Desde Junho que me perguntam o que se passa em Hong Kong.
Vou explicar, sem pretensões, ou, como por cá se diz, “atiro tijolos para
atrair jade.”
O ano passado, um cidadão de Hong Kong viajou até Taiwan
(estado que se considera independente, mas é reivindicado pela China, situação
já de si complexa). Este cidadão assassinou a sua namorada em Taiwan,
confessando-o já depois de regressado a Hong Kong. Foi acusado em Taiwan pelo
crime; mas como não existe acordo judicial entre Hong Kong
e Taiwan, o cidadão não pode nem ser extraditado para Taiwan nem ser julgado
pelo crime em Hong Kong, onde foi preso apenas por evasão fiscal.
Se Taiwan tem o complexo estatuto que acima expliquei, o
de Hong Kong está definido, sendo uma região administrativa com estatuto
especial na China. Assim, HK tem um estatuto autonómico sério, com
moeda e sistema político próprios, finanças e justiça independentes,
administração territorial e fronteiriça (emissão de passaportes, vistos, etc). Taiwan
pretende mais: quer ser considerado um país. Apesar da proximidade de HK, não
se fala a mesma língua. Porque HK e Macau são regiões administrativas especiais
e Taiwan é um estado que luta por independência, a China chama-lhe “província
rebelde”.
Para extraditar o tal prisioneiro de HK
para Taiwan, teria de entrar em vigor uma lei de extradição que
o governo de Carrie Lam pensou implementar em Hong Kong. Isto
permitiria que, no futuro, fosse extraditado de HK um
cidadão arguido de crime para qualquer país (incluindo a China,
pois, de momento, não existe acordo judicial entre a China e os seus
“territórios especiais”). Não seria qualquer crime: foi elaborada uma
lista de menos de 40 crimes, nenhum deles de índole
política.
A quantidade de povo que, imediatamente, se manifestou
nas ruas (1.030.000 num dia) exigindo a demissão de Carrie Lam demonstrou que
esta ideia era um grande tiro no pé. De facto, tudo o que ameace a autonomia
dos territórios é visto não só como submissão à China continental mas também
como ataque aos direitos humanos, algo que os territórios sentem na pele, pois
ainda se recordam de tristes momentos nada longínquos na História. De imediato,
temendo a mesma futura subordinação a Pequim, Taiwan logo afirmou que não pedia
a extradição do criminoso ainda que a lei fosse aprovada, numa clara posição de
desagrado com as possibilidades que tal lei pode abrir no futuro. Extradições?
Jamais. Pois Hong Kong e, sobretudo, Taiwan foram o refúgio dos dissidentes que
se demarcaram da política chinesa, e, numa atitude de auto-exílio, fugiram
da perseguição que lhes foi movida.
Vendo-se cada vez mais pressionada pelo seu povo, Carrie Lam retirou
o projecto-lei. Mas, como
dizem os protestantes, “aprendemos que não podemos confiar nos políticos”. Há
10 semanas que os protestos crescem cada vez mais, exigindo democracia, não
extradição, sufrágio universal e liberdade em relação à China. Durante dois
dias, o aeroporto de HK (o 8º mais movimentado do mundo) esteve fechado à
navegação, sendo que dias antes alguns protestantes aterraram em Taiwan
(apoiante do seu movimento). As tropas chinesas já colocaram os seus tanques na
fronteira com Hong Kong, numa clara mensagem bélica, quando
até aqui tinham confiado num sistema de “atrito”.
Os protestantes de HK sabem que necessitam de
apoio. Ninguém em HK esqueceu a revolução de 2014. Menos ainda ignoram que se a
China entrar militarmente num território, nomeadamente este pequeno território,
o resultado será desfavorável para o opositor. Quer a China fazê-lo? A China
não teme ninguém. Se não o fez, é porque tenta internacionalmente ter uma
imagem diplomata, nos últimos anos, diferente da reputação que
granjeou com o massacre de Tiananmen em 1989. Para já, a economia entrou em
colapso: a de HK por razão óbvia; a de Taiwan enfrenta um boicote chinês
relativamente ao turismo desde 1 de Agosto.
Se é certo que o poder da grande China é indiscutível,
também é certo que os territórios são de gente de fibra para quem o domínio é a
morte. Resta saber que evolução terá tudo isto, em mais um episódio da história
em que os tigres incomodam o dragão.