A história do navio de Teseu é
conhecida. Na mitologia grega, Teseu, que venceu o Minotauro na Ilha de Creta,
voltou a Atenas por barco. Os atenienses preservaram o navio durante muito
tempo. Com a passagem dos anos, o navio deteriorava-se… e as partes que já não
estavam boas foram sendo substituídas por outras novas. Assim, madeiras do
casco, mastro e velas, todos sofreram substituição. Plutarco, historiador grego
que depois alcançou a cidadania romana, levantou, então, uma pertinente
questão: até que ponto o navio continua a ser o navio de Teseu se as peças que
o constituem já não são as mesmas?
A pergunta incide na questão da
nossa perceção sobre o que seja a identidade – a identidade será estrutural ou
será mítica? Até que ponto ela subsiste à mudança radical? A mudança das
propriedades de um objeto desqualificam-no como sendo esse objeto e passam a
qualificá-lo como sendo outro?
A Lei de Leibniz diz-nos que X é
igual a Y quando (e apenas se) X e Y possuírem as mesmas propriedades e as
mesmas relações. Mas não será que estas mudam, necessariamente, com o tempo? Como
podemos inferir que uma propriedade num tempo é a mesma noutro tempo? Afinal, o
tempo, se é alguma coisa, é devir, é mudança.
Para os budistas, a questão não
existe já que a única essência que os seres possuem é serem, à partida, desprovidos
de ser; a nossa perceção é que atribui características ao que é conceptualmente
vazio. Mas o nosso pensamento ocidental não consegue aceitar uma existência
desprovida de substância intrínseca.
É discutível. Alguns argumentam
que sim, seria o mesmo navio, tanto quanto uma pipoca continua a ser um grão de
milho. Outros dizem que não, porque os seus constituintes se regeneraram
(quase) inteiramente.
Podia complicar isto com
política, agora que estamos na época de campanha, usando a seguinte proposição:
se apenas mudam alguns (poucos…) agentes, será que mudam as essências das
propostas? Mas não vou por aí. A política não me oferece grande pensamento
desde que Muriel Barbery, uma das escritoras contemporâneas mais brilhantes,
disse a última palavra sobre ela: “é um brinquedo de meninos ricos que eles não
emprestam a mais ninguém.”
Então, vou complicar com
filosofia, um brinquedo ao alcance de todos. Heraclito disse que um rio é
sempre um rio, sendo que as suas águas vão eternamente alterando… E Plutarco
refutou que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio. Depois há
as características que, segundo o sistema aristotélico, definem os seres: a
forma, a matéria, o propósito e a origem. Se o navio tem a mesma forma, já a
origem e a matéria podem ou não ser consideradas iguais. O propósito esse já
não é, claramente, o mesmo. Mas poderemos inferir daí que é o propósito que
define o ser ou o propósito é apenas uma das suas facetas?
Se acharam esta discussão -
meramente teórica – uma complicação sem resposta (nem cabimento na silly
season), experimentem pensar nisto em termos que envolvam seres humanos. Porque
é na Humanidade que o paradoxo de Teseu se complica… Quanto subsiste do
rapazinho de calções que ainda ontem andava na escola no adolescente de quinze
anos? E quanto desse adolescente está no homem adulto? O que há de comum entre
o rapazinho da escola e o velho em que ele se tornou? Serão eles o mesmo “navio”,
se já nem as suas células são as mesmas…?