... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, March 29, 2019

A culpa é dos políticos?


Esta semana, tive o privilégio de falar com um homem extremamente sábio, cujo nome não quero revelar agora. Assisti a uma conferência sua sobre Direitos Humanos e deixei-me ficar, com o propósito de encetar conversa. Feita a apresentação, depressa nos debruçámos sobre as várias indignidades e injustiças que se praticam, nomeadamente sobre as franjas mais frágeis das populações.

Conversávamos sobre um país em particular, do qual ele tem um conhecimento profundo e que eu também conheço. Nesse momento, eu afirmei que gostava muito do dito país e suas pessoas, mas que o problema “era o governo, não o povo.” Ele sorriu, e retorquiu pausadamente: “Mas o que é um governo senão o reflexo do seu povo?” Surpreendida, disse-lhe que não concordava inteiramente com a sua opinião. “Porque tem sangue de europeia do Sul” respondeu-me ele, “é típico, e perdoe-me se a ofendo, fazerem esse exercício de distância entre a comunidade e o Estado, nomeadamente quando se sentem desiludidos. Desta forma, podem reclamar sem se responsabilizarem. Mas numa sociedade livre – parto do princípio que falamos de sociedades livres, pelo menos em teoria! – o Estado não é mais do que o espelho da esmagadora vontade dos cidadãos que o constituem… e pelo tempo que esse povo assim o desejar. Repare que se o povo desejar mudança, tem o instrumento de mudança nas suas mãos, seja por meio do voto, seja por meio da revolução: qualquer uma destas situações é viável e comprovada, uma mais amena e com data marcada pelo próprio Estado, outra menos serena, mas igualmente eficaz no que a uma mudança diz respeito.”

Admiti que sim, e que, na verdade, o meu sangue talvez tivesse influência, já que o português não é um povo que pensa na realidade como um destino moldado pelas suas mãos – excetuando a áurea época dos Descobrimentos. Mas admito também que a descendência dessa famosa geração de descobridores deve ter ficado preferencialmente além-mar, ao passo que a descendência que vingou em Portugal é precisamente a dos que, cobardemente, não se aventuraram na partida das caravelas. Talvez por isso nunca mais o país tenha tido uma época dourada.

“Não podemos falar de decadência e de problemas sociais, não podemos indignar-nos, como se não fizéssemos parte do problema” continuou ele. “A sociedade somos todos nós e o Estado são alguns de nós que decidimos ou não manter em destaque... Logo, todos somos culpados das injustiças. A partir do momento em que temos conhecimento de algo indigno e silenciamos, somos cúmplices. Trata-se do silêncio de que falava Martin Luther King, que é tão penoso como o próprio crime e igualmente útil à proliferação da desigualdade.”

A esmagadora maioria da sociedade portuguesa sofre deste jogo do empurra. “Não é comigo.” Claro que há os que vão orar para que as coisas corram melhor (inclusive ao próximo). É um sentimento nobre, mas Nossa Sra. e o séquito celestial não têm feito muitas aparições nos últimos anos, apesar da devoção que lhes confiam.

De resto, o povo português, brando e sem pachorra para se mexer, lá vai observando e suspirando “Ai, paciência!” do cimo da sua Varanda de Pilatos (que me perdoe Vitorino Nemésio), onde lava as mãos como se não tivesse nada a ver com o rumo que a História vai tomar.

Friday, March 15, 2019

Raciocínio Motivado


Quantas vezes, ao discutir com alguém ou ao apresentar uma ideia, verificamos que quanto mais evidências, factos, documentos, e demais bagagem lógica de suporte, apresentamos… menos a pessoa se convence; pelo contrário, mais se agarra à sua posição, ainda que praticamente nada de racional a suporte. Quando alguém acredita naquilo que somente confirma as suas esperanças e preconceitos, ao invés de usar as suas capacidades cognitivas, essa pessoa está a seguir um raciocínio motivado.

O processo é automático por parte de quem pretende atingir uma determinada conclusão a todo o custo e, como tal, dará o máximo valor a qualquer pequena coisa que lhe permita corroborar essa conclusão, ignorando e desvitalizando qualquer facto (ainda que muito mais importante) que contrarie essa mesma ideia. O indivíduo que se agarra ao raciocínio motivado pode mesmo inventar exemplos mirabolantes para conseguir justificar o que pretende face ao que prova a sua negação. Por exemplo: temos como cientificamente provado que o vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) causa SIDA; porém, há personalidades conhecidas que defendem absolutamente o contrário e, nessa sua senda de raciocínio motivado, dão conferências, escrevem livros, e continuam a sua carreira, embora digam frases como “Nunca foi provada a existência do HIV”; “SIDA é uma construção socio-cultural e não uma doença”; “O HIV não se transmite sexualmente, nem tão pouco causa SIDA.” Correntes de pensamento como esta podem ser encontradas, entre outros, em Henry Bauer, ex professor de química e escritor. Parece anedota, mas não é.

Claro que isto nos levaria a outro motivo de crónica que é a abundância e variedade de estudos (pseudo) científicos que demonstram uma coisa e o seu contrário. Qualquer que seja, hoje em dia, a nossa opinião, podemos “googlar” o tema e obter um “estudo” que a confirme… e outro que confirme o oposto. A ciência, atualmente sempre financiada por entidades privadas ou governamentais, tornou-se um smorgasbord: há de tudo, consoante o tal raciocínio motivado do financiador do “estudo”. Mas isso é outro tema, sobre o qual agora não me debruçarei.

O raciocínio motivado tem vindo a ser reconhecido, pelo menos, desde os anos 50. As pessoas que têm tendência a segui-lo são, sem surpresa, geridas pela emoção e não pela lógica e sentem-se facilmente ameaçadas por uma opinião diversa, que entendem como um ataque pessoal. Não possuem ceticismo científico, ou seja, não são capazes de observar uma questão sob ângulos diversos. Em vez de avaliação das fontes, espírito crítico, questionamento de situações, colocação dos factos em perspetiva, são direcionadas apenas por uma busca seletiva que lhes permita alcançar a meta da sua conclusão previamente estabelecida.

A este propósito, estudos (haha!) muito interessantes foram feitos, nomeadamente por Z. Kunda (Princeton University, 1990), Ditto e Lopez (Kent State University, 1992- 2004), Balcetis e Dunning (Cornell University, 2006). A propósito, nunca confiem numa mania que anda muito na moda, que é dizer “vários estudos” e depois não indicar nem um para confirmação… de modo que até pode ser a Tia Ermelinda a ter afirmado (bem mal andamos mas ainda não chegamos a esse ponto).

Como contrariar o raciocínio motivado? Nos outros, impossível. Onde zurra um, zurram logo mais, e com tais palavras que ninguém entende (sintomático de quem “quer parecer bem” mas não tem fundamento). Em nós, há que estar atentos: promover o debate de nós mesmos connosco para perceber se não estamos a levar uma ideia longe demais só porque sim, já distante do razoável e do lógico.

Friday, March 1, 2019

Ana Filipa



Só a conhecem por este nome fora do mediatismo. Nos meios de comunicação social, era Esmeralda. “O caso Esmeralda” alimentou tribunais, notícias e opiniões durante anos até ser esquecido quando a menina de 8 anos foi entregue ao pai biológico em 2008. Era um caso que levantava no público desejos escondidos de punição e de moralismo burocrático sem conexão com a realidade. Mas Ana Filipa não era um “caso” e sim uma criança, com sentimentos e ideias claras. Recentemente, uma notícia deu a conhecer que “Esmeralda”, hoje com 17 anos, já vive há quase dois anos com o “casal de pais afetivos” a quem foi arrancada na altura. Saiu de casa do pai no Verão de 2017 e desta vez não houve aparato que a obrigasse a voltar ao que nunca quis.  Este “falhanço” daquilo que se considerou ser o “superior interesse” da menina – claramente contestado e negado pela própria assim que pôde - foi muito habilmente silenciado. Não é por acaso que não se vêm notícias a dizer que “Esmeralda” deu um pontapé à vida que lhe impuseram. Assim, o sistema progride, desconstruindo vidas e infâncias.

Esmeralda foi, realmente, o nome que lhe deram quando nasceu. A mãe entregou-a com três meses ao cuidado de um casal, pais que ela passou a conhecer como seus e que a re-baptizaram como Ana Filipa. O casal fez o capital pecado de não adotar formalmente a menina, embora se inscrevesse para tal na Segurança Social. Aqui começou a sua desobediência ao Estado. O pai de “Esmeralda” não a reconheceu como sua aquando do nascimento, demorando a perícia genética a oferecer resultados. Foi aos 4 anos da menina que a biologia se revelou, dando a confirmação do progenitor. Aí, o pai decidiu que a queria. Começou aqui um torturante processo legal que durou quatro anos para se completar. De não querida (em todos os sentidos), “Esmeralda” passou a ser desejada por todos: agora tanto os pais afetivos, como o pai biológico e também a mãe biológica disputavam a sua guarda em Tribunal.

Advogados de renome criticaram “o acordo” feito entre o casal e a mãe biológica, a “recusa sistemática” do casal em deixar a menina ir para o pai biológico (contrariamente à ordem do Tribunal), e a inércia do sistema em acelerar para que “Esmeralda” fosse viver com o pai, a quem o Tribunal rapidamente confiou a guarda, antecedida por um sistema de visitas “para que se fosse habituando à presença” do que era um estranho. É curioso que estes iluminados não critiquem, por exemplo, o acordo de Cristiano Ronaldo quando compra um filho (tanto mais razão teriam para o fazer sendo que, no seu caso, se trata de um contrato que envolve dinheiro); estranho, também, que critiquem a proteção dada a uma criança que, por razões óbvias, não queria mudar de vida.

Nesta história, o pai afetivo foi condenado a dois anos de prisão suspensa por subtração de menores (pois o casal chegou a esconder “Esmeralda”, novamente desobedecendo ao Tribunal que tanto primou pelo “superior interesse da criança”). O pai biológico obteve a guarda da menina e ainda uma indemnização de 15.000 euros do Estado, aquando de uma decisão do TEDH, que criticou a morosidade do processo. Mas… ganhou? A julgar pelos últimos acontecimentos, “ganhou” uma filha que não parece ter por ele bons sentimentos.

Hoje, talvez fosse diferente. A lei europeia obriga à audição das crianças para que exista uma mudança de guarda, bem como a ter-se a opinião da criança em conta. Porém, é certo que os tribunais desrespeitam com frequência certas leis que Portugal consignou.

O que é mais que certo é a lição a retirar deste “caso”: não vale a pena contrariar o coração. À primeira oportunidade, ele exibe a sua revolta. O Amor não se promove por sentença; ele é Lei ou então nem existe.