... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 12, 2019

A importância da linguagem para a igualdade


Uma língua reflete sempre uma cultura. Daí, termos línguas vivas dentro de culturas em constante transformação. Leciono uma cadeira que inclui “Inclusive Language/Gender Neutral Language”, no fundo, o uso de linguagem que evita palavras que possam carregar um sentido discriminatório quanto a um determinado sexo (fatalmente, 98% das vezes o feminino), ou quanto ao uso de estereótipos relativamente a um determinado grupo de pessoas. Exemplifico: em vez de “fireman” será mais correto dizer-se “firefighter” que tanto pode ser homem ou mulher; o mesmo para “air hostess” que, para ser neutra, deve ser substituída por “flight attendant”. Não são preciosismos do milénio. Os profissionais destas profissões que são do sexo contrário ao indicado nas palavras não neutras veem as (novas) denominações como um seu direito de que não se assuma, à partida, que tais profissões são exclusivas do outro sexo.

A questão de fundo é que as palavras que dizemos, i.e. a língua que falamos, determina a nossa linha de pensamento. O nosso sistema linguístico programa-nos, sendo a Gramática de cada língua uma espécie de princípio da relatividade que guia a interpretação do mundo, com toda a parcialidade que daí advém. Dissecamos o mundo consoante a pré-conceptualidade da nossa língua. Esta teoria de Determinismo Linguístico não é minha, vem de Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf.

Posso observar isto quando, lecionando, encontro pessoas não nativas de inglês que se esforçam por fazer um paralelismo da Linguagem Neutra na sua língua-mãe. Para os chineses, japoneses e coreanos, quase inútil, visto que não há marca de género na língua original (embora o japonês tenha expectativas bastante altas quanto às palavras “polidas” a serem usadas por uma mulher, o que é outro assunto). Para outros, como os das línguas românicas, um quebra-cabeças no qual não tinham pensado.

O que me intriga, enquanto falante de português, é o machismo que esta sociedade patriarcal exibe no uso dos nomes. Vemo-lo quando as crianças aprendem a falar. Quantos de nós, sobretudo em Lisboa, não tivemos de explicar aos nossos filhos que puta não era o feminino de puto? Com prematura aflição, inculcamos nas crianças que “puto” é o miúdo, nome designando criança pequena do sexo masculino; mas o seu correspondente gramatical em flexão de género “não se pode dizer” porque é uma palavra feia, não designa meninas, designa “outra coisa”... Quantas caras de crianças ficam pasmadas com esta proibição, criada pela semântica adulta cultural? Todas. Mas rapidamente aprendem, interiorizam e passam à frente. Como passarão à frente tantas outras noções patriarcais, que denigrem a figura feminina, e que usamos por hábito. Mas elas aí estão e definem-nos como povo.

Outros exemplos. Um “cão” é um animal; já a “cadela” pode ser a fêmea do cão, mas também pode ser, particularmente na ilha de S. Miguel, uma mulher de costumes pouco respeitáveis. O mesmo correspondente feminino têm outros animais, em que o macho é neutro ou mesmo de valor mas a fêmea não presta: “touro” (homem potente) versus “vaca” (mulher ignóbil); “bode” (nomeadamente “bode velho”, homem de posição social alta e com sapiência malandra) versus “cabra” (o mesmo que vaca, cadela, essencialmente… puta).

E que dizer dessa semântica tão romanesca que os faialenses atribuem aos velejadores chamando-lhes “aventureiros”? Um aventureiro é o homem que atravessa mares, tem garra, espírito. Agora perguntem o que é “uma aventureira”. É essa mulher perdida, a quem convém virar a cara. Essencialmente… puta.

Reparo que ofendi o tal sentido japonês de que falei, esse de ser elegante nas palavras. Não costumo usar vulgaridade no falar. Mas neste caso é essencial chamar pelos nomes as coisas, sem receio do que pretendemos demonstrar. Quero também deixar claro que não defendo a prostituição como profissão – porque nunca conheci uma prostituta que defendesse ser isso a profissão por si escolhida. São mulheres por quem tenho respeito, considerando ademais que sobrevivem com muito sofrimento. Logo, o termo usado nesta crónica pretende apenas demonstrar a palavra que a sociedade usa e como o faz.

Vive-se, em Portugal, numa sociedade machista, enquanto subsistirem tais ideias latentes no discurso. Reparem que não é por acaso que puta é o insulto que se faz a uma mulher, mas o grande insulto que está reservado ao homem é… filho da puta.