Há um video
popular nas redes sociais que foi distribuído para efeitos educacionais (assim
diz o “disclaimer”) e que é a transcrição de uma chamada que uma menina de 6
anos fez para o número de emergência quando o padrasto estava a bater na mãe e
na irmã bebé. O telefonema demonstra a perturbação e a impotência da criança
que pede para as autoridades virem resolver a situação e que não consegue
explicar mais do que “ele está a magoar a minha mãe, e agora tem a minha irmã e
já atirou a minha irmã ao chão”. Ouçam os gritos da menina a pedir para ele
parar, e a determinação que ela tem quando deixa o telefone para ir verificar
quem se magoou e, no fundo, tomar conta da situação – com 6 anos…
Isto é
importante porque, na nossa sociedade, está na moda a ideia de que as pessoas
que batem nos mais fracos podem, no entanto e apesar disso, ser excelentes
pessoas para com esses mesmos seres noutras situações. De facto, a nossa
sociedade sofre de Síndroma de Estocolmo quando passa sentenças tais como “Bate
na mulher mas olhem que é muito bom pai…” São situações à Paco Bandeira: mesmo
que um tipo aponte uma pistola à cabeça da mulher quando ela está com a filha
ao colo (e sublinho este por-maior circunstancial), o mais normal é
considerar-se que é um progenitor às direitas, mas que se desnorteou porque o
fizeram perder a cabeça.
A história da
Lisa é antiga – a menina já não tem 6 anos, tem 24 e confirma tudo aquilo que
sabemos sobre violência doméstica. Tanto ela como os irmãos acabaram por ter
sequelas do que viram, ouviram e passaram – são, alias, perfeitamente utópicas
as concepções de que um homem que bate na mulher não bate nos filhos. Quem
objectifica os seres humanos como seus pertences não se fica por um cônjuge.
A maior questão
é a postura das autoridades. Portugal assinou uma Convenção Internacional que
diz que as crianças vítimas de violência doméstica têm de ser respeitadas e que
os agressores dos parceiros não podem conviver com os filhos – a quem,
directamente ou por proxy – também agrediram. Mas quantas vezes isto é
respeitado? Não conheço nenhum caso. Dos que conheço, mesmo se a mulher (e
desculpem se pareço parcial, mas o facto é que as mulheres, pelo facto de terem
muito menos força física, continuam a ser bastante mais violentadas do que os
homens) conseguiu uma ordem de restrição para si, continua a ter de ir entregar
os filhos ao fim de semana para, utopicamente, irem passar aquilo a que a
Justiça chama “uma vida normal.” A Justiça acredita que “uma vida normal” para
um miúdo é viver transido de medo.
Claro que não é
apenas em Portugal que esta completa esquizofrenia social se passa. Há um caso
que deu brado nos últimos anos nos E.U.A. de uma menina de 14 anos que foi
violada e que, ao ter a bebé, se deu conta de que ia reviver psicologicamente a
sua violação toda a vida, já que o violador pediu guarda conjunta da bebé e
esse direito foi-lhe concedido. Em primeiro lugar, imagino quão difícil será
para esta menina ir entregar periodicamente a filha a um violador (chamem-lhe
pai, se acharem que um pai ou até que um homem se configura nesses termos) e
imagino os receios ulteriores desta mãe que advém do progenitor ter violado uma
rapariga de 14 anos e ter uma bebé do sexo feminino à disposição.
Voltando à
violência doméstica que não inclui violência sexual, parece-me sempre irreal
uma certa postura de avestruz que enfia a cabeça na areia para não ver. Se é
certo que Portugal é o país europeu com mais casos de feminicídio e de
violência doméstica e que, dentro de Portugal, os Açores ganham a medalha, não
é menos certo que os vizinhos dizem sempre que nunca ouviram nada e a sociedade
acha-os sempre bons rapazes…. A não ser, é claro, que sejam marginais ou
financeiramente falidos, casos nos quais ninguém fará qualquer esforço para os
defender. No entanto, no caso do homem violento e bem falante, o mais provável
é a vítima receber a seguinte resposta quando vai ao Hospital ou ao Tribunal:
“Se ele não lhe partiu nenhum osso, também não pode ter sido assim tão bruto!”