(Atenção: este é um artigo explícito e gráfico)
Imagem: Menina de conforto chinesa numa estação no fim da
guerra em 1945,
sendo interrogada por
um soldado aliado (UK Imperial War Museum)
慰安婦 Os caracteres significam
algo como “conforto-paz-mulher”. As ianfu
ou jugun ianfu eram, pois, na acepção
das tropas militares do Japão Imperial, as mulheres que lhes traziam
tranquilidade e alívio. O eufemismo é rejeitado até hoje por estas mulheres, as
poucas ainda vivas. Mulheres a quem não foi permitido viver como pessoas, tão
pouco como mulheres: “nasci mulher, mas nunca vivi como uma mulher” (Kim Bok-dong, levada
aos 14 anos para ser “mulher de conforto”).
Este é um dos temas mais
sensíveis na Ásia quando se fala da Segunda Guerra Mundial, não só pela
violência e crueza das histórias, mas porque se converteu num episódio
longo tempo silenciado. Talvez porque as mulheres-vítimas tenham sentido o
perigo de re-vitimização nas suas sociedades com a revelação do crime, já que,
nas culturas confucianas, a
violação e a perda da castidade são dois estigmas que marcam uma mulher
como maculada, e que são causa para a sua ostracização.
Quem diria que tínhamos, afinal, coisas em comum?
(esta ironia seria pano para outra crónica…)
As “mulheres de conforto” eram
escravas sexuais mantidas em estações de serviço sexual (ianjo) denominadas também
“de conforto” num tempo historicamente convencionado entre 1932 e 1945, embora
se saiba que a escravidão sexual exercida pelas milícias começou antes disso. Tais
estações foram estabelecidas pelo governo japonês de então nos territórios
ocupados pelas suas tropas em regiões tão vastas quanto China, Coreia,
Filipinas, Taiwan, Singapura, Tailândia e outras. As meninas (algumas eram
pouco mais que crianças) e mulheres capturadas ou seduzidas com promessas
vinham de vários países, entre estes, e para além dos já mencionados,
Indonésia, Timor Leste, Índias Orientais Holandesas (hoje inexistentes e parte
da Indonésia actual), Burma (hoje Myanmar), Papua Nova Guiné, etc. Várias
mulheres ocidentais residentes nestes países foram também escravas sexuais,
nomeadamente mulheres dos E.U.A. e da Holanda que, na época, era um país
colonizador de territórios locais.
Foto: Meninas e mulheres chinesas e malaias numa “estação de
conforto” (Wikimedia)
A história das “mulheres de
conforto” está intimamente ligada à história da guerra. O enquadramento começou
a desenhar-se em 1895 quando Taiwan se tornou uma colónia japonesa. Depois, em
1910, foi a vez da Coreia se tornar uma colónia do Japão. Ambos os países permaneceram
como colónias durante a Segunda Guerra Mundial. Foi desde a Coreia que o Japão
fez guerra contra a China, numa tentativa de construir um Império que cobrisse
Ásia-Pacífico. Nessa guerra Sino-Japonesa, deu-se um episódio que durou
sensivelmente seis semanas e que teve início a 13 de Dezembro de 1937 quando os
Japoneses capturaram Nanjing (na época, chamava-se Nanking e era a capital
chinesa). Deu-se, então, um massacre de proporções épicas, que resultou não só
na morte de centenas de milhares mas também em violações sistemáticas de
crianças (meninos e meninas) e mulheres, abertas ao meio, penetradas (anal ou
vaginalmente) com baionetas, com bambus, garrafas, mutiladas por violação e
mortas em consequências de actos sexuais. As grávidas eram abertas na barriga. As
mulheres idosas escaparam à violação de homens, mas não a serem violadas com
objectos. Encontram facilmente na net fotos
deste massacre, apesar da destruição maciça de documentos e provas em 1945. O
caso, tristemente conhecido como “Rape of Nanking”, contabiliza
a violação de cerca de 20.000 a 80.000 mulheres. Outras situações se sucederam
no massacre, incluindo canibalismo e concursos de tortura dos militares sobre
civis.
Foto: Mulher profanada em
Nanking, segundo os arquivos do Nanjing Massacre Memorial Hall
As notícias das violações de
Nanking perturbaram o Imperador japonês Hirohito, que imediatamente receou o
impacto negativo que a imagem internacional do Japão iria sofrer com a notícia
destas pormenorizadas atrocidades elevadas a grande escala. Consta na História
que o Imperador convocou os seus Ministros e Chefes Militares para saber o que
poderia ser feito para restaurar o perfil japonês. Desse conselho saíram duas
resoluções: uma reforma do Código Militar e a ideia da criação das “estações de
conforto sexual”.
Os objectivos
destas “estações de conforto” eram vários: confinar os abusos sexuais a
locais militarmente controlados (e fora dos olhos da imprensa); prevenir um
sentimento anti-nipónico nos locais ocupados pelas tropas, locais esses que
assim não veriam (atenção ao verbo!) as suas populações a serem brutalizadas
por violação; reduzir as doenças venéreas dos soldados e as despesas médicas a
ter com o exército, controlando tudo isto através das meninas (preferencialmente
jovens e idealmente virgens quando capturadas) com quem o exército teria
relações; reduzir o número de informação sobre os japoneses veiculado às populações.
Esta última carece de explicação. De facto, havia já há largos anos uma
política de prostituição legalizada, com bordeis instituídos. No entanto, os
militares japoneses suspeitavam de espias nesses locais à medida que a guerra
foi avançando. As “estações de conforto” eram uma ideia nova, com meninas traficadas
de uns países para outros, que viviam isoladas, sem contacto com qualquer
população local e sem saber a língua do local onde estavam. Assim, tais
mulheres jamais constituiriam um perigo para o exército.
As meninas e mulheres era
recrutadas segundo vários métodos. O
primeiro era o rapto, puro e simples. O segundo era a compra, sobretudo nas
colónias japonesas, Taiwan e Coreia. Nesse tempo, as colónias eram locais bastante
pobres e as famílias, devastadas pela pobreza, vendiam os filhos aos militares
(por mais absurdo e horrendo que nos pareça). Outro método consistia em aliciar
jovens mulheres com promessas de trabalho falsas, tais como empregos de enfermagem
ou de animação teatral junto das tropas. Na realidade, estas raparigas seriam
todas coagidas ao mesmo papel: o da prostituição, agravado pela escravatura, e
ainda por constantes espancamentos, sevícias e, nalguns casos, a morte.
Não é seguro dizer quantas “estações
de conforto” e quantas “mulheres de conforto” existiram. Como sempre neste tipo
de crimes, o criminoso destrói as provas e a vítima silencia-se. Ainda assim,
dada a dimensão holocaustica da situação, é possível avançar com alguns números:
entre 20.000 a 410.000 mulheres em 125 estações. Para uma comparação dos
estudos feitos até hoje entre os vários académicos que se dedicaram a esta
causa, verificar aqui. Note-se
que uma só mulher podia “servir” 100 homens num dia, o que contabiliza uma
impressionante matemática de horror.
Em 1993, o Tribunal das Nações
Unidas Violações dos Direitos das Mulheres estimou
que menos de 10 por cento das “mulheres de conforto” tinham sobrevivido à Segunda
Guerra Mundial. Para além da elevada taxa de mortandade nas estações,
aconteceram suicídios imediatamente após a guerra, devido à ostracização a que
foram votadas ou ainda a complicações de saúde causadas pela vida nas estações.
Além disso, bizarramente, algumas das meninas cometeram suicídio aquando da chegada
dos Aliados por terem sido convencidas que os caucasianos eram canibais e as
comeriam vivas. Também há relatos
de que alguns dos Aliados americanos não terminaram com as “estações de
conforto” que encontraram e continuaram a usá-las, pelo que algumas das meninas
apenas mudaram de abusadores durante alguns anos. Quão tentador é para um
violento continuar a abusar de um vulnerável, já acostumado à escravidão!
Foto: Mulheres coreanas numa
estação de conforto em 1944 (Exibição do Seoul Center for Architecture and
Urbanism)
No pós-guerra, a partir dos anos
50, o Japão emitiu declarações de desculpa e encetou negociações, sobretudo com
a Coreia, para compensações monetárias aos sobreviventes da guerra. De forma
paradoxal, muitos oficiais negaram continuamente a existência das estações e
das escravas sexuais. Foi apenas nos anos 90 que explodiu a memória das
sobreviventes, certamente auxiliadas pelo facto da democratização da Coreia do
Sul em 1987 e por um artigo de
jornal de Yun Chon-Ok em Janeiro de1990. Este artigo denunciador foi
refutado pelo Japão, levando a que 37 organizações de mulheres se juntassem na
Coreia do Sul exigindo do governo japonês: o reconhecimento de que as mulheres
tinham sido levadas à força; uma desculpa pública; uma investigação sobre o que
se passara e os resultados divulgados publicamente; a construção de um
monumento para comemorar as vítimas; pagamento de compensação às vítimas ou
seus herdeiros; o estabelecimento de programas educacionais que consciencializassem
sobre essa realidade histórica. O governo japonês só reagiu quando uma das
vítimas, Kim Hak-sun,
veio a público contar a sua história no ano seguinte. Foi também ela a única a
encetar um procedimento legal contra o governo do Japão. Do trauma colectivo,
subsistem pois histórias individuais que funcionam como alavancas para que a
História seja reconhecida: a partir da revelação de Kim, o governo japonês
estabeleceu o Asian
Women’s Fund for Comfort Women e pediu publicamente desculpa às mulheres.
A situação de tensão diplomática sobre
este aspecto agudizou-se, tendo-se sucedido descobertas de documentação, vindas
a público de sobreviventes, desculpas
formais do Primeiro Ministro japonês (Miyazawa em 1992) e resultados dos inquéritos seguidas de uma
batalha entre a Coreia do Sul e o Japão sobre a compensação económica. Embora a
Coreia tenha dado a situação por satisfatoriamente resolvida, as vítimas
coreanas sobreviventes acabaram por levantar um processo judicial contra o seu
próprio país, por considerarem que o seu governo tinha anulado os direitos
individuais das vítimas de obter compensação do Japão ao assinar um acordo
entre governos sem as consultar. Não pode dizer-se que o tema esteja ultrapassado.
Mesmo a nível governamental, continuam a existir situações
de diplomacia
sensível.
Porém, nem só da Coreia reza a
História, embora seja coreano o esmagador número de sobreviventes a
manifestar-se. Existem testemunhos da China,
de Taiwan, das Filipinas,
e até da Holanda, cuja sobrevivente JanRuff- O’Herne ficou famosa, entre outras coisas por admitir que a sua
visibilidade caucasiana tinha levado a que este tema fosse mais falado e ainda
pela triste recusa da Igreja em permitir que se tornasse freira devido ao seu
passado “de conforto”, um sonho conventual que acalentava desde criança.
Hoje, existem vídeos
a circular sobre o assunto, monografias
académicas, reconstituições históricas
, memoriais
em honra das “mulheres-conforto”, romances
e continuam a haver manifestações
para que não sejam esquecidos os seus sofrimentos.
Foto: Sobrevivente coreana relembrando os tempos da
escravidão sexual numa conferência
(foto de Kazuhiro
Nogi)
Termino
com o testemunho, um entre tantos, de uma mulher coreana que era uma criança de
13 anos quando foi raptada e feita escrava sexual. Este testemunho foi retirado
do relatório de 1996
das Nações Unidas sobre as
“mulheres de conforto”. Nada como as palavras desta menina para sermos
co-testemunhas do trauma. O seu testemunho em idosa jamais esqueceu o horror,
embora ela tivesse esquecido a sua própria língua (atenção, conteúdo gráfico e
sensível)
Chong Ok-sun, nascida
em1920:
“Um dia de Junho, eu
tinha 13 anos, e tinha de preparar o almoço para os meus pais que estavam a
trabalhar no campo, por isso fui até à vila buscar água. Um soldado japonês
apanhou-me de surpresa e levou-me. Os meus pais nunca souberam o que tinha
acontecido à sua filha. Primeiro, fui levada para a esquadra da polícia num
camião onde fui violada por vários polícias. Sempre que eu gritava, punham-me
meias dentro da boca e continuavam a violar-me. O chefe da esquadra bateu-me no
olho esquerdo porque eu chorava. Nesse dia, fiquei cega do olho esquerdo.
Dez dias depois (não
estou certa de quantos dias exactamente), fui levada para as barracas de
guarnição japonesas na cidade de Heysan. Havia cerca de 400 outras meninas
coreanas comigo e tínhamos de servir mais de 5.000 soldados japoneses como
escravas sexuais diariamente: mais de 40 homens cada uma. Cada vez que eu
protestava, batiam-me ou enfiavam-me trapos dentro da boca. Um deles colocou um
fósforo aceso junto das minhas “partes privadas” até eu lhe obedecer. Nesse
momento, já estas estavam a escorrer sangue.
Uma das meninas
coreanas que estavam ali quis saber porque tínhamos de servir tantos homens por
dia. Para a castigar pela sua pergunta, o comandante da companhia, Yamamoto,
ordenou que ela fosse espancada com uma espada. Enquanto nós víamos, os
soldados tiraram-lhe a roupa, amarram-lhe as pernas e as mãos e fizeram-na
rolar sobre uma tábua com pregos até os pregos ficarem cobertos de sangue e de
pedaços de carne. No fim, cortaram-lhe a cabeça. Yamamoto disse-nos: “É fácil
matar-vos a todas, é mais fácil do que matar cães.” Também nos disse “já que as
meninas coreanas estão a chorar porque não comeram, cozam esta carne humana e
façam-nas comê-la.”
Uma das meninas
coreanas apanhou uma doença venérea como consequência das violações constantes
e, em resultado, 50 soldados japoneses foram infectados. Para impedir a doença
de se espalhar e também para esterilizar a menina coreana, enfiaram-lhe uma
barra de ferro quente na vagina.
Certa vez, levaram
40 de nós num camião para longe, até uma piscina cheia de água e de cobras. Os
soldados espancaram várias das raparigas e depois mandaram-nas para dentro de
água, cobriram-nas com terra e, assim, enterraram-nas vivas.
Penso que mais de metade das meninas das barracas de guarnição
foram mortas. Tentei fugir por duas vezes, e em ambas fui apanhada após um par
de dias. Depois, era duplamente torturada. Bateram-me tanto na cabeça; ainda
tenho todas as cicatrizes. Também me tatuaram: dentro dos lábios, no peito, no
estômago, noutros lugares. Desmaiei nesse momento. Quando acordei, estava no
alto da montanha, supostamente ali deixada para morrer. Éramos 3 que ali
estávamos, sobrevivemos 2: eu e Kuk Hae. Fomos encontradas por um homem de 50
anos que vivia nas montanhas e que nos deu roupa e algo para comer. Ele
ajudou-nos a viajar de volta para a Coreia, para onde regressámos. Voltámos para
o nosso país com cicatrizes, estéreis, e já não sabíamos falar bem. Tínhamos 18
anos, tinham passado cinco anos em que tínhamos servido de escravas sexuais
para os japoneses.”
A escravidão sexual, o crime, pode acabar… mas a sua marca, o trauma, perdura para sempre.