Rachel Dolezal, líder da National
Association for the Advancement of Colored People nos E.U.A., fez história a
semana passada. Ou, por outra, fizeram-na os pais da Sra Dolezal quando vieram
a público afirmar que a filha não tinha origens negras – como dizia – e que era
uma perturbada a querer assumir uma identidade diferente da sua identidade
original. O caso imediatamente levou ao levantamento de vozes de apoio e outras
de censura: afinal pode ou não uma mulher caucasiana identificar-se como sendo
negra?
As vozes contra dizem estar
ofendidas pelo facto de Dolezal ter mentido e assim ter alegadamente conseguido
chegar a líder da referida associação. No entanto, James Wilson, antigo
presidente, afirma que a etnia não é relevante para esta liderança, embora seja
tradicional que seja um/a negro/a a defender os direitos dos negros. Outras
pessoas (curiosamente, brancos na sua maioria) dizem ressentir-se pelo facto de
Dolezal ter dito repetidamente que conhecia na pele os problemas dos negros, o
que – sendo ela caucasiana – não pode ser verídico.
As vozes a favor dizem que
Dolezal tem feito um trabalho excelente, e que só isso prova que ela é
suficientemente sensível à questão. Quanto ao assumir de identidade, houve quem
muito sagazmente referisse o caso sincrónico de Caitlyn Jenner, que com 65 anos
passou de Bruce Jenner – homem, estrela de TV e ex- campeão olímpico – a
Caitlyn - mulher, capa da Vanity Fair.
O argumento é: se toda a nação
aceitou a existência da trans-sexualidade porque não pode aceitar a
trans-racialidade?
Bem, está na moda apoiar a
primeira e a segunda não… Mas vamos tentar ser mais objectivos. Surpreendeu-me
que a comunidade trans se tenha vindo manifestar contra a Sra Dolezal (depois
do comentário feito sobre Jenner, associando ambas as mudanças). O slogan era
que a trans-racialidade não existe mas a trans-sexualidade sim. Confesso que
esperava maior abertura por parte daqueles que, supostamente, sofreram devido a
terem nascido na identidade errada. Mais foi dito que a etnia era algo genético
e, portanto irrefutável (esperem… é mais genético do que o género? Estou
confusa) e que a identidade sexual era uma escolha mas a étnica não (eu julgava
que o Michael Jackson já tinha provado o contrário…). Além disso, foi reclamado
que Dolezal não pode fingir que sabe o que é ser negra, porque nunca viveu no
corpo de uma nem experienciou a discriminação que uma negra sofre… Alguém me
ajude a perceber, segundo esta brilhante linha de pensamento defensivo, como é
que Jenner – pai de seis filhos e homem durante mais de 60 anos – sabe o que é
sofrer dores menstruais e ter o estrogénio em alta, ou alguma vez ter sido
rejeitado num emprego porque estava grávido? Convenhamos: se aceitamos um não
há argumento para renegar o outro. Ou seja: se uma pessoa pode mudar de género,
porque não pode mudar de etnia? Afinal, resumem-se ambos a uma questão de
identidade.
O argumento de que a
trans-sexualidade é reconhecida mas a trans-racialidade não o é não pode
convencer ninguém. O reconhecimento de algo como realidade é meramente
diacrónico e dependente de pressões sociais, como todos sabemos…
Quanto ao caso específico da Sra
Dolezal, não tenho opinião porque dele pouco sei. Sei que ela tinha seis irmãos
adotivos, todos negros, e que acabou por adotar um deles como filho quando os
seus pais foram provados incapazes. Cheira-me que há algo de absurdamente
estranho quando os pais de alguém vêm a terreno dizer que a filha é perturbada
e disfuncional… Ou, como dizia o médico Scott Peck, “quando um pai me apresenta
um filho como sendo doente (i.e. louco), salvaguardo sempre a probabilidade de
que a doença venha de quem afirma. Afinal, nada há de mais disfuncional do que
um progenitor, idealmente figura protetora, que acusa os filhos de algo.”