“Não levantes esse véu pintado/
Que esses que o vivem chamam/ Vida, ainda que represente formas irreais/ Imagem
enganosa de tudo aquilo em que acreditamos/ em cores dispersas. Por trás/
espreitam o Medo e a Esperança, destinos gémeos/ que entrelaçam as suas sombras
no abismo escuro e secreto./ Conheci um homem de coração sensível/ Que levantou
esse véu procurando algo para amar/ mas nada encontrou, nem as coisas desse
mundo/ poderiam agradar-lhe./ Movendo-se por entre os desatentos; esplendor nas
sombras/ponto brilhante no cenário sombrio,/ ele foi uma alma que lutou pela
verdade/ e, tal como o Pregador,/ nunca a encontrou.” (P.B. Shelley; com perdão
da minha tradução, muito aquém do original)
Acreditamos no que desejamos
acreditar. Vemos apenas o que queremos ver. As nossas crenças têm pouca relação
com o real e não precisam de nada para se apoiar, excepto a nossa ilusão. Há
que reconhecer que, infelizmente, temos certa quota parte de culpa na
construção das nossas ilusões, pois a confusão dos sentidos, a distorção das
percepções não é apenas causada pelo exterior (por mais manhoso e manipulador
que este seja) mas também pela nossa própria vontade de que o objecto do nosso
desejo seja como imaginamos. O iludido é, indubitavelmente, um enganado – a
própria raiz da palavra o afirma (iludo,
verbo latino que significa burlar). Porém, trata-se de um enganado que
contribuíu para o seu engano, ainda que inconscientemente, e talvez apenas pela
muita vontade que tinha de acreditar numa realidade diversa.
Tomemos como exemplo pragmático
uma ilusão de óptica. Se eu acredito que vejo o que ali não está mas afirmo a
sua existência, minto ou não? Que interessa aos restantes se foram os meus
olhos traídos por um processo que, afinal, só em mim mesma se operou? Isto a
ninguém importa, é claro, a não ser que eu, dentro dessa ilusão, portanto
iludida (burlada!) provoque irreversíveis estragos na vida dos demais. Existe
sempre a atenuante de que a verdade, coberta por toda a sorte de véus por algum
mágico ilusionista que a si próprio se diverte, me fosse ocultada. No entanto,
até que ponto existem atenuantes para trilhos que já não podem ser apagados?
Neste tempo de notícias,
contra-informação, notícias falsas, volta-atrás e vai à frente, sem
consequência e sem compromisso, é importante não esquecer o seguinte: para
acreditar é necessário, primeiro e sobretudo, intencionalidade. Obviamente, a
intenção do ilusionista de nos enganar; mas também a nossa intenção (ingénua?
simplista? por vezes, pouco inteligente?) de sermos enganados. Racionalmente,
pensar dá trabalho. Analisar algo de um ponto de vista diferente do seu é
impensável para os dogmáticos. Se entramos no campo emocional, mais difícil
ainda é ver destruída uma ilusão: pois como não acreditar que a pessoa que
endeusámos não é, afinal, um deus? Ou, pior, que é apenas menos que um verme?
Que dizer, então, desse mágico
caído em desgraça, dir-se-ia ídolo com pés de barro se pés tivesse, mas os
ídolos são seres volantes e efémeros, na verdade ninguém sabendo muito bem com
que linhas se cosem mas todos aparentando ser seus íntimos, por via da tal
ilusão. Como mágico que é, continuará a iludir… e a magicar, cuidado! Já não
surpreende, mas o truque continua.
Por mim, optarei sempre por
levantar o véu pintado, ainda que ele constitua o falso conjunto de formas a
que outros chamam vida. Não por arrogância, entenda-se. Mas porque não consigo
viver com imagens enganosas e formas irreais. Aliás, reformulo: não consegui.
Hoje em dia, o verbo é outro: já nem sobreviver consigo sem que haja verdade;
se não para os outros, que ela exista no meu interior e nos de quem amo.