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Thursday, February 15, 2018

Honrarás Pai e Mãe

O quarto mandamento (o quinto nalgumas edições) das tábuas dadas a Moisés segundo a tradição judaico-cristã só tem predecessores no amor a Deus sobre tudo, amor ao próximo e manutenção de dias santos, o que significa que ações condenáveis como roubar, matar, cobiçar, são todas mandamentos inferiores na ótica religiosa.

Repare-se que o mandamento não é “honrarás pai e mãe se forem boas pessoas” ou “bons progenitores”, mas sim “honrarás pai e mãe”, o que pressupõe que, independentemente de terem razão, tratarem bem os filhos ou não, mantem-se a obrigação filial suprema. A Bíblia dá-nos exemplos. Não consta que Isaac se tenha tornado inimigo de seu pai Abraão, mesmo tendo-se este prontificado a sacrificá-lo “como um cordeiro, para o Senhor”. Também Cristo obedeceu a seu pai, passando por todas as torturas, humilhações e morte na cruz.

Em contraponto, não há nenhum mandamento que ordene “honrarás a teus filhos”. Nem mesmo uma referência que a isso incite. Os filhos sempre foram considerados como propriedade dos seus genitores, um bem valorativo tão mais importante quanto carregava em si o prolongamento do ADN e do nome familiar, assegurando a perpetuação da espécie e imagem social. Apesar dos totais direitos de dispor dos filhos, a revolta da prole não era tolerada: a pena de morte por apedrejamento coletivo da comunidade era o que esperava um filho que desrespeitasse seu pai, segundo o Deuterónimo.

Também na Roma Antiga, encontramos um modelo em que o pater famílias era senhor absoluto, exercendo autoridade autocrática sobre a sua propriedade, onde se incluíam escravos, mulher e filhos.  Este pai tinha direito de dispor das suas crianças enjeitando filhos, matando deformados, vendendo outros e exercendo disciplina à vontade. Um filho homem seria paterfamílias só depois do falecimento do seu genitor visto que a gens era única.

Logo, não é difícil saber de onde nos vem a ideia de que pai e mãe são os nossos deuses particulares na Terra – conceito mais do que enraizado na sociedade há milhares de anos.

Só no século XX apareceram noções de direitos da criança a nível mundial e foi apenas nos anos 90 que se assinou a Convenção dos Direitos da Criança. Mas como uma criança pertence a seus pais, tudo necessita da autorização de ambos os progenitores. Assim, quando um dos progenitores foi o autor da violência basta não autorizar a recolha de provas da mesma para que esta não exista. Pode a Lei exigi-lo mais tarde, mas há provas que desaparecem com o tempo.

Ficamos muito chocados quando vemos casos como o das 13 crianças em cativeiro e violentadas pelos pais durante anos, descobertas o mês passado na Califórnia. “Isto só na América!” diz-se. Fracas memórias. Pois eu recordo bem na minha infância dos anos 80 de ver uma foto da “Menina Galinha”, dez anos mais velha que eu. Uma menina, absolutamente normal, que desde bebé até aos 9 anos os pais tinham criado num galinheiro, como um animal, perante a comunidade “muda” de uma vila portuguesa. Não há nada pior que sítios onde todos se protegem.

Não é difícil amar progenitores que nos amam. Impossível é amar progenitores que nos maltratam. Como agir? Em resposta, o Talmude conta a história de um homem grandioso cuja mãe destruiu todos os seus pertences e lhe cuspia incessantemente na cara, enquanto ele manteve a sua compostura. Fica a questão: foi ele capaz de agir assim porque era um homem excecional? Ou tornou-se excecional em face desta adversidade?