... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 16, 2019

Antes morrer livres que em paz sujeitos


Desde Junho que me perguntam o que se passa em Hong Kong. Vou explicar, sem pretensões, ou, como por cá se diz, “atiro tijolos para atrair jade.” 

O ano passado, um cidadão de Hong Kong viajou até Taiwan (estado que se considera independente, mas é reivindicado pela China, situação já de si complexa). Este cidadão assassinou a sua namorada em Taiwan, confessando-o já depois de regressado a Hong Kong. Foi acusado em Taiwan pelo crime; mas como não existe acordo judicial entre Hong Kong e Taiwan, o cidadão não pode nem ser extraditado para Taiwan nem ser julgado pelo crime em Hong Kong, onde foi preso apenas por evasão fiscal. 

Se Taiwan tem o complexo estatuto que acima expliquei, o de Hong Kong está definido, sendo uma região administrativa com estatuto especial na China. Assim, HK tem um estatuto autonómico sério, com moeda e sistema político próprios, finanças e justiça independentes, administração territorial e fronteiriça (emissão de passaportes, vistos, etc). Taiwan pretende mais: quer ser considerado um país. Apesar da proximidade de HK, não se fala a mesma língua. Porque HK e Macau são regiões administrativas especiais e Taiwan é um estado que luta por independência, a China chama-lhe “província rebelde”.   

Para extraditar o tal prisioneiro de HK para Taiwan, teria de entrar em vigor uma lei de extradição que o governo de Carrie Lam pensou implementar em Hong Kong. Isto permitiria que, no futuro, fosse extraditado de HK um cidadão arguido de crime para qualquer país (incluindo a China, pois, de momento, não existe acordo judicial entre a China e os seus “territórios especiais”). Não seria qualquer crime: foi elaborada uma lista de menos de 40 crimes, nenhum deles de índole política.  

A quantidade de povo que, imediatamente, se manifestou nas ruas (1.030.000 num dia) exigindo a demissão de Carrie Lam demonstrou que esta ideia era um grande tiro no pé. De facto, tudo o que ameace a autonomia dos territórios é visto não só como submissão à China continental mas também como ataque aos direitos humanos, algo que os territórios sentem na pele, pois ainda se recordam de tristes momentos nada longínquos na História. De imediato, temendo a mesma futura subordinação a Pequim, Taiwan logo afirmou que não pedia a extradição do criminoso ainda que a lei fosse aprovada, numa clara posição de desagrado com as possibilidades que tal lei pode abrir no futuro. Extradições? Jamais. Pois Hong Kong e, sobretudo, Taiwan foram o refúgio dos dissidentes que se demarcaram da política chinesa, e, numa atitude de auto-exílio, fugiram da perseguição que lhes foi movida.  

Vendo-se cada vez mais pressionada pelo seu povo, Carrie Lam retirou o projecto-lei. Mas, como dizem os protestantes, “aprendemos que não podemos confiar nos políticos”. Há 10 semanas que os protestos crescem cada vez mais, exigindo democracia, não extradição, sufrágio universal e liberdade em relação à China. Durante dois dias, o aeroporto de HK (o 8º mais movimentado do mundo) esteve fechado à navegação, sendo que dias antes alguns protestantes aterraram em Taiwan (apoiante do seu movimento). As tropas chinesas já colocaram os seus tanques na fronteira com Hong Kong, numa clara mensagem bélica, quando até aqui tinham confiado num sistema de “atrito”. 

Os protestantes de HK sabem que necessitam de apoio. Ninguém em HK esqueceu a revolução de 2014. Menos ainda ignoram que se a China entrar militarmente num território, nomeadamente este pequeno território, o resultado será desfavorável para o opositor. Quer a China fazê-lo? A China não teme ninguém. Se não o fez, é porque tenta internacionalmente ter uma imagem diplomata, nos últimos anos, diferente da reputação que granjeou com o massacre de Tiananmen em 1989. Para já, a economia entrou em colapso: a de HK por razão óbvia; a de Taiwan enfrenta um boicote chinês relativamente ao turismo desde 1 de Agosto.

Se é certo que o poder da grande China é indiscutível, também é certo que os territórios são de gente de fibra para quem o domínio é a morte. Resta saber que evolução terá tudo isto, em mais um episódio da história em que os tigres incomodam o dragão.