros em exemplares de olhos azuis.

Não será que, lenta e suavemente, estamos a caminhar num sentido hitleriano? Nada disto é muito publicitado porque a opinião pública de hoje em dia, informada através dos media, iria revoltar-se, tendo ainda a memória fresca de uma Europa que foi devassada por ideais de pureza genética. Mas terá mesmo isso presente? E não será que (devagar e com muita cautela para não assustar) a poderosa máquina dos economicamente mais fortes está a tentar, de novo, uma raça superior? 

Wednesday, November 9, 2011

Entrevista a Rui Goulart, autor de "A Identidade do Olhar"

CC- “A Identidade do Olhar” é um título que parece revelar muito do que é o livro, já que esta obra tem a particularidade de ser um conjunto de poemas mas também de fotografias, ambos fruto do mesmo autor…

RG- Sim. Confesso que procurei um título que pudesse dar uma janela do que é o livro. Não é por acaso que a capa do livro é uma janela virada para o mar e o basalto, uma foto tirada numa Casa dos Botes em ruínas que tem muito a ver comigo pela ligação ao mar. N’”A identidade do olhar” a fotografia não é uma legenda do texto; é apenas uma viagem que eu proponho – indico o caminho, mas depois ausento-me e o leitor segue ou não. A fotografia e a poesia são ambas muito subjectivas. Existe uma relação entre as duas neste livro, e eu sei que há a tentação das pessoas a procurarem, mas essa relação não é directa nem tão pouco obrigatória entre o título e corpo dos textos e as fotografias. A relação é pessoal, embora a construção foto-texto tenha sido feita em fases diferentes e nem sequer tenha sido pensada como tal inicialmente.

 
CC- Sei que este livro começou por ser uma partilha na internet. Como é que se deu esse início?
RG- É verdade. Penso que este deve ser o primeiro livro na região que nasceu no Facebook. Eu já escrevia, mas só para mim, e passei depois a partilhar um texto acompanhado de uma fotografia, consoante iam “saindo”… Então, surgiu a oportunidade do Banif fazer uma exposição de fotos com este conceito, que passou pelo Pico e por S. Miguel. Depois, surgiu o convite para o livro. Mas, indiscutivelmente, a raiz do livro no seu formato (não na essência) nasceu na rede social.

 
CC- O que é que mais gratificante – escrever ou fotografar? Ou um não faz sentido sem o outro?
RG- Cada um tem finalidades diferentes. A poesia é um encontro comigo, uma libertação, uma pausa que faço na vida do meu círculo profissional que é muito racional e onde tenho de ter um discurso muito directo, usar a voz activa, ter ausência de adjectivação mas ser criativo nessas limitações. Sinto a necessidade de estar algum tempo a escrever depois com emoção (que tem de faltar no jornalismo para haver objectividade). A poesia é quase uma catarse.
Enquanto a poesia é a pausa, a fotografia é o momento. Momentos que ficam registados e que servem para ver e sentir para além do que vemos.
Uso muito esta frase para resumir o livro: a poesia é a fotografia da alma e a fotografia é um poema do olhar.



CC- Esta pergunta é inevitável, apesar de não ter relação directa com este livro: como é que encara este fenómeno, à escala nacional, dos pivots de Telejornal escreverem livros?
O serem figuras públicas muito conhecidas é uma forma de promover mais a obra? Em termos práticos, é possível separar o apresentador de televisão do autor?

RG- As pessoas terão sempre uma reacção… Nem que seja “Não sabia que ele escrevia!”… Não vou negar – apesar de não ser o meu caso! – que há um oportunismo a nível nacional, um aproveitamento do ser-se figura pública para se publicar livros. Normalmente, são romances ou biografias; não conheço nenhum que tenha publicado poesia ou fotografia. Muitos deles publicam para ganhar dinheiro também.
Tenho plena consciência de que fiz exactamente o oposto com este livro – em vez de aproveitar o mediatismo (se é que posso falar em tal nos Açores) para escrever, esta partilha é a fuga ao mediatismo. Aqui, fujo à pressão e à exposição do jornalismo. Gosto de estar no mundo das emoções e do silêncio, de me encontrar comigo, porque a felicidade está dentro de nós… Não tenho objectivos comerciais com este livro. Quero partilhar, porque partilhamos pouco no mundo. E também quero sublinhar isto - eu não escrevo para a Literatura; escrevo o que sinto. Não escrevo para marcar, para entrar no campo da análise ou para entrar nesse mundo restrito que é o mundo literário. Escrevo as minhas emoções. Não estou preocupado com a crítica literária. Porque posso garantir que tudo o que ali está é genuíno e não fabricado e era essa genuinidade que me interessava. Estou consciente das minhas limitações enquanto escritor, quero dizer, não é por aí que quero realizar-me.


CC- Há uma citação de Alberto Caeiro que abre o livro dizendo “Ser poeta não é uma ambição minha / é a minha maneira de estar sozinho.” Não é paradoxal que essa forma de estar sozinho (que é fazer poesia) seja ao mesmo tempo uma forma de se dar a conhecer, partilhando?

RG- …É. Isso não está aí por acaso.
A poesia é a minha forma de estar sozinho mas, ao mesmo tempo, penso que vivemos numa sociedade pouco partilhável, e que não devemos ter medo de partilhar. Pode ser paradoxal o facto de partilhar poemas… Como diz o Lobo Antunes, a partir do momento em que o livro “sai”, ele deixa de ser meu. Mas não deixa de ser o meu modo de estar sozinho, porque os textos foram construídos solitariamente e a minha ambição quando eles foram feitos não passava por ser poeta… Eu próprio estou a interrogar-me sobre essa paradoxalidade agora, porque nunca me tinham feito essa pergunta! Mas é isso – vivemos numa sociedade de imagens e de aparências, onde há imenso medo de mostrar as emoções… Além disso, surgiu esta oportunidade, a reacção das pessoas foi boa e gosto da ideia de ter este registo para mais tarde sorrir … perante a seriedade e a entrega com que os fiz. Estes textos são momentos e olhares interiores, alguns exteriores, alguns até de notícias que dei e transformei aqui …


CC- Podemos contar com mais livros no futuro?

RG- Não sei. Prefiro saborear o momento. A nível de livros, gostava de fazer outro projecto, sem ser necessariamente poético; pode até passar pela área do jornalismo. Mas a época é de crise; os livros, para muitos, não são bens de primeira necessidade… Não gosto de pensar no futuro, mas tenho esse sonho, que já deixou de ser utopia.