... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 16, 2016

O último tango para Maria

Recentemente, o premiado realizador Bernardo Bertolluci veio a público dizer que a famosa “cena da manteiga” no seu filme “O último tango em Paris” não estava no guião. Consequentemente, foi uma total surpresa para a atriz Maria Schneider, na época com 19 anos, quando tudo aconteceu. Bertolucci combinou toda a ação com Marlon Brando, então com 48 anos, e encenou com o ator principal, e apenas com ele, uma violação anal que não revelou à atriz como se iria passar. “Não queria que ela atuasse, queria captar a verdadeira emoção de uma real humilhação.” Quando perguntaram a Bertolucci se estava arrependido de não ter dito nada a Maria Schneider, ele disse que arrependido não estava porque “há que fazer sacrifícios em nome da arte”, mas que é pena que a “pobre Maria tenha morrido cedo demais e sem nunca me perdoar”.

Sou cinéfila, mas não tenho paciência para o filme – não porque este pertença a uma geração anterior ao meu nascimento, mas porque o plot “americano de meia idade conhece francesa juvenil ansiosa por viver relação erótica com ele” pode ter tido muito sucesso quando foi lançado pelas cenas (então) ousadas mas hoje é um filme demodé para homens em crise.

Das afirmações de Bertolluci, muitas coisas se depreendem. Primeiro, ele sabe que pode fazê-las com absoluta impunidade. Nunca acontece nada a um tipo que é famoso, premiado e velho, confortavelmente instalado em 75 anos de prémios da Academia. Uma só destas premissas bastaria para o ilibar, mas as três juntas são imparáveis. Depois, repare-se no irrealismo e na arrogância do tal “sacrifício em nome da arte” que o realizador menciona, pois ele não fez sacrifício algum! Foi a atriz que foi humilhada pelo realizador (como ele mesmo reconhece), pelo ator com quem trabalhava e perante toda a equipa que assistia à cena… sendo que tais imagens ficaram para a posteridade num filme que pode ser repetido até à exaustão por quem quiser visionar a cena. Ademais, o sacrifício não foi consentido, pois não lhe foi perguntado se ela acedia à cena e nem tão pouco lhe foi dado recusar porque ela ignorava o que se ia passar!

No entanto, o mais curioso de tudo isto é que durante toda a sua (curta) vida – Schneider morreu na meia idade ainda, após internamentos psiquiátricos e problemas severos – a atriz proclamou isso mesmo: que não tinha sido avisada dessa cena, onde se sentira “humilhada e um pouco violada” por um “homem manipulativo e sujo” (Bertolucci), pessoa com quem aliás cortou contacto quando as filmagens terminaram. No entanto, nunca ninguém acreditou em Maria Schneider apesar dela manter sempre a mesma versão coerente da história. Talvez porque não era famosa, porque era mulher ou porque não convinha manchar a reputação e imagem de Bertolucci, o certo é que Schneider se converteu no elo mais fraco e foi conveniente não acreditar nela – de todas as inúmeras vezes em que contou o sucedido. Mas bastou uma única entrevista de Bertolucci a dizer que isto aconteceu para ninguém mais duvidar! E ademais, não o criticar: pois se o grande Bertolucci o fez, o certo é que ele teve uma boa razão -  foi o seu amor à arte… Vale a pena estragar uma vida para fazer um filme(zito).


O público alimenta o narcisismo de poderes tóxicos, não vê falhas nos seus ídolos mesmo quando estes apontam para os seus pés de barro, desculpa-os com bonomia e encontra razões para as suas perversidades, sublimando tudo numa espécie de força maior, o que só vem abrir caminho para posteriores e maiores venenos. A culpa não é só de Bertolucci. É de todos os que o apoia[ra]m, mesmo que apenas calando.