É irónico que Julian Assange tenha feito uma base de dados denominada
“Wikileaks” (“leak” traduz-se por “fuga”) e depois tenha tido de fugir por
causa disso. A história ainda não terminou, nem deve ter um fim próximo, porque
os caminhos do Direito Internacional são sempre complexos, longos e, não raro,
atropelam-se em contradições pelas leis dos países envolvidos.
Um dos artigos mais interessantes escritos após a prisão de Assange é “Um
homem sem pátria”, publicado no New Yorker. Combinando este com outros artigos
de quem conviveu com Assange, percebemos dezenas de histórias por detrás da narrativa
do site que deu a conhecer ao mundo documentos secretos governamentais, fazendo
dos seus fornecedores e jornalistas algumas das pessoas mais procuradas do
planeta.
Os apoios de Assange são frágeis. Ele personifica o “cavaleiro solitário” e
nómada. As suas duas nacionalidades (Austrália e Equador, a primeira por
nascimento e a segunda obtida) lavaram as mãos da questão; os seus filhos espalhados
pelo mundo, e de várias nacionalidades, nem sequer têm contacto com o pai,
desde o mais velho (um australiano adulto) até ao mais novo (uma criança francesa);
dos seus amigos faziam parte várias figuras conhecidas, que, entretanto, foram
deixando de levantar a voz em sua defesa fosse por receio, exaustão ou
descrédito, restando hoje poucos para além da actriz Pamela Andersson, e da
sempre resistente e fiel à sua causa Chelsea Manning, que se encontra presa por
ter fornecido a Assange vários dos documentos secretos que este publicou e deu
a conhecer ao mundo.
Mas Assange nunca precisou muito de ninguém. A sua história pessoal
demonstra um talento inato para a sobrevivência e para a rebeldia. Já fechado
na Embaixada do Equador, onde viveu sem de lá sair durante os últimos sete anos
e onde entrou usando um disfarce que incluía movimentar-se como se fora uma
pessoa portadora de deficiência motora, afirmou que privarem-no de liberdade
não era inteligente porque um homem encerrado com a mente em atividade pode ser mais poderoso que um homem
livre. Quem o procurava deve ter intimamente concordado porque só o Reino Unido
gastou, diariamente, nos últimos sete anos, 10.000 libras por dia para policiar
a Embaixada 24 sobre 24 horas.
A acusação que leva à extradição de Assange do Reino Unido para os E.U.A. não
se trata da acusação de violação que foi levantada na Suécia após os E.U.A.
iniciarem a caça ao homem, já que a vítima sueca retirou essa queixa. Aliás, se
assim fora, Assange seria extraditado para a Suécia e não para os E.U.A. Porém,
para complicar, a Suécia afirma agora que “talvez reabra o seu processo”, o que
pode significar um mandato de detenção europeu em cima da ordem de extradição
para responder a uma questão criminal nos E.U.A., implicando apenas prolongamento
para discussão. Enquanto isso, Assange está na prisão de alta segurança de
Belmarsh no Reino Unido – terra da sua última namorada conhecida, a britânica
Sarah Harrison, também ela uma “wikileaker” e acompanhante do “wikileaker” americano
Edward Snowden na viagem-fuga que o levou de Hong-Kong até ao exílio na Rússia.
O que preocupa muitos é a natureza da acusação criminal dos E.U.A. Afinal,
poder-se-á colocar um processo à liberdade de expressão e ao direito à
informação? Que significa tal e que implicações para aquilo a que ainda se
chama democracia?…
Mas os E.U.A. são mais espertos que isso. Até ver, não é disso que Assange
está a ser acusado e sim de ser coadjuvante de espionagem (o crime pelo qual
Manning responde) e ainda hacking (por, supostamente, ter tentado entrar dentro
de computadores governamentais). Seja como for, é de esperar que o processo de
extradição demore anos e, em sua defesa, Assange tem argumentos vigorosos.
Entretanto, outra ironia é o Parlamento Europeu ter aprovado na mesma
semana em que Assange foi preso, uma lei que protege os “whistleblowers”, isto
é, os que dão a conhecer actividades imorais ou ilegais. Esta lei passou com o
apoio de 591 MEPs contra 29. A juntar a isto, também na mesma semana, na
poderosa Berlim, inaugurou-se uma estátua tripla de Assange, Manning e Snowden como
novos heróis da cidade. O que dizer disto? Afinal, aparecem amigos em lugares
inesperados mesmo para um controverso e solitário escapista.