... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 2, 2019

Ceifa


Subitamente, não mais do que de repente, afogou-se na própria respiração e perdeu-a. Os olhos abriram-se por uns segundos, mais do que o normal, como que ansiosos, mais que isso, aflitos, exasperados e depois eram vácuo, perderam-se num vazio, rendidos à evidência de não existir. Os dedos abriram-se ao extremo e logo a seguir se curvaram como garras, mas ninguém percebeu o que ele queria agarrar, se a manta, se algum humano, se o sopro de ar que lhe fugia, se a vida. Os dedos permaneceram assim, em gancho, e foi difícil colocá-los, mais tarde, naquela posição serena e bonita com que teimaram em apresentá-lo a toda a gente para que lhe dissessem adeus. Para poupar a família a traumas desnecessários, as costuras cirúrgicas da autópsia foram maquilhadas e depois tapadas com aquela roupa alva, tão contrastante com a desordem dos órgãos enfiados à pressa de volta ao corpo costurado depois com primor que estava ali por baixo.
“Sabe o que é o trauma? É a ferida aberta. As pessoas quando passam por algo inesperado não estão preparadas e, portanto, não sabem reagir, não agem. Mas depois o trauma é reviverem a mesma coisa, tantas e tantas vezes, porque vão ter a necessidade de reagir, mais tarde… até conseguirem conviver com o real e cicatrizar o assunto.”
“Fala do falecido, Dr.?”
“Eu, não. Eu falo dos que ficam a pensar em quem se foi. O médico fala da vida, não fala da morte. Não é essa a sua função. Prolongamos a vida tanto quanto podemos, mas não mais do que isso. Se quer falar sobre a morte, o melhor é ver um padre. Eu posso dar-lhe razões, gnoseologias científicas… mas, neste caso, nem isso! A causa foi idiopática.”
O padre disse pouco que acrescentasse ao apaziguar do súbito vazio onde antes havia pulso, voz, temperatura. Do discurso, guardou palavras soltas: “Um dia… todos reunidos… na Eternidade… uma felicidade que não terá fim… aguardar com paciência… pois que todas as tormentas terrenas terminaram… repousa no amor de Deus, que é o amor maior que existe.”
Todos reunidos, quem? E se aparecessem pessoas que eles não gostavam? Ou que apenas um deles gostava e o outro não? Não poucas foram as vezes que tinham discutido por pessoas com quem um queria estar e o outro não! Então aquelas discussões picuinhas e (agora definitivamente) estúpidas iriam continuar na tal Eternidade? Ah, definitivamente não era um conceito bem pensado! Por outro lado, se era verdade que as tormentas tinham acabado, também não se podia negar que tinham terminado as alegrias – mas quem perguntou se ele queria terminar agora as alegrias, se estava assim tão angustiado pelas tormentas? E quem disse que Deus era quem lhe dedicava maior amor? Pois se era, ficasse Deus a saber, talvez não tivesse sido correspondido na mesma moeda! Mas não era o seu maior amor, está visto que não era, ou não se teria portado desta maneira imatura e ridícula, roubando-lhe o ar de forma sorrateira e cerce, sem aviso, esse trapaceiro!
Enquanto arrumava os pertences de quem assim se fora, sem suspeitar que aquela seria a última noite que descansava, o último copo de água que beberia, ela encontrou discos de vinil e livros, no meio de camisolas (ainda com cheiro) e papeis antigos que melhor fora não ter lido. No meio de um livro, um marcador com esta inscrição de Fernando Pessoa:
“A morte chega cedo/Pois breve é toda a vida/O instante é o arremedo/De uma coisa perdida.// O amor foi começado/O ideal não acabou,/E quem tenha alcançado/Não sabe o que alcançou.//E tudo isto, a morte/Risca, por não estar certo/No caderno da sorte/Que Deus deixou aberto.”
Tudo se resumia, então, a sorte. Seremos um conjunto inexplicável de acidentes? Tornar-nos-emos numa memória que o tempo desconstrói. O que é, afinal, o sucesso se a derrota final é sempre certa? Foi com estes pensamentos que escreveu o epitáfio dele, parafraseando Camus:
“Viveu sempre em busca do amanhã, de um melhor amanhã; desconsiderando que o amanhã o aproximava do seu último inimigo.”