Recentemente, o premiado
realizador Bernardo Bertolluci veio a público dizer que a famosa “cena da
manteiga” no seu filme “O último tango em Paris” não estava no guião.
Consequentemente, foi uma total surpresa para a atriz Maria Schneider, na época
com 19 anos, quando tudo aconteceu. Bertolucci combinou toda a ação com Marlon
Brando, então com 48 anos, e encenou com o ator principal, e apenas com ele,
uma violação anal que não revelou à atriz como se iria passar. “Não queria que
ela atuasse, queria captar a verdadeira emoção de uma real humilhação.” Quando
perguntaram a Bertolucci se estava arrependido de não ter dito nada a Maria
Schneider, ele disse que arrependido não estava porque “há que fazer
sacrifícios em nome da arte”, mas que é pena que a “pobre Maria tenha morrido
cedo demais e sem nunca me perdoar”.
Sou cinéfila, mas não tenho
paciência para o filme – não porque este pertença a uma geração anterior ao meu
nascimento, mas porque o plot “americano de meia idade conhece francesa juvenil
ansiosa por viver relação erótica com ele” pode ter tido muito sucesso quando
foi lançado pelas cenas (então) ousadas mas hoje é um filme demodé para homens
em crise.
Das afirmações de Bertolluci,
muitas coisas se depreendem. Primeiro, ele sabe que pode fazê-las com absoluta
impunidade. Nunca acontece nada a um tipo que é famoso, premiado e velho,
confortavelmente instalado em 75 anos de prémios da Academia. Uma só destas
premissas bastaria para o ilibar, mas as três juntas são imparáveis. Depois,
repare-se no irrealismo e na arrogância do tal “sacrifício em nome da arte” que
o realizador menciona, pois ele não fez sacrifício algum! Foi a atriz que foi
humilhada pelo realizador (como ele mesmo reconhece), pelo ator com quem
trabalhava e perante toda a equipa que assistia à cena… sendo que tais imagens
ficaram para a posteridade num filme que pode ser repetido até à exaustão por
quem quiser visionar a cena. Ademais, o sacrifício não foi consentido, pois não
lhe foi perguntado se ela acedia à cena e nem tão pouco lhe foi dado recusar
porque ela ignorava o que se ia passar!
No entanto, o mais curioso de
tudo isto é que durante toda a sua (curta) vida – Schneider morreu na meia
idade ainda, após internamentos psiquiátricos e problemas severos – a atriz
proclamou isso mesmo: que não tinha sido avisada dessa cena, onde se sentira
“humilhada e um pouco violada” por um “homem manipulativo e sujo” (Bertolucci),
pessoa com quem aliás cortou contacto quando as filmagens terminaram. No
entanto, nunca ninguém acreditou em Maria Schneider apesar dela manter sempre a
mesma versão coerente da história. Talvez porque não era famosa, porque era
mulher ou porque não convinha manchar a reputação e imagem de Bertolucci, o
certo é que Schneider se converteu no elo mais fraco e foi conveniente não
acreditar nela – de todas as inúmeras vezes em que contou o sucedido. Mas
bastou uma única entrevista de Bertolucci a dizer que isto aconteceu para
ninguém mais duvidar! E ademais, não o criticar: pois se o grande Bertolucci o
fez, o certo é que ele teve uma boa razão -
foi o seu amor à arte… Vale a pena estragar uma vida para fazer um
filme(zito).
O público alimenta o narcisismo
de poderes tóxicos, não vê falhas nos seus ídolos mesmo quando estes apontam
para os seus pés de barro, desculpa-os com bonomia e encontra razões para as suas
perversidades, sublimando tudo numa espécie de força maior, o que só vem abrir
caminho para posteriores e maiores venenos. A culpa não é só de Bertolucci. É
de todos os que o apoia[ra]m, mesmo que apenas calando.