Quadro Acrílico de António Trindade
Não há dúvida: todos somos humanos. Dentro da nossa concepção do que é
próprio da natureza humana, o ser “sujeito”, “agente”, ser de acção, ser
transformador, é algo inerente. Ser sujeito e ser humano são conceitos
inseparáveis na nossa psique. Além disso, atribuímos ao sujeito a titularidade
de certos direitos, já que isso é acoplado à sua capacidade de ser e de fazer
acontecer.
O que acontece, então, quando somos desumanizados e, por inerência,
rebaixados à condição de objectos?
A frase parece forte, mas o conceito não é novo. A situação sempre
aconteceu, com os grupos socialmente mais frágeis, fossem os escravos da
Antiguidade, os servos da Idade Média, os negros segregados (ainda) no século
XX ou os judeus na II Guerra Mundial. De facto, foi a partir do fim desta
guerra que a atenção do mundo passou a focalizar-se nos oprimidos e nos
torturados e que as Academias começaram a abrir espaço para estudos sobre os
marginalizados e as vítimas. Até então, tinham sido as figuras de soberania a
interessar: o que pensavam, como agiam, o que sentiam. Mas, após uma tragédia
de tão grandes dimensões da qual o mundo se deu conta por meios visuais – tendo
sido realmente crucial a importância da imagem e a divulgação em massa para o
impacto que daí adveio – passou a colocar-se o foco não no sujeito, mas sim no
humano objectificado.
Só se concebe que graus elevados de tortura possam ser feitos por um humano
a outro se o dominador conseguir despersonalizar o dominado. Para isso,
conceptualiza-o como um ser inferior, necessariamente menos humano (daí que se
compreendam os sinais nas lojas durante a Segunda Guerra, e.g. “Proibida
a entrada a cães e a judeus” ou a proibição
dos negros se sentarem nos lugares reservados a brancos nos autocarros
ou irem às mesmas escolas que eles na época da segregação nos Estados Unidos,
por exemplo). Quem abusa pode mesmo reduzir o outro à condição de mero objecto,
que, por não ser humano, serve apenas para o servir, como as restantes máquinas
e objectos servem (as mesmas culturas e etnias anteriormente citadas foram
amplamente utilizadas em contextos de servidão).
Porém, o que aqui me interessa não é a perspectiva do
dominador/torturador/perpetrador de crimes, mas sim a perspectiva do dominado/vítima.
Importa-me, aliás, desvalorizar o dominador (ele já se dá toda a importância!).
Foquemo-nos sobre o dominado. O que acontece a esse alguém cuja humanidade e
subjectividade lhe é retirada e que vive sob o domínio de um agente que
continuamente o despersonaliza e lhe retira a sua identidade mais básica?
Se não falei nas mulheres e crianças quando, há pouco, mencionei os
socialmente mais frágeis ao longo da História, fi-lo propositadamente. É porque
continuam a sê-lo. Em muitos aspectos, as mulheres têm conseguido patamares
importantes para assumirem a sua igualdade, e não há dúvida que a vida das
crianças na generalidade dos países ocidentalizados é hoje melhor do que dantes,
quando trabalhavam como adultos e nem havia leis que as protegessem da morte
inflingida por maus tratos de familiares ou patrões; no entanto, ainda hoje, as
crianças não são vistas como seres humanos em desenvolvimento, mas de pleno
direito à humanidade, com opiniões, sentimentos e razões levados em
conta, e nem
as mulheres alcançaram a igualdade de sexo pela qual se continuam a bater.
Basta darmos uma olhada nas sentenças judiciais de abuso sexual (desde já,
quantas vezes um eufemismo para “violação” quando se trata de menores) ou de
violência doméstica em
Portugal para chegarmos a esta conclusão.
A vítima que vive numa redoma de despersonalização não é objectificada
apenas pelo perpetrador do crime. Ele não é o único que lhe rouba a
subjectividade (entendida aqui como a faculdade de ser sujeito e não objecto). Existe
também todo um constructo social, que vai desde os vizinhos surdos, que nada
escutaram nem escutam, aos colegas cegos que nunca as marcas de violência viram,
e depois, mais tarde, a uma série de agentes despersonalizadores que fazem
parte de um sistema
(de apoio?): médicos, técnicos de acção social, técnicos judiciais, juízes.
Este sistema mais lato, perante o qual a vítima tem de efectuar um acto
(habitualmente, variados) de revivalismo do crime (judicialmente ditos
“testemunho”), avalia a qualidade desse revivalismo sob o ponto de vista
historicista, apenas esperando uma confirmação
da tese que os próprios já criaram e à qual se agarram, e retirando
toda e qualquer afirmação
que não a confirme. A vítima nunca é considerada, assim, um pleno
agente da história, nem quando sobreviveu a esta, pois as suas revelações são
sempre tidas como meias-verdades, suspeitas de trauma (aquando do crime ou
presente ainda), de desequilíbrio, de emoções. É curioso, porém, que a mesma alegação
de desequilíbrio por trauma que lhe é feita (e que carrega, em si, a
vivência de um evento traumático) desaparece quando se tenta indagar o evento
desencadeador (ou seja, o crime que ali se averigua!). Bizarro… Em resumo: a
opressão e a subordinação continuam a pesar sobre a vítima, continua a ser-lhe
negado o direito de plena voz, de credibilidade, de dignidade como sujeito. À
vítima é dado o tratamento de objecto. Este facto é mais gritante no
caso das crianças,
essas verdadeiramente objectificadas no caso da justiça, pois que não têm voz.
Quando são ouvidas, os seus testemunhos são cortados, considerados inválidos
“porque muito jovens”, “emocionadas”, “não convincentes”, ou são coagidas a
calarem-se.
Assim intimado, o sujeito deixa de fazer som. Não fala, não age, torna-se
não agente de vida. Torna-se objecto. Torna-se, novamente, vítima de
um ataque à sua identidade humana, prolongamento do ataque criminoso
que já antes sofrera.
Há pouco falei no quão importante a visibilidade em massa tinha sido vital
para que a carnificina do Holocausto fosse exposta. De facto, sem meios de
visualização, as pessoas não se teriam consciencializado da tortura dos campos
de morte e da imensidão do terror. A visibilidade é poder. Desde então até
hoje, cada vez temos mais consciência disso, com a emergência da internet e dos
smartphones. Os abusadores têm plena
consciência disto. É por isso que jogam também com este factor, e fazem
reconhecer o seu poder através de visibilidade. Por outro
lado, retiram-na à vítima, tornando-a invisível. A vítima torna-se
minúscula, não falada, não vista, não reconhecida. É uma marginal visual.
Para além desta perda de identidade em termos pictóricos (essencial no
mundo moderno), a vítima é sempre solitária. Muito cuidado com esta palavra,
que é frequentemente mal-usada. Grandes e belas obras nascem da solidão, e é de
desconfiar de quem não sabe viver sozinho. O sentido de “solitário” aqui
refere-se a quem é retirado da sua rede de suporte pelo abusador, o que
frequentemente acontece. A energia colectiva é maior do que a energia
individual, como pode atestar todo aquele que já esteve num concerto, mas
também é possível que a nossa energia individual seja sugada pelo colectivo e
que nos sintamos vazios e esgotados por pertencer a um grupo se esse grupo for
tóxico, como sabem as pessoas que já foram parte de uma seita religiosa ou de
uma família disfuncional.
Nesses casos, antes só… fica-se
melhor orientado.
Um ponto unificador da perda de identidade da vítima e do trauma de
revivalismo do crime (pois o testemunho constitui uma repetição traumática do
já acontecido perante espectadores que, ademais, avaliam e julgam não o crime
mas a nossa memória dele) é a vergonha.
A vítima tem sempre vergonha do acontecido, o que confunde os julgadores e
diverte os criminosos. O julgador, não raro, não
entende o porquê da resistência da vítima em falar de um
acontecimento “se não foi você quem cometeu”… ou “considera que contribuiu para
isso?” Neste momento, é razoável deitar o olho ao abusador que costuma estar
intimamente deleitado com esta nova tortura.
É fácil de explicar o sentimento de vergonha da vítima, que pode
manifestar-se de diversas formas (desde bloqueio, recusa, insensibilidade
aparente, etc) mas tem sempre a mesma causa: a vítima não teve escolha, foi
forçada a algo. Tornou-se marioneta de alguém. Confessa, ali, a sua
inarticulação enquanto sujeito-agente (que deixou de ser aquando dos factos
narrados) e que continua a não ser (porque obrigada a revivê-los perante
plateia). Desprovida, assim, da sua identidade maior enquanto ser humano, a
vítima é objecto, e o que é pior, é objecto de servidão para outro alguém,
envergonhando-se de não ser humano como os demais.
Que tipo de reconhecimento quer, então, uma vítima ou, se quisermos, um
sobrevivente? (embora eu tenha problemáticas com ambos os nomes, ainda não se
inventou melhor designação; gosto de lhes chamar sobre-viventes, porque vivem
para além de)
Logicamente, a questão da visibilidade é uma questão social. Todos nós
temos um conjunto de crenças e, em boa verdade, só vemos aquilo em que acreditamos.
Daí, que haja tantos lobbies, influencers,
e outros que tais, social, política e estrategicamente colocados. Portugal
não está sozinho e, neste aspecto, é apenas um peixinho num tanque onde nadam
muitos outros aos quais Portugal lá anda agarrado como pode. Em termos de
violência e abusos, para dar exemplos concretos, encontramos ultimamente várias
opiniões nas redes sociais e jornais nos últimos anos que dizem que as mulheres
são as maiores abusadoras
dos filhos, porque o amor maternal não
seria inato. Na verdade, pesquisando mais um bocado, contactando com
pessoas que se dedicam há muitos anos a
estudar abusadores e vítimas, a verdade é que há uma enorme taxa de vítimas
sexuais infantis violadas pelos pais (homens), tanto
em Portugal como no
resto do mundo, há vendas de crianças estabelecidas na Europa e alem
para
fins de pedofilia, sobretudo a uma elite, com coração na Bélgica,
uma rede com ligações a políticos e empresários de outros países
e de outros continentes,
de onde não é muito difícil seguir o rasto e acabar mais perto… Mas quem fala
nisso costuma desaparecer
em explosões ou outros acidentes misteriosos (eu própria já fui vítima de tal,
e sou apenas uma pequeníssima gota que caíu mal e incomodou alguém). A questão
é perigosa, pois como se depreende de todas estas notícias que incluo neste
artigo em forma de link, tudo isto envolve homens extremamente poderosos, com
vícios sádicos, que usam de “perversão da justiça” (cito o artigo de
investigação do Miami Herald) para
continuarem as suas vidas, incólumes.
Em oposto a isto, há movimentos de mães denominadas “em fuga” que mais não
fizeram que juntar provas do abuso dos filhos (são muitos movimentos, uns
totalmente a céu aberto e outros underground;
só apresento links aqui de alguns extremamente conhecidos, como este
e este,
e o já histórico children
of the underground).
Nada disto é socialmente falado como mainstream.
Não faz parte do reconhecido. Mutatis
mutandis, este fenómeno de (in)visibilidade dir-se-ia que é mais ou menos o
mesmo fenómeno que, nos anos 80 e na minha infância, levava as pessoas a
dizerem que só os gays é que apanhavam SIDA. Foram precisos anos, mas foi
sobretudo preciso muito lobby, para
que a verdadeira opinião fosse veiculada. Outro bom exemplo do invisível “in
plain sight”: nos E.U.A., ainda hoje a (in)visibilidade do homem negro ou do
homem hispânico se faz sentir - é sempre ele quem
vai à frente nas estatísticas de crime apresentadas oficialmente e é
sempre ele quem é morto pela Polícia. Mas… quem são os
atiradores das escolas? Homens caucasianos. E quem são os
serial killers? Na sua maioria, homens caucasianos. Como vêem, um
sistema de crenças faz-se… mas raramente corresponde ao real.
Outro problema, bastante mais profundo e eventualmente psicanalítico, é que
a vítima necessita, em última análise, de ser reconhecida como ser humano por
aqueles que a dominaram ou dominam. É uma questão complexa que, a meu ver,
prende muitas vítimas a relações onde esperam vir a ser reconhecidas (ou têm
essa esperança eventual). Infelizmente, e como é óbvio, o abusador será a
última pessoa a reconhecer-lhes humanidade/identidade. Já encontrei este mesmo
sentimento em mulheres agredidas pelos companheiros e em crianças agredidas
pelos progenitores. A relação não se quebra até a vítima perceber que a
inferioridade profunda que sente, a falha que entende ter em si, não será
colmatada – pois a vítima está crente que apenas o abusador pode preencher essa
lacuna, já que foi ele que a criou. A constante opressão cria esta necessidade
de reconhecimento – é só aqui, a meu ver, que se pode falar de uma carência do
oprimido, um conceito que certos técnicos usam com displicência, fazendo a
vítima sentir que ela sofre
de alguma patologia que terá levado o abusador a escolhê-la, como a
melhor peça de caça, a mais frágil, a que já possuía “qualidade per se”.
A ideia é errada. Não é a vítima que cria o abusador; é
o abusador que constrói a vítima.
É aqui que deveria entrar a justiça. É garantido que um abusador nunca
restituirá à vítima a identidade que lhe roubou. Mas a justiça poderia fazê-lo,
ao menos um pouco, reconhecendo os crimes, atribuindo penas, proibindo
contactos futuros. Quase nunca o faz. Pelo contrário: torna
a insistir na objectificação do vitimizado.
Ainda uma palavra para o testemunho. É frequente insistir-se em perguntas
pormenorizadas como “que horas eram quando entraram no quarto?”; “que cuecas
tinha nesse dia?”; “Lembra-se se ele tinha roupa interior?”; “terão passado
cinco ou dez minutos durante esses momentos?”. Uma falha (se é que falha se
pode considerar…) numa destas perguntas é, não raro, motivo para que os juízes
desqualifiquem todo um testemunho, já que “claramente, não se recorda,
inventou”, etc. Parece-me lógico que, no decurso da vida normal, raras são as
pessoas que detém o controlo do tempo ao minuto e menos ainda será o número de
crianças que saberão dar resposta com acuidade temporal. Ademais, perante uma
situação de choque, o frequente é que qualquer adulto (e seguramente uma criança)
não recorde pormenores e fique ainda mais aflito ao ser questionado sobre eles,
como se dessa ínfima partilha dependesse a sua segurança actual e futura. Não será
muitíssimo mais importante questionar dos factos acontecidos, ao invés de
insistir nos minutos e bugigangas?
Outra revitimização e perda de identidade / humanidade são as ameaças que
se fazem por parte de entidades que, devendo proteger as vítimas, acabam por
compactuar com os abusadores, seja em processos judiciais irrealistas e
kafkianos, seja na elaboração de relatórios sem nexo. Isto deu origem, nos
últimos anos às hashtags #mommycide#,
#kiddocide# e #freethekidsfromcourtorderedabduction#, i.e. “homicídio de mães”,
“homicídio de crianças” e “salvem
as crianças do rapto legalmente ordenado pelo Tribunal”. Procurem e
encontrarão na internet muitos movimentos como este que de há uma dezena de
anos a esta parte vem fazendo ouvir a sua voz e recuperou a sua IDENTIDADE e
HUMANIDADE no mundo: desde mães que lutaram pelos
filhos que não foram ouvidos, e os retiraram
do inferno em que viviam (ou iam viver), a crianças que cresceram (algumas até casaram
para se emancipar); pessoas que emitem programas
de rádio ou têm canais no YouTube,
páginas na net, fizeram e-books ou lançaram livros;
investigadores, advogados, fotógrafos e jornalistas (alguns foram abusados na
infância, e os abusadores não foram punidos), ou mesmo investigadores
que se dedicaram a estudar abusadores durante décadas e conhecem
muito bem o outro lado. Enfim, a lista é longa, quanto à rede de investigadores
e whistleblowers. Novamente, só coloquei aqui alguns nomes
facilmente acessíveis que não comprometem.
Uma descoberta que fiz resume-se a esta verdade: um abusador necessita da
sua vítima. São pessoas sem energia própria; precisam da energia de outros para
conseguir estar e viver. Mas os sobre-viventes não precisam dos abusadores para
nada. Têm tanta energia que chega para si, foram parasiticamente sugados por
esses vampiros (os abusadores raramente são apenas um na vida de uma vítima), mas
ainda lhes resta para viver a vida toda e continuar, com vitalidade.