Esta semana, tive o privilégio de falar
com um homem extremamente sábio, cujo nome não quero revelar agora. Assisti a
uma conferência sua sobre Direitos Humanos e deixei-me ficar, com o propósito
de encetar conversa. Feita a apresentação, depressa nos debruçámos sobre as
várias indignidades e injustiças que se praticam, nomeadamente sobre as franjas
mais frágeis das populações.
Conversávamos sobre um país em
particular, do qual ele tem um conhecimento profundo e que eu também conheço.
Nesse momento, eu afirmei que gostava muito do dito país e suas pessoas, mas
que o problema “era o governo, não o povo.” Ele sorriu, e retorquiu
pausadamente: “Mas o que é um governo senão o reflexo do seu povo?”
Surpreendida, disse-lhe que não concordava inteiramente com a sua opinião.
“Porque tem sangue de europeia do Sul” respondeu-me ele, “é típico, e perdoe-me
se a ofendo, fazerem esse exercício de distância entre a comunidade e o Estado,
nomeadamente quando se sentem desiludidos. Desta forma, podem reclamar sem se
responsabilizarem. Mas numa sociedade livre – parto do princípio que falamos de
sociedades livres, pelo menos em teoria! – o Estado não é mais do que o espelho
da esmagadora vontade dos cidadãos que o constituem… e pelo tempo que esse povo
assim o desejar. Repare que se o povo desejar mudança, tem o instrumento de
mudança nas suas mãos, seja por meio do voto, seja por meio da revolução:
qualquer uma destas situações é viável e comprovada, uma mais amena e com data
marcada pelo próprio Estado, outra menos serena, mas igualmente eficaz no que a
uma mudança diz respeito.”
Admiti que sim, e que, na verdade, o meu
sangue talvez tivesse influência, já que o português não é um povo que pensa na
realidade como um destino moldado pelas suas mãos – excetuando a áurea época
dos Descobrimentos. Mas admito também que a descendência dessa famosa geração
de descobridores deve ter ficado preferencialmente além-mar, ao passo que a
descendência que vingou em Portugal é precisamente a dos que, cobardemente, não
se aventuraram na partida das caravelas. Talvez por isso nunca mais o país
tenha tido uma época dourada.
“Não podemos falar de decadência e de
problemas sociais, não podemos indignar-nos, como se não fizéssemos parte do
problema” continuou ele. “A sociedade somos todos nós e o Estado são alguns de
nós que decidimos ou não manter em destaque... Logo, todos somos culpados das
injustiças. A partir do momento em que temos conhecimento de algo indigno e
silenciamos, somos cúmplices. Trata-se do silêncio de que falava Martin Luther
King, que é tão penoso como o próprio crime e igualmente útil à proliferação da
desigualdade.”
A esmagadora maioria da sociedade
portuguesa sofre deste jogo do empurra. “Não é comigo.” Claro que há os que vão
orar para que as coisas corram melhor (inclusive ao próximo). É um sentimento
nobre, mas Nossa Sra. e o séquito celestial não têm feito muitas aparições nos
últimos anos, apesar da devoção que lhes confiam.
De resto, o povo português, brando e sem
pachorra para se mexer, lá vai observando e suspirando “Ai, paciência!” do cimo
da sua Varanda de Pilatos (que me perdoe Vitorino Nemésio), onde lava as mãos como
se não tivesse nada a ver com o rumo que a História vai tomar.