Ana de Castro Osório e a Mulher
Republicana Portuguesa é o primeiro livro de Célia Carmen Cordeiro, acabado
de lançar nas ilhas e na capital. A autora é açoriana, docente do quadro da
Escola Básica 2, 3 da Maia (concelho da Ribeira Grande). Porém, os últimos anos
da vida de Célia foram passados nos E.U.A. onde esteve na Universidade de
Minnesota, a tirar Mestrado em Literatura, Cultura e Linguística Hispânica e
Lusófona e ainda a leccionar. De tal modo se apaixonou pelos E.U.A., que por lá
ficou na Universidade de Texas-Austin, onde é doutoranda de Literatura
Luso-Brasileira. Para mais sabermos sobre este livro, resultado da sua tese de
Mestrado, fomos conversar com a autora.
1.Porquê a escolha deste tema?
Cheguei à Universidade de Minnesota, em 2009, com o intuito de estudar e
desenvolver pesquisa na área de Estudos das Mulheres. Assim sendo, comecei por
estudar a Primeira Vaga dos Feminismos na Europa de modo a poder compreender e
contextualizar como essa temática havia tomado forma em Portugal. Quando chegou
o momento de escrever a tese de Mestrado, escolhi uma figura que se destacasse
na luta pelos direitos das mulheres no contexto luso-brasileiro e, além disso,
após a celebração do centenário da República em Portugal, pareceu-me que a obra
de Ana de Castro Osório não tinha sido devidamente enfatizada neste
enquadramento. Então, ela surge-me como a figura de eleição para a ponte que
gostaria de fazer entre Portugal e o Brasil, concernente à luta pelos direitos
das mulheres.
2.Ana de Castro Osório foi, efectivamente, uma mulher da Primeira República.
Mas nota-se nela uma contradição entre os ideais dos direitos judiciais das
mulheres – então uma novidade em Portugal – que defendeu na sua juventude e uma
posição acomodada à sociedade patriarcal, já numa idade mais avançada. Como
podemos entender tal?
A multiplicidade de nuances no seu pensamento parece-me ter a ver não só
com o período conturbado e diversificado a nível político em que ela viveu
(Monarquia, República e Ditadura), mas também com a sua decepção com o regime
e, ainda, com motivos de ordem familiar e pessoal. A sua desilusão contínua com
a República em 1911, e em 1913, na refutação do voto feminino (mesmo que apenas
para as mulheres alfabetizadas), assim como a não institucionalização da
educação feminina em todo o país, fez com que Ana de Castro Osório deixasse de
confiar nas promessas dos republicanos. Além disso, os filhos filiam-se no
Partido Nacionalista e Ana de Castro Osório tem problemas com o regime por
causa disso. Finalmente, fica viúva em 1914. Essas são razões que a fazem
querer ser conhecida mais pelas suas obras literárias e menos enquanto
activista feminista. Ela quer ser reconhecida como escritora, precisa de
dinheiro para viver e o seu público é a burguesia. Por conseguinte, ela escreve
no tom que a audiência quer “ouvir”.
3.Outra dicotomia é a posição que Ana de Castro Osório defende em termos
educativos e mesmo profissionais, sublinhando bem a diferença entre as senhoras
burguesas e as mulheres operárias. Podemos considera-la uma elitista?
Ana de Castro Osório fazia parte de uma elite com nome, mas com pouco
dinheiro. Ela passou por algumas dificuldades financeiras, socorrendo-se muitas
vezes do pai e de outros familiares. Ela passou a escrever, a partir de certa
altura, com o intuito de ganhar dinheiro. Na sua fase de militância política,
ela lutou bastante pelos direitos das mulheres da classe operária,
particularmente no acesso delas à educação e ao trabalho justamente remunerado.
No entanto, ela ainda teme a “desordem social” no que diz respeito à igualdade
de privilégios para todas as classes. Educação para todas as mulheres, por
exemplo, mas diversificada, de acordo com a classe a que cada uma pertence, ou
seja, com a noção clara das diferentes funções sociais de cada mulher. Neste
sentido, o seu pensamento, tal como o de Dom António da Costa, vem na linha do
pedagogo setecentista Ribeiro Sanches. Logo, há a preocupação de uma elitista
em manter a ordem social estabelecida.
4. Na obra de Ana de Castro Osório, sublinha-se que a maior conquista da
mulher é ser mãe, e que esse é o seu maior direito mas simultaneamente a sua
maior responsabilidade. A sua visão da educadora como principal regeneradora da
Nação contraria o sentimento de decadência nacional?
À mãe burguesa cabe educar os futuros cidadãos republicanos. Neste sentido,
ela contribui para combater a decadência nacional através da formação
ministrada em casa aos filhos. As mães das outras classes sociais deverão
complementar a sua experiência profissional com a instrução necessária
ministrada fora das horas de expediente e enviar os filhos à escola. As
mulheres solteiras desenvolverão o seu instinto maternal educando os filhos das
mulheres operárias e camponesas de modo a colmatar a elevada taxa de
analfabetismo nacional. No entanto, é à mulher burguesa mãe que Ana de Castro
Osório atribui a responsabilidade máxima da maternidade como antídoto da
decadência portuguesa, seguindo a linha republicana, positivista, na qual é a
mãe burguesa a regeneradora da nação.
5. Ana de Castro Osório considerava que o papel da mulher em Portugal
estava muito aquém do das suas congéneres mundiais, como ser humano, como mãe,
como filha, como esposa. Sendo a Célia açoriana e trabalhando nos E.U.A., que
lhe parece a situação actual do papel da mulher de um e doutro lado do
Atlântico?
Parece-me que tal como no tempo de Ana de Castro Osório, há mais direitos
legislados do que colocados em prática na sociedade portuguesa. Persiste a
mentalidade patriarcal em Portugal, na medida em que aos dois sexos continua a
ser exigido tarefas distintas na generalidade dos lares, mesmo que nas escolas
se prima pela igualdade de desempenho de actividades. À excepção das grandes
cidades, o resto do país continua a manter uma cultura de submissão feminina.
Não é à toa que só em 2012 tenham morrido 39 mulheres portuguesas vítimas de
violência doméstica, apesar das acções da ACCIG – Associação Cultura e
Conhecimento para a Igualdade de Género – por todo o país. Nos Estados Unidos,
essa questão da desigualdade de géneros não se coloca porque o sistema judicial
funciona muito bem neste país e a assertividade inerente ao carácter dos
americanos denuncia quando alguém se sente discriminado. Nota-se o desempenho
das mesmas tarefas pelos dois sexos, quer seja a conduzir um autocarro, a
cortar a relva ou a presidir a reuniões nos congressos federais. Isso não
acontece em número diminuto e esporádico como em Portugal, mas em larga escala.
Não há aqui a “finesse” europeia de dar lugar à mulher nos locais públicos como
gesto de cortesia masculina porque ambos os sexos têm consciência plena da sua
liberdade de acção para alcançarem todos os objectivos a que se propõem,
confiando simplesmente na capacidade de cada um para tal. Penso que a
influência da religião protestante neste país impulsionou muito a participação
feminina na sociedade, desde logo, ao considerar homem e mulher de igual forma
filhos de Deus e, por isso, com legitimidade para propagar a Sua Palavra. Foi
com base nesse pensamento que as convenções religiosas deram lugar às
convenções em prol dos direitos das mulheres americanas como, por exemplo, a de
Seneca Falls, em 1848. Na Europa do Sul, os padres influenciaram negativamente
as mulheres durante demasiado tempo e, ainda hoje, em muitas vilas e aldeias,
teme-se a ira de Deus, lamentavelmente.
É nisso que entronca a nossa cultura judaico-cristã, quer queiramos, quer não.