Aconteceu-me algo caricato que, para
alguns, pode constituir um elogio, mas que, para mim, sempre foi fonte de
muitas dores de cabeça. O contexto pouco interessa, interessa o facto:
pediram-me prova de maioridade.
Quase incrédula, respondi que não tinha
comigo os meus documentos, mas tinha o meu telemóvel onde, por sorte, está uma
foto do cartão da “Middle School” do meu filho onde consta a idade dele e,
portanto, fácil é deduzir que eu, sua mãe, serei maior de idade, porquanto não
teria tido um filho aos 7 ou 6 anos de vida. Impávida, sem pestanejar, a
requisitante respondeu-me “Não seria a primeira…” Fiquei gelada, mas admiti
esta crua realidade. Usei, então, a internet para ver o email no telemóvel pois
recordei-me que tinha, numa mensagem eletrónica, a minha certidão de casamento
em anexo. A senhora não se deu por convencida, dizendo-me que isso não era
prova. Embora eu argumentasse (de facto, os menores de idade podem casar, mas o
menor fica emancipado pelo casamento, logo eu seria maior porque já casada,
independentemente da idade), a senhora cortou a conversa dizendo que a certidão
de casamento não tem fotografia, pelo que não podia comprovar a minha
identidade. Discutível, já que também a certidão de nascimento (obviamente) não
tem fotografia; porém, é usada como o documento identitário para podermos
casar.
Perguntei como agir, e a resposta foi
“impossível, nada a fazer”. Seguiu-se uma acesa argumentação em que procurei
convencer a senhora da flagrante estupidez que era atribuir-me menoridade, para
mais perante os factos à sua frente. A sua resposta foi sempre a mesma: “Eu não
fiz a Lei, só sigo a Lei. Sigo o que está escrito. Eu cumpro. Temos de
respeitar as convenções.” Mais adiante, já consternada e avermelhada, dizia
“Onde iria parar o país e o mundo se não fizéssemos todos o que a Lei manda
fazer?”
Neste momento, tive muita pena daquele
ser humano, que voluntariamente abdicava da sua condição de ser pensante
diariamente – pelos vistos, como hábito, fazendo disso sua segunda pele e
natureza. É, decerto, extremamente confortável seguir à risca um caderno
pautado, onde a mão pesada de outrem ditou qualquer coisa. Existe, em qualquer
regime, a possibilidade de pensarmos e agirmos com a racionalidade e
contextualização que cada caso individual exige. Mas concordo que é mecânico e mais
fácil desresponsabilizarmo-nos e dizer “faço o que me mandam, está aqui no parágrafo
tal e picos. A culpa é do gajo que fez isto, não é minha. Eu sou um bom
funcionário; cumpro. Sou, até, um funcionário exemplar porque cumpro sem olhar
para mais nada.”
Não me debruço sobre a circunstância
filosófica que está por detrás disto já que qualquer um pode ir ler sobre “a
banalidade do mal”, conceito de Hannah Arendt que popularizou exatamente esta
mentalidade. Existem indivíduos perfeitamente vulgares, sem carácter
distorcido, que dentro da mais perfeita bu(r)rocracia, cumprem a Lei à risca,
com o único objetivo de ascender na carreira, e que, ao cumprir ordens sem
questionar, fazem o Mal sem por uma só vez refletir nele.
O exemplo de Arendt era Adolf Eichmann,
funcionário nazi. Temos hoje muitos mais exemplos, e a História há de falar
neles a seu tempo. Obviamente, não estou a falar da senhora para quem a minha
idade era tão importante, cujo caso é absolutamente irrelevante e mesquinho,
mas da sua mentalidade, rasteira e inflexível.
Nenhum ser com este modus operandi mental é um ser livre. Ele próprio se encapsulou em
Ditadura, seja qual for o regime de governo em que viva. É um humano-rebuçado
para os dentinhos de um superior em ascensão... e queda.