... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, September 26, 2019

O Véu Pintado


“Não levantes esse véu pintado/ Que esses que o vivem chamam/ Vida, ainda que represente formas irreais/ Imagem enganosa de tudo aquilo em que acreditamos/ em cores dispersas. Por trás/ espreitam o Medo e a Esperança, destinos gémeos/ que entrelaçam as suas sombras no abismo escuro e secreto./ Conheci um homem de coração sensível/ Que levantou esse véu procurando algo para amar/ mas nada encontrou, nem as coisas desse mundo/ poderiam agradar-lhe./ Movendo-se por entre os desatentos; esplendor nas sombras/ponto brilhante no cenário sombrio,/ ele foi uma alma que lutou pela verdade/ e, tal como o Pregador,/ nunca a encontrou.” (P.B. Shelley; com perdão da minha tradução, muito aquém do original)

Acreditamos no que desejamos acreditar. Vemos apenas o que queremos ver. As nossas crenças têm pouca relação com o real e não precisam de nada para se apoiar, excepto a nossa ilusão. Há que reconhecer que, infelizmente, temos certa quota parte de culpa na construção das nossas ilusões, pois a confusão dos sentidos, a distorção das percepções não é apenas causada pelo exterior (por mais manhoso e manipulador que este seja) mas também pela nossa própria vontade de que o objecto do nosso desejo seja como imaginamos. O iludido é, indubitavelmente, um enganado – a própria raiz da palavra o afirma (iludo, verbo latino que significa burlar). Porém, trata-se de um enganado que contribuíu para o seu engano, ainda que inconscientemente, e talvez apenas pela muita vontade que tinha de acreditar numa realidade diversa.

Tomemos como exemplo pragmático uma ilusão de óptica. Se eu acredito que vejo o que ali não está mas afirmo a sua existência, minto ou não? Que interessa aos restantes se foram os meus olhos traídos por um processo que, afinal, só em mim mesma se operou? Isto a ninguém importa, é claro, a não ser que eu, dentro dessa ilusão, portanto iludida (burlada!) provoque irreversíveis estragos na vida dos demais. Existe sempre a atenuante de que a verdade, coberta por toda a sorte de véus por algum mágico ilusionista que a si próprio se diverte, me fosse ocultada. No entanto, até que ponto existem atenuantes para trilhos que já não podem ser apagados?

Neste tempo de notícias, contra-informação, notícias falsas, volta-atrás e vai à frente, sem consequência e sem compromisso, é importante não esquecer o seguinte: para acreditar é necessário, primeiro e sobretudo, intencionalidade. Obviamente, a intenção do ilusionista de nos enganar; mas também a nossa intenção (ingénua? simplista? por vezes, pouco inteligente?) de sermos enganados. Racionalmente, pensar dá trabalho. Analisar algo de um ponto de vista diferente do seu é impensável para os dogmáticos. Se entramos no campo emocional, mais difícil ainda é ver destruída uma ilusão: pois como não acreditar que a pessoa que endeusámos não é, afinal, um deus? Ou, pior, que é apenas menos que um verme?

Que dizer, então, desse mágico caído em desgraça, dir-se-ia ídolo com pés de barro se pés tivesse, mas os ídolos são seres volantes e efémeros, na verdade ninguém sabendo muito bem com que linhas se cosem mas todos aparentando ser seus íntimos, por via da tal ilusão. Como mágico que é, continuará a iludir… e a magicar, cuidado! Já não surpreende, mas o truque continua.

Por mim, optarei sempre por levantar o véu pintado, ainda que ele constitua o falso conjunto de formas a que outros chamam vida. Não por arrogância, entenda-se. Mas porque não consigo viver com imagens enganosas e formas irreais. Aliás, reformulo: não consegui. Hoje em dia, o verbo é outro: já nem sobreviver consigo sem que haja verdade; se não para os outros, que ela exista no meu interior e nos de quem amo.

Friday, September 13, 2019

Antolhos


Aconteceu-me algo caricato que, para alguns, pode constituir um elogio, mas que, para mim, sempre foi fonte de muitas dores de cabeça. O contexto pouco interessa, interessa o facto: pediram-me prova de maioridade.

Quase incrédula, respondi que não tinha comigo os meus documentos, mas tinha o meu telemóvel onde, por sorte, está uma foto do cartão da “Middle School” do meu filho onde consta a idade dele e, portanto, fácil é deduzir que eu, sua mãe, serei maior de idade, porquanto não teria tido um filho aos 7 ou 6 anos de vida. Impávida, sem pestanejar, a requisitante respondeu-me “Não seria a primeira…” Fiquei gelada, mas admiti esta crua realidade. Usei, então, a internet para ver o email no telemóvel pois recordei-me que tinha, numa mensagem eletrónica, a minha certidão de casamento em anexo. A senhora não se deu por convencida, dizendo-me que isso não era prova. Embora eu argumentasse (de facto, os menores de idade podem casar, mas o menor fica emancipado pelo casamento, logo eu seria maior porque já casada, independentemente da idade), a senhora cortou a conversa dizendo que a certidão de casamento não tem fotografia, pelo que não podia comprovar a minha identidade. Discutível, já que também a certidão de nascimento (obviamente) não tem fotografia; porém, é usada como o documento identitário para podermos casar.

Perguntei como agir, e a resposta foi “impossível, nada a fazer”. Seguiu-se uma acesa argumentação em que procurei convencer a senhora da flagrante estupidez que era atribuir-me menoridade, para mais perante os factos à sua frente. A sua resposta foi sempre a mesma: “Eu não fiz a Lei, só sigo a Lei. Sigo o que está escrito. Eu cumpro. Temos de respeitar as convenções.” Mais adiante, já consternada e avermelhada, dizia “Onde iria parar o país e o mundo se não fizéssemos todos o que a Lei manda fazer?”

Neste momento, tive muita pena daquele ser humano, que voluntariamente abdicava da sua condição de ser pensante diariamente – pelos vistos, como hábito, fazendo disso sua segunda pele e natureza. É, decerto, extremamente confortável seguir à risca um caderno pautado, onde a mão pesada de outrem ditou qualquer coisa. Existe, em qualquer regime, a possibilidade de pensarmos e agirmos com a racionalidade e contextualização que cada caso individual exige. Mas concordo que é mecânico e mais fácil desresponsabilizarmo-nos e dizer “faço o que me mandam, está aqui no parágrafo tal e picos. A culpa é do gajo que fez isto, não é minha. Eu sou um bom funcionário; cumpro. Sou, até, um funcionário exemplar porque cumpro sem olhar para mais nada.”

Não me debruço sobre a circunstância filosófica que está por detrás disto já que qualquer um pode ir ler sobre “a banalidade do mal”, conceito de Hannah Arendt que popularizou exatamente esta mentalidade. Existem indivíduos perfeitamente vulgares, sem carácter distorcido, que dentro da mais perfeita bu(r)rocracia, cumprem a Lei à risca, com o único objetivo de ascender na carreira, e que, ao cumprir ordens sem questionar, fazem o Mal sem por uma só vez refletir nele.

O exemplo de Arendt era Adolf Eichmann, funcionário nazi. Temos hoje muitos mais exemplos, e a História há de falar neles a seu tempo. Obviamente, não estou a falar da senhora para quem a minha idade era tão importante, cujo caso é absolutamente irrelevante e mesquinho, mas da sua mentalidade, rasteira e inflexível.

Nenhum ser com este modus operandi mental é um ser livre. Ele próprio se encapsulou em Ditadura, seja qual for o regime de governo em que viva. É um humano-rebuçado para os dentinhos de um superior em ascensão... e queda.

Thursday, September 5, 2019

“Mulheres de Conforto”: o crime da escravidão sexual nipónica na Segunda Guerra Mundial


(Atenção: este é um artigo explícito e gráfico)




Imagem: Menina de conforto chinesa numa estação no fim da guerra em 1945,
 sendo interrogada por um soldado aliado (UK Imperial War Museum)

慰安婦 Os caracteres significam algo como “conforto-paz-mulher”. As ianfu ou jugun ianfu eram, pois, na acepção das tropas militares do Japão Imperial, as mulheres que lhes traziam tranquilidade e alívio. O eufemismo é rejeitado até hoje por estas mulheres, as poucas ainda vivas. Mulheres a quem não foi permitido viver como pessoas, tão pouco como mulheres: “nasci mulher, mas nunca vivi como uma mulher” (Kim Bok-dong, levada aos 14 anos para ser “mulher de conforto”).

Este é um dos temas mais sensíveis na Ásia quando se fala da Segunda Guerra Mundial, não só pela violência e crueza das histórias, mas porque se converteu num episódio longo tempo silenciado. Talvez porque as mulheres-vítimas tenham sentido o perigo de re-vitimização nas suas sociedades com a revelação do crime, já que, nas culturas confucianas, a violação e a perda da castidade são dois estigmas que marcam uma mulher como maculada, e que são causa para a sua ostracização. Quem diria que tínhamos, afinal, coisas em comum? (esta ironia seria pano para outra crónica…)

As “mulheres de conforto” eram escravas sexuais mantidas em estações de serviço sexual (ianjo) denominadas também “de conforto” num tempo historicamente convencionado entre 1932 e 1945, embora se saiba que a escravidão sexual exercida pelas milícias começou antes disso. Tais estações foram estabelecidas pelo governo japonês de então nos territórios ocupados pelas suas tropas em regiões tão vastas quanto China, Coreia, Filipinas, Taiwan, Singapura, Tailândia e outras. As meninas (algumas eram pouco mais que crianças) e mulheres capturadas ou seduzidas com promessas vinham de vários países, entre estes, e para além dos já mencionados, Indonésia, Timor Leste, Índias Orientais Holandesas (hoje inexistentes e parte da Indonésia actual), Burma (hoje Myanmar), Papua Nova Guiné, etc. Várias mulheres ocidentais residentes nestes países foram também escravas sexuais, nomeadamente mulheres dos E.U.A. e da Holanda que, na época, era um país colonizador de territórios locais.


Foto: Meninas e mulheres chinesas e malaias numa “estação de conforto” (Wikimedia)

A história das “mulheres de conforto” está intimamente ligada à história da guerra. O enquadramento começou a desenhar-se em 1895 quando Taiwan se tornou uma colónia japonesa. Depois, em 1910, foi a vez da Coreia se tornar uma colónia do Japão. Ambos os países permaneceram como colónias durante a Segunda Guerra Mundial. Foi desde a Coreia que o Japão fez guerra contra a China, numa tentativa de construir um Império que cobrisse Ásia-Pacífico. Nessa guerra Sino-Japonesa, deu-se um episódio que durou sensivelmente seis semanas e que teve início a 13 de Dezembro de 1937 quando os Japoneses capturaram Nanjing (na época, chamava-se Nanking e era a capital chinesa). Deu-se, então, um massacre de proporções épicas, que resultou não só na morte de centenas de milhares mas também em violações sistemáticas de crianças (meninos e meninas) e mulheres, abertas ao meio, penetradas (anal ou vaginalmente) com baionetas, com bambus, garrafas, mutiladas por violação e mortas em consequências de actos sexuais. As grávidas eram abertas na barriga. As mulheres idosas escaparam à violação de homens, mas não a serem violadas com objectos. Encontram facilmente na net fotos deste massacre, apesar da destruição maciça de documentos e provas em 1945. O caso, tristemente conhecido como “Rape of Nanking”, contabiliza a violação de cerca de 20.000 a 80.000 mulheres. Outras situações se sucederam no massacre, incluindo canibalismo e concursos de tortura dos militares sobre civis.


Foto: Mulher profanada em Nanking, segundo os arquivos do Nanjing Massacre Memorial Hall

As notícias das violações de Nanking perturbaram o Imperador japonês Hirohito, que imediatamente receou o impacto negativo que a imagem internacional do Japão iria sofrer com a notícia destas pormenorizadas atrocidades elevadas a grande escala. Consta na História que o Imperador convocou os seus Ministros e Chefes Militares para saber o que poderia ser feito para restaurar o perfil japonês. Desse conselho saíram duas resoluções: uma reforma do Código Militar e a ideia da criação das “estações de conforto sexual”.

Os objectivos destas “estações de conforto” eram vários: confinar os abusos sexuais a locais militarmente controlados (e fora dos olhos da imprensa); prevenir um sentimento anti-nipónico nos locais ocupados pelas tropas, locais esses que assim não veriam (atenção ao verbo!) as suas populações a serem brutalizadas por violação; reduzir as doenças venéreas dos soldados e as despesas médicas a ter com o exército, controlando tudo isto através das meninas (preferencialmente jovens e idealmente virgens quando capturadas) com quem o exército teria relações; reduzir o número de informação sobre os japoneses veiculado às populações. Esta última carece de explicação. De facto, havia já há largos anos uma política de prostituição legalizada, com bordeis instituídos. No entanto, os militares japoneses suspeitavam de espias nesses locais à medida que a guerra foi avançando. As “estações de conforto” eram uma ideia nova, com meninas traficadas de uns países para outros, que viviam isoladas, sem contacto com qualquer população local e sem saber a língua do local onde estavam. Assim, tais mulheres jamais constituiriam um perigo para o exército.

As meninas e mulheres era recrutadas segundo vários métodos. O primeiro era o rapto, puro e simples. O segundo era a compra, sobretudo nas colónias japonesas, Taiwan e Coreia. Nesse tempo, as colónias eram locais bastante pobres e as famílias, devastadas pela pobreza, vendiam os filhos aos militares (por mais absurdo e horrendo que nos pareça). Outro método consistia em aliciar jovens mulheres com promessas de trabalho falsas, tais como empregos de enfermagem ou de animação teatral junto das tropas. Na realidade, estas raparigas seriam todas coagidas ao mesmo papel: o da prostituição, agravado pela escravatura, e ainda por constantes espancamentos, sevícias e, nalguns casos, a morte.

Não é seguro dizer quantas “estações de conforto” e quantas “mulheres de conforto” existiram. Como sempre neste tipo de crimes, o criminoso destrói as provas e a vítima silencia-se. Ainda assim, dada a dimensão holocaustica da situação, é possível avançar com alguns números: entre 20.000 a 410.000 mulheres em 125 estações. Para uma comparação dos estudos feitos até hoje entre os vários académicos que se dedicaram a esta causa, verificar aqui. Note-se que uma só mulher podia “servir” 100 homens num dia, o que contabiliza uma impressionante matemática de horror.

Em 1993, o Tribunal das Nações Unidas Violações dos Direitos das Mulheres estimou que menos de 10 por cento das “mulheres de conforto” tinham sobrevivido à Segunda Guerra Mundial. Para além da elevada taxa de mortandade nas estações, aconteceram suicídios imediatamente após a guerra, devido à ostracização a que foram votadas ou ainda a complicações de saúde causadas pela vida nas estações. Além disso, bizarramente, algumas das meninas cometeram suicídio aquando da chegada dos Aliados por terem sido convencidas que os caucasianos eram canibais e as comeriam vivas. Também há relatos de que alguns dos Aliados americanos não terminaram com as “estações de conforto” que encontraram e continuaram a usá-las, pelo que algumas das meninas apenas mudaram de abusadores durante alguns anos. Quão tentador é para um violento continuar a abusar de um vulnerável, já acostumado à escravidão!

  

Foto: Mulheres coreanas numa estação de conforto em 1944 (Exibição do Seoul Center for Architecture and Urbanism)

No pós-guerra, a partir dos anos 50, o Japão emitiu declarações de desculpa e encetou negociações, sobretudo com a Coreia, para compensações monetárias aos sobreviventes da guerra. De forma paradoxal, muitos oficiais negaram continuamente a existência das estações e das escravas sexuais. Foi apenas nos anos 90 que explodiu a memória das sobreviventes, certamente auxiliadas pelo facto da democratização da Coreia do Sul em 1987 e por um artigo de jornal de Yun Chon-Ok em Janeiro de1990. Este artigo denunciador foi refutado pelo Japão, levando a que 37 organizações de mulheres se juntassem na Coreia do Sul exigindo do governo japonês: o reconhecimento de que as mulheres tinham sido levadas à força; uma desculpa pública; uma investigação sobre o que se passara e os resultados divulgados publicamente; a construção de um monumento para comemorar as vítimas; pagamento de compensação às vítimas ou seus herdeiros; o estabelecimento de programas educacionais que consciencializassem sobre essa realidade histórica. O governo japonês só reagiu quando uma das vítimas, Kim Hak-sun, veio a público contar a sua história no ano seguinte. Foi também ela a única a encetar um procedimento legal contra o governo do Japão. Do trauma colectivo, subsistem pois histórias individuais que funcionam como alavancas para que a História seja reconhecida: a partir da revelação de Kim, o governo japonês estabeleceu o Asian Women’s Fund for Comfort Women e pediu publicamente desculpa às mulheres.

A situação de tensão diplomática sobre este aspecto agudizou-se, tendo-se sucedido descobertas de documentação, vindas a público de sobreviventes, desculpas formais do Primeiro Ministro japonês (Miyazawa em 1992) e resultados dos inquéritos seguidas de uma batalha entre a Coreia do Sul e o Japão sobre a compensação económica. Embora a Coreia tenha dado a situação por satisfatoriamente resolvida, as vítimas coreanas sobreviventes acabaram por levantar um processo judicial contra o seu próprio país, por considerarem que o seu governo tinha anulado os direitos individuais das vítimas de obter compensação do Japão ao assinar um acordo entre governos sem as consultar. Não pode dizer-se que o tema esteja ultrapassado. Mesmo a nível governamental, continuam a existir situações de diplomacia sensível.

Porém, nem só da Coreia reza a História, embora seja coreano o esmagador número de sobreviventes a manifestar-se. Existem testemunhos da China, de Taiwan, das Filipinas, e até da Holanda, cuja sobrevivente JanRuff- O’Herne ficou famosa, entre outras coisas por admitir que a sua visibilidade caucasiana tinha levado a que este tema fosse mais falado e ainda pela triste recusa da Igreja em permitir que se tornasse freira devido ao seu passado “de conforto”, um sonho conventual que acalentava desde criança.

Hoje, existem vídeos a circular sobre o assunto, monografias académicas, reconstituições históricas , memoriais em honra das “mulheres-conforto”, romances e continuam a haver manifestações para que não sejam esquecidos os seus sofrimentos.


Foto: Sobrevivente coreana relembrando os tempos da escravidão sexual numa conferência
(foto de Kazuhiro Nogi)

Termino com o testemunho, um entre tantos, de uma mulher coreana que era uma criança de 13 anos quando foi raptada e feita escrava sexual. Este testemunho foi retirado do relatório de 1996 das Nações Unidas sobre as “mulheres de conforto”. Nada como as palavras desta menina para sermos co-testemunhas do trauma. O seu testemunho em idosa jamais esqueceu o horror, embora ela tivesse esquecido a sua própria língua (atenção, conteúdo gráfico e sensível)

Chong Ok-sun, nascida em1920:

“Um dia de Junho, eu tinha 13 anos, e tinha de preparar o almoço para os meus pais que estavam a trabalhar no campo, por isso fui até à vila buscar água. Um soldado japonês apanhou-me de surpresa e levou-me. Os meus pais nunca souberam o que tinha acontecido à sua filha. Primeiro, fui levada para a esquadra da polícia num camião onde fui violada por vários polícias. Sempre que eu gritava, punham-me meias dentro da boca e continuavam a violar-me. O chefe da esquadra bateu-me no olho esquerdo porque eu chorava. Nesse dia, fiquei cega do olho esquerdo.

Dez dias depois (não estou certa de quantos dias exactamente), fui levada para as barracas de guarnição japonesas na cidade de Heysan. Havia cerca de 400 outras meninas coreanas comigo e tínhamos de servir mais de 5.000 soldados japoneses como escravas sexuais diariamente: mais de 40 homens cada uma. Cada vez que eu protestava, batiam-me ou enfiavam-me trapos dentro da boca. Um deles colocou um fósforo aceso junto das minhas “partes privadas” até eu lhe obedecer. Nesse momento, já estas estavam a escorrer sangue.

Uma das meninas coreanas que estavam ali quis saber porque tínhamos de servir tantos homens por dia. Para a castigar pela sua pergunta, o comandante da companhia, Yamamoto, ordenou que ela fosse espancada com uma espada. Enquanto nós víamos, os soldados tiraram-lhe a roupa, amarram-lhe as pernas e as mãos e fizeram-na rolar sobre uma tábua com pregos até os pregos ficarem cobertos de sangue e de pedaços de carne. No fim, cortaram-lhe a cabeça. Yamamoto disse-nos: “É fácil matar-vos a todas, é mais fácil do que matar cães.” Também nos disse “já que as meninas coreanas estão a chorar porque não comeram, cozam esta carne humana e façam-nas comê-la.”

Uma das meninas coreanas apanhou uma doença venérea como consequência das violações constantes e, em resultado, 50 soldados japoneses foram infectados. Para impedir a doença de se espalhar e também para esterilizar a menina coreana, enfiaram-lhe uma barra de ferro quente na vagina.

Certa vez, levaram 40 de nós num camião para longe, até uma piscina cheia de água e de cobras. Os soldados espancaram várias das raparigas e depois mandaram-nas para dentro de água, cobriram-nas com terra e, assim, enterraram-nas vivas.

Penso que mais de metade das meninas das barracas de guarnição foram mortas. Tentei fugir por duas vezes, e em ambas fui apanhada após um par de dias. Depois, era duplamente torturada. Bateram-me tanto na cabeça; ainda tenho todas as cicatrizes. Também me tatuaram: dentro dos lábios, no peito, no estômago, noutros lugares. Desmaiei nesse momento. Quando acordei, estava no alto da montanha, supostamente ali deixada para morrer. Éramos 3 que ali estávamos, sobrevivemos 2: eu e Kuk Hae. Fomos encontradas por um homem de 50 anos que vivia nas montanhas e que nos deu roupa e algo para comer. Ele ajudou-nos a viajar de volta para a Coreia, para onde regressámos. Voltámos para o nosso país com cicatrizes, estéreis, e já não sabíamos falar bem. Tínhamos 18 anos, tinham passado cinco anos em que tínhamos servido de escravas sexuais para os japoneses.”

A escravidão sexual, o crime, pode acabar… mas a sua marca, o trauma, perdura para sempre.