Por vezes, acontece receber feedback daquilo que escrevo – e
agradeço. As opiniões acabam sempre por ir dar ao mesmo: consideram-me
feminista por defender o direito à igualdade de oportunidades entre os géneros.
Esta opinião por parte de quem lê o que escrevo e rejeita ou partilha da mesma
visão não é displicente para o que vou escrever a seguir.
É do conhecimento geral que foi apresentada uma proposta na
Assembleia da República para que o Cartão de Cidadão passasse a denominar-se
Cartão de Cidadania, já que, segundo o diploma apresentado pelos senhores
deputados, “não respeita a identidade de género de mais de metade da população
portuguesa.”
Ora, ao contrário do que os senhores deputados escrevem, não
existe um “Cartão do Cidadão” mas sim um “Cartão de Cidadão” (verifiquem, por
favor, o que está escrito nos cartões) e esta diferença na ausência de artigo é
importante. É crucial. A preposição “de” está ali sozinha, sem artigo acoplado,
exatamente para que se entenda que não refere nem o masculino nem o feminino
mas sim ambos. Outro exemplo é o “Cartão de Estudante”, que só ainda não fez
mossa porque a palavra “estudante” não tem conjugação diferente para os dois
géneros a não ser pelo uso do artigo que a antecede, i.e. “o estudante” versus
“a estudante”. Mas que tem, tem! Logo, o Cartão DE Cidadão tem,
propositadamente, uma existência sem género porque sem artigos indicativos de
tal. Os senhores deputados atribuíram-lhe um género masculino no diploma onde
lhe chamam sempre “Cartão DO Cidadão”, mas no cartão em si tal confusão é
inexistente.
Passemos à frente. Na língua portuguesa (não só nesta
língua, aliás; o francês é outro exemplo), o substantivo masculino é usado para
referir o masculino e o feminino quando usado numa forma de plural. Ex: “Os
pais do João” é, geralmente, entendido como “o pai e a mãe do João” e não como
“o João foi adotado por um casal gay”; “os meninos da minha turma” pressupõe os rapazes e raparigas que lá estão e não que a
turma é composta apenas por rapazes. É a língua oficial que temos; como diz o
outro, é o que há. Outra questão ainda é que o substantivo masculino em
português pode referir, por congregação, o género feminino, tornando-se neutro,
quando refere realidades genéricas e pluralistas, por ex: “o Homem é um ser
social”, i.e. a Humanidade, homens e mulheres. É nesta última que se enquadra o
Cartão de Cidadão, que enquadra cidadãos e cidadãs, portugueses e portuguesas.
A língua portuguesa, no seu estado atual, não é
inclusiva? Isso é outro debate, que podemos travar, considerando a “gender
neutral language”, uma ideia cada vez mais em voga na anglofonia. Mas é a
língua portuguesa tal como ela está gramaticalmente estruturada. A não ser que
estejamos a planear uma revolução gramatical da língua em grande escala
(prevê-se outro acordo?), este tipo de medidas soa apenas a desconhecimento
linguístico do português tal qual ele é no momento presente. A Língua é sempre
reflexo da Cultura, não o contrário. Forçar o oposto não costuma gerar frutos.
Temo, além disso, a quantidade de dinheiro e meios que se vai
gastar com esta brincadeira de andar a mudar o Cartão de Cidadão e que poderia
ser usado para medidas muito mais inclusivas e que efetivamente ajudassem
bastante mais a Igualdade. Vamos voltar sabem a quê? Ao velho e saudoso…
Bilhete de Identidade! É a minha proposta: inclusiva, amarelinha (nem azul nem
rosa para não incomodar), baratinha, quiçá antiquada, mas amiga do ambiente já
que é reciclada.