... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, September 13, 2019

Antolhos


Aconteceu-me algo caricato que, para alguns, pode constituir um elogio, mas que, para mim, sempre foi fonte de muitas dores de cabeça. O contexto pouco interessa, interessa o facto: pediram-me prova de maioridade.

Quase incrédula, respondi que não tinha comigo os meus documentos, mas tinha o meu telemóvel onde, por sorte, está uma foto do cartão da “Middle School” do meu filho onde consta a idade dele e, portanto, fácil é deduzir que eu, sua mãe, serei maior de idade, porquanto não teria tido um filho aos 7 ou 6 anos de vida. Impávida, sem pestanejar, a requisitante respondeu-me “Não seria a primeira…” Fiquei gelada, mas admiti esta crua realidade. Usei, então, a internet para ver o email no telemóvel pois recordei-me que tinha, numa mensagem eletrónica, a minha certidão de casamento em anexo. A senhora não se deu por convencida, dizendo-me que isso não era prova. Embora eu argumentasse (de facto, os menores de idade podem casar, mas o menor fica emancipado pelo casamento, logo eu seria maior porque já casada, independentemente da idade), a senhora cortou a conversa dizendo que a certidão de casamento não tem fotografia, pelo que não podia comprovar a minha identidade. Discutível, já que também a certidão de nascimento (obviamente) não tem fotografia; porém, é usada como o documento identitário para podermos casar.

Perguntei como agir, e a resposta foi “impossível, nada a fazer”. Seguiu-se uma acesa argumentação em que procurei convencer a senhora da flagrante estupidez que era atribuir-me menoridade, para mais perante os factos à sua frente. A sua resposta foi sempre a mesma: “Eu não fiz a Lei, só sigo a Lei. Sigo o que está escrito. Eu cumpro. Temos de respeitar as convenções.” Mais adiante, já consternada e avermelhada, dizia “Onde iria parar o país e o mundo se não fizéssemos todos o que a Lei manda fazer?”

Neste momento, tive muita pena daquele ser humano, que voluntariamente abdicava da sua condição de ser pensante diariamente – pelos vistos, como hábito, fazendo disso sua segunda pele e natureza. É, decerto, extremamente confortável seguir à risca um caderno pautado, onde a mão pesada de outrem ditou qualquer coisa. Existe, em qualquer regime, a possibilidade de pensarmos e agirmos com a racionalidade e contextualização que cada caso individual exige. Mas concordo que é mecânico e mais fácil desresponsabilizarmo-nos e dizer “faço o que me mandam, está aqui no parágrafo tal e picos. A culpa é do gajo que fez isto, não é minha. Eu sou um bom funcionário; cumpro. Sou, até, um funcionário exemplar porque cumpro sem olhar para mais nada.”

Não me debruço sobre a circunstância filosófica que está por detrás disto já que qualquer um pode ir ler sobre “a banalidade do mal”, conceito de Hannah Arendt que popularizou exatamente esta mentalidade. Existem indivíduos perfeitamente vulgares, sem carácter distorcido, que dentro da mais perfeita bu(r)rocracia, cumprem a Lei à risca, com o único objetivo de ascender na carreira, e que, ao cumprir ordens sem questionar, fazem o Mal sem por uma só vez refletir nele.

O exemplo de Arendt era Adolf Eichmann, funcionário nazi. Temos hoje muitos mais exemplos, e a História há de falar neles a seu tempo. Obviamente, não estou a falar da senhora para quem a minha idade era tão importante, cujo caso é absolutamente irrelevante e mesquinho, mas da sua mentalidade, rasteira e inflexível.

Nenhum ser com este modus operandi mental é um ser livre. Ele próprio se encapsulou em Ditadura, seja qual for o regime de governo em que viva. É um humano-rebuçado para os dentinhos de um superior em ascensão... e queda.