Quando eu estava na Escola
Primária, líamos a coleção toda de Os Cinco. Dois rapazes, duas meninas (uma
maria rapaz e uma perfeita boneca) e um cão que passavam os verões a acampar e
a apanhar malfeitores a quem nenhum adulto parecia capaz de deitar a mão. Os
Cinco fizeram as delícias de gerações de crianças - o primeiro livro foi
escrito nos anos 40. Quando falei disto a uma criança da primária de hoje em
dia, ela riu-se muito e disse que Os Cinco eram histórias sem pés nem cabeça.
Fiquei muito intrigada com isto,
porque eu tinha uma visão idealizada desses miúdos aventureiros que faziam um
trabalho de detetive melhor do que a polícia e ainda se divertiam a descobrir
passagens secretas e tesouros escondidos. Mas a reação da criança foi tão
sarcástica que arranjei logo uns livros de Os Cinco para os voltar a ler. À luz
dos dias de hoje, tive um grande choque.
Os Cinco já não servem a
criançada de hoje em dia. Se nos meus tempos já parecia estranho que não vissem
televisão nem ouvissem rádio (os Cinco jamais o faziam), como é possível
aceitar agora que não tenham computador nem tablet nem telemóvel nem nada de
nada? Os pais deles têm UM telefone em casa e quando as crianças vão de férias
mandam-lhes postais. Passam dias e dias sem comunicar uns com os outros
(difícil de acreditar nos dias que passam…) “Não se esqueçam que temos de ir
aos Correios enviar uma carta à tia Clara para ela saber que chegámos bem” diz
o Júlio. Ir onde enviar o quê? Os putos de hoje em dia não se revêem nesta
realidade.
Outro ponto: os pais e tios de Os
Cinco seriam hoje imediatamente sinalizados pelas CPCJ e ficavam sem a guarda
daquelas crianças num ápice. Note-se como apesar dos putos estarem num colégio
interno se livram sempre deles assim que eles chegam a casa nas férias. Mandam-nos
logo acampar SOZINHOS para os sítios mais perigosos e mal frequentados que há
(falésias, ilhas desertas, quintas abandonadas, etc, etc). Se isto não é esperar
que nunca mais voltem por obra do destino, não sei o que seja. Note-se como os
próprios putos o sabem: “Aposto que a mãe vai ficar satisfeita por se ver livre
de nós durante uns dias” é frase recorrente nos livros. E, de facto, fica! “A
tia Clara estava aliviada por os Cinco irem acampar”. Os miúdos também, porque
“não suportavam o mau génio do tio Alberto”. Sem comentários.
Ademais, aqueles miúdos nunca se
lavavam. A higiene era outra coisa naqueles tempos. É difícil explicar aos
miúdos de hoje porque é que apesar de Os Cinco passarem o dia a cair na lama, a
dormir no feno e no tojo, e a andar de bicicleta sob a chapa do sol, só
“lavavam a cara e as mãos nos regatos”. Particularmente os rapazes, não achavam
necessário mudar de roupa. Deviam todos sofrer de obesidade porque a importância
que é dada à comida naqueles livros é soberana. Não há refeição que não leve
ovos com presunto, bolo de frutas, pão e empadão de carne. Dormir a sesta a
seguir ao almoço era frequente mesmo quando os miúdos se tornam adolescentes.
É também notório o sexismo dos
livros. São sempre as meninas quem faz as camas (dos rapazes também) e lava a
louça. “Tarefas de meninas” é referido constantemente. Pela positiva, é
considerado altamente indecoroso um rapaz bater numa rapariga (isso faz dele um
“mariquinhas” – a palavra não é usada mas está implícito). Por ser “Maria
Rapaz”, a Zé tem uma posição especial mas ingrata: não deixa de ter de fazer
tudo o que as raparigas fazem, mas é-lhe permitido fazer o que fazem os
rapazes.
Realmente, Os Cinco já não servem os miúdos de hoje.
Têm muitos pontos interessantes: a educação britânica virada para a
verticalidade, a independência e o ar livre (nunca foram os pontos fortes da
educação portuguesa como Eça de Queirós bem sublinhou), mas não estão updated.
E não estar updated é fatal para as gerações pós ano 2000.