Uma língua reflete sempre uma cultura. Daí, termos línguas vivas dentro de
culturas em constante transformação. Leciono uma cadeira que inclui “Inclusive
Language/Gender Neutral Language”, no fundo, o uso de linguagem que evita
palavras que possam carregar um sentido discriminatório quanto a um determinado
sexo (fatalmente, 98% das vezes o feminino), ou quanto ao uso de estereótipos
relativamente a um determinado grupo de pessoas. Exemplifico: em vez de “fireman”
será mais correto dizer-se “firefighter” que tanto pode ser homem ou mulher; o
mesmo para “air hostess” que, para ser neutra, deve ser substituída por “flight
attendant”. Não são preciosismos do milénio. Os profissionais destas profissões
que são do sexo contrário ao indicado nas palavras não neutras veem as (novas) denominações
como um seu direito de que não se assuma, à partida, que tais profissões são
exclusivas do outro sexo.
A questão de fundo é que as palavras que dizemos, i.e. a língua que
falamos, determina a nossa linha de pensamento. O nosso sistema linguístico
programa-nos, sendo a Gramática de cada língua uma espécie de princípio da
relatividade que guia a interpretação do mundo, com toda a parcialidade que daí
advém. Dissecamos o mundo consoante a pré-conceptualidade da nossa língua. Esta
teoria de Determinismo Linguístico não é minha, vem de Edward Sapir e Benjamin
Lee Whorf.
Posso observar isto quando, lecionando, encontro pessoas não nativas de
inglês que se esforçam por fazer um paralelismo da Linguagem Neutra na sua
língua-mãe. Para os chineses, japoneses e coreanos, quase inútil, visto que não
há marca de género na língua original (embora o japonês tenha expectativas
bastante altas quanto às palavras “polidas” a serem usadas por uma mulher, o
que é outro assunto). Para outros, como os das línguas românicas, um
quebra-cabeças no qual não tinham pensado.
O que me intriga, enquanto falante de português, é o machismo que esta
sociedade patriarcal exibe no uso dos nomes. Vemo-lo quando as crianças
aprendem a falar. Quantos de nós, sobretudo em Lisboa, não tivemos de explicar
aos nossos filhos que puta não era o feminino de puto? Com prematura aflição,
inculcamos nas crianças que “puto” é o miúdo, nome designando criança pequena
do sexo masculino; mas o seu correspondente gramatical em flexão de género “não
se pode dizer” porque é uma palavra feia, não designa meninas, designa “outra
coisa”... Quantas caras de crianças ficam pasmadas com esta proibição, criada
pela semântica adulta cultural? Todas. Mas rapidamente aprendem, interiorizam e
passam à frente. Como passarão à frente tantas outras noções patriarcais, que
denigrem a figura feminina, e que usamos por hábito. Mas elas aí estão e
definem-nos como povo.
Outros exemplos. Um “cão” é um animal; já a “cadela” pode ser a fêmea do
cão, mas também pode ser, particularmente na ilha de S. Miguel, uma mulher de
costumes pouco respeitáveis. O mesmo correspondente feminino têm outros
animais, em que o macho é neutro ou mesmo de valor mas a fêmea não presta:
“touro” (homem potente) versus “vaca” (mulher ignóbil); “bode” (nomeadamente
“bode velho”, homem de posição social alta e com sapiência malandra) versus
“cabra” (o mesmo que vaca, cadela, essencialmente… puta).
E que dizer dessa semântica tão romanesca que os faialenses atribuem aos
velejadores chamando-lhes “aventureiros”? Um aventureiro é o homem que
atravessa mares, tem garra, espírito. Agora perguntem o que é “uma aventureira”.
É essa mulher perdida, a quem convém virar a cara. Essencialmente… puta.
Reparo que ofendi o tal sentido japonês de que falei, esse de ser elegante
nas palavras. Não costumo usar vulgaridade no falar. Mas neste caso é essencial
chamar pelos nomes as coisas, sem receio do que pretendemos demonstrar. Quero também
deixar claro que não defendo a prostituição como profissão – porque nunca
conheci uma prostituta que defendesse ser isso a profissão por si escolhida.
São mulheres por quem tenho respeito, considerando ademais que sobrevivem com
muito sofrimento. Logo, o termo usado nesta crónica pretende apenas demonstrar
a palavra que a sociedade usa e como o faz.
Vive-se, em Portugal, numa sociedade machista, enquanto subsistirem tais
ideias latentes no discurso. Reparem que não é por acaso que puta é o insulto
que se faz a uma mulher, mas o grande insulto que está reservado ao homem é…
filho da puta.