Uma semana depois da entrada no Ano Novo, já todos se esqueceram
das resoluções de boa vontade do dia 1. Encolhe-se os ombros e até a memória ao
que em 2016 provocava espanto. Lá nos vamos habituando a Trump e ninguém
estranha que Dylan seja Nobel da Literatura – embora ainda se façam piadas com
“Os Lusíadas” em versão rap sugerindo “um Grammy póstumo de Carreira para o
Luíz Vaz”.
Como dou aulas em duas universidades, não tenho tempo para
ler o que gostaria (reparem que isto devia ser um paradoxo mas adiante… ), pelo
que raramente leio artigos de opinião. Porém, tenho um colega que deixa na
secretária crónicas interessantes, e assim vi o excerto de uma opinião de Emma
Lindsay, onde ela fala do que “decidiu deixar de fazer este ano”. Em vez da típica
lista de coisas a começar em 2017, esta era a lista de coisas a cortar pela
raíz.
Lindsay diz que deixou de ter paciência para todos os que
negam a sua realidade, dizendo-lhe “Estás a exagerar”, “isso não pode ter
acontecido” ou “vê lá se deixas de ser piegas.” Bem sei: isto recorda a infeliz frase de Passos
Coelho, mas aqui Lindsay falava mesmo de quem, supostamente, passa por ser amigo
dela.
Sejamos práticos: em última análise, não há maneira de uma
pessoa saber como é que outro ser humano se está a sentir. Ainda não foi inventada
a forma de nos metermos na pele de outrem. Logo, podemos sempre dizer “não
tenho tempo para lidar com os teus sentimentos/visão das coisas agora” (isso é
válido e aceitável) mas não podemos nunca dizer “Na verdade, não sentes isso.
Eu não me sentiria assim, portanto também não te sentes assim. Estás só confuso”
ou outras nhanhas do género.
Concordo
e vou mais longe. Colocamos tanto ênfase em fazer uma boa alimentação, praticar
exercício, deixar vícios, enfim, não fazer o que nos faz mal, mas esquecemos
este ponto fundamental que é cortar as presenças tóxicas da nossa vida. Deixar
de manter relações com quem nos oxida ou até nos maltratou não é ser estranho, é
ser humano e é ser, sobretudo, amigo de nós mesmos. Quem não entende ou nos
nega esse direito, talvez devesse repensar a sua postura mas nunca obrigar-nos
a ser "bonzinho" ou "esquecer"... como não nos obrigaria a
tomar cocaína - dizendo que é para nosso bem! “Para nosso bem” é sempre paternalista
quando não pedimos conselho.
"Perdoar e oferecer a outra face" é
um conceito mal traduzido. Aliás, a Bíblia também diz “olho por olho e dente
por dente”, portanto convém não exagerar. Não há nada de errado em criar autoestima
suficiente para dizer "chega"… ou corremos o risco da tal outra face
ficar toda vermelha de bofetadas. Negar sentimentos de amargura e de recusa em
relação a quem nos fez mal é muito negativo. Temos direito a tê-los perante
quem nos agride. Perdoe quem acha que deve, mas ninguém deve obrigar outro a
sentir como ele. Além disso, perdoar é diferente de aproximar. Criar distância em tais casos é sinal de inteligência
emocional.
Uma personalidade obrigada a calar-se durante anos perante injustiças, explodirá um dia, seguramente de modo
pouco saudável. Isto serve perante progenitores, filhos, casais, amigos,
patrões, qualquer pessoa que nos cause mal estar, muito mais as que são fonte
de tortura. A vida é curta para viver em regime de escravidão.
Como dizia Jacques Brel, "Amemos quem devemos amar e esqueçamos quem devemos esquecer". Ou, mais prosaicamente, como dizem os brasileiros “Cancela essa intimidade que você acha que tem comigo”, sendo “achar” aqui um verbo de compreensão fundamental.