Subitamente, não mais do que de
repente, afogou-se na própria respiração e perdeu-a. Os olhos abriram-se por
uns segundos, mais do que o normal, como que ansiosos, mais que isso, aflitos,
exasperados e depois eram vácuo, perderam-se num vazio, rendidos à evidência de
não existir. Os dedos abriram-se ao extremo e logo a seguir se curvaram como
garras, mas ninguém percebeu o que ele queria agarrar, se a manta, se algum
humano, se o sopro de ar que lhe fugia, se a vida. Os dedos permaneceram assim,
em gancho, e foi difícil colocá-los, mais tarde, naquela posição serena e
bonita com que teimaram em apresentá-lo a toda a gente para que lhe dissessem
adeus. Para poupar a família a traumas desnecessários, as costuras cirúrgicas
da autópsia foram maquilhadas e depois tapadas com aquela roupa alva, tão
contrastante com a desordem dos órgãos enfiados à pressa de volta ao corpo
costurado depois com primor que estava ali por baixo.
“Sabe o que é o trauma? É a
ferida aberta. As pessoas quando passam por algo inesperado não estão
preparadas e, portanto, não sabem reagir, não agem. Mas depois o trauma é
reviverem a mesma coisa, tantas e tantas vezes, porque vão ter a necessidade de
reagir, mais tarde… até conseguirem conviver com o real e cicatrizar o
assunto.”
“Fala do falecido, Dr.?”
“Eu, não. Eu falo dos que ficam a
pensar em quem se foi. O médico fala da vida, não fala da morte. Não é essa a
sua função. Prolongamos a vida tanto quanto podemos, mas não mais do que isso.
Se quer falar sobre a morte, o melhor é ver um padre. Eu posso dar-lhe razões,
gnoseologias científicas… mas, neste caso, nem isso! A causa foi idiopática.”
O padre disse pouco que
acrescentasse ao apaziguar do súbito vazio onde antes havia pulso, voz,
temperatura. Do discurso, guardou palavras soltas: “Um dia… todos reunidos… na Eternidade…
uma felicidade que não terá fim… aguardar com paciência… pois que todas as
tormentas terrenas terminaram… repousa no amor de Deus, que é o amor maior que
existe.”
Todos reunidos, quem? E se
aparecessem pessoas que eles não gostavam? Ou que apenas um deles gostava e o
outro não? Não poucas foram as vezes que tinham discutido por pessoas com quem
um queria estar e o outro não! Então aquelas discussões picuinhas e (agora
definitivamente) estúpidas iriam continuar na tal Eternidade? Ah,
definitivamente não era um conceito bem pensado! Por outro lado, se era verdade
que as tormentas tinham acabado, também não se podia negar que tinham terminado
as alegrias – mas quem perguntou se ele queria terminar agora as alegrias, se estava
assim tão angustiado pelas tormentas? E quem disse que Deus era quem lhe
dedicava maior amor? Pois se era, ficasse Deus a saber, talvez não tivesse sido
correspondido na mesma moeda! Mas não era o seu maior amor, está visto que não
era, ou não se teria portado desta maneira imatura e ridícula, roubando-lhe o
ar de forma sorrateira e cerce, sem aviso, esse trapaceiro!
Enquanto arrumava os pertences de
quem assim se fora, sem suspeitar que aquela seria a última noite que
descansava, o último copo de água que beberia, ela encontrou discos de vinil e
livros, no meio de camisolas (ainda com cheiro) e papeis antigos que melhor
fora não ter lido. No meio de um livro, um marcador com esta inscrição de
Fernando Pessoa:
“A morte chega cedo/Pois breve é
toda a vida/O instante é o arremedo/De uma coisa perdida.// O amor foi
começado/O ideal não acabou,/E quem tenha alcançado/Não sabe o que alcançou.//E
tudo isto, a morte/Risca, por não estar certo/No caderno da sorte/Que Deus
deixou aberto.”
Tudo se resumia, então, a sorte.
Seremos um conjunto inexplicável de acidentes? Tornar-nos-emos numa memória que
o tempo desconstrói. O que é, afinal, o sucesso se a derrota final é sempre
certa? Foi com estes pensamentos que escreveu o epitáfio dele, parafraseando
Camus:
“Viveu sempre em busca do amanhã,
de um melhor amanhã; desconsiderando que o amanhã o aproximava do seu último
inimigo.”