... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, January 30, 2020

O racismo tal qual ele é


Vivi vários anos em Lisboa e as Universidades onde dei aulas eram uma no Centro e outra na periferia. Nos últimos anos, ouço que a qualidade de vida em Lisboa piorou, incluindo a insegurança. Situações ou identidades actuais de risco: ser negro, ser cigano, ser branco, ser imigrante (nomeadamente residente na Mouraria, na Amadora ou noutro sítio de empacotamento), ser muçulmano elegendo um líder religioso, ser motorista de autocarro, ser polícia, ser desempregado e falar com turistas no Camões, ir a uma festa, ir a uma manifestação, enfim…  A vida não está fácil. O trabalhador residente comum tem dificuldades em estar tranquilo. Todas as situações acima mencionadas podem acabar em pancadaria, esfaqueamento ou morte.

Não ignoro, por experiência, que a xenofobia e o racismo existem em todo o lado. A fatia dominante de qualquer população exibe sempre, em maior ou menor grau, comportamentos de intolerância para com as minorias. Daqui resulta que o caucasiano dominante na Europa será considerado minoria no Oriente e na África (excepto na do Sul) e, portanto, a história do racismo de quem está contra quem sofre reviravolta dependendo de onde o indivíduo se encontra. Nem é preciso mudar tanto de geografia. Um europeu do sul, moreninho e peludo, nunca é a mesma coisa que um europeu do norte, clarinho e com aquela liquidez de aguarela com demasiada água.

A questão portuguesa relativamente ao racismo é muito semelhante aos outros países que já tiveram impérios. Portugal tem um sentimento histórico que é um misto de culpa em relação ao que por lá fez (e que nunca assumiu completamente, incluindo massacres dos quais ninguém fala mas que estão nos arquivos) e de benignidade que pensa ter de assumir no presente, como que para resgatar um passado de sangue (daí, os acordos especiais actuais com esses países que não sabemos bem a quem aproveitam, porque o povo, em si, não beneficia disso). Esta espécie de culpa e de resgate não se resolve porque Portugal nunca arrumou contas com o seu passado nem tem personalidade para isso. Por sua vez, as chamadas ex-colónias – termo horrível – também sofrem de sentimentos ambíguos. Se por um lado, não perdoam a Portugal, por outro não se querem desligar dele – daí terem assumido o português como sua língua oficial, por exemplo. É uma espécie de filho que odeia o pai, mas que anda atrás dele.

A França sofre exactamente do mesmo em relação aos descendentes das suas ex-colónias de Algéria e Marrocos que, desde que eu me conheço como ser pensante, vêm dando brado em Paris, onde muito justamente se queixam de serem considerados cidadãos de segunda. Porém, queimar carros na praça não resolve, amigos. Já Lisboa, mais branda, vinha vivendo num barril de pólvora que demorou para eclodir. A julgar pelas notícias, ele aí está.

Olhemos para a Alemanha. É um país que resolve o passado depressa, dá um pontapé nas suas ruínas e ainda sai a cantar vitória. Há 75 anos, a Alemanha ficou um caos destruído pelos Aliados. Depois, assumiu que se tinha portado para lá de miseravelmente e hoje em dia governa a U.E. de forma imparável. Ser judeu na Alemanha hoje é do bem, mas não há lugar a vitimizações eternas. Se levares a conversa muito longe, um jovem alemão diz-te logo que não é responsável pela guerra que já foi - ele é do hoje e não tem de ser admoestado pelo maluco nazi do avô dele que matou 6 milhões de forma ignóbil, ok? Frios de gelo, mas sabem resolver assuntos e viver no presente.

Já a Tugalândia não se recomenda. A etiqueta de país mais seguro da Europa já anda coladinha com cuspo. Sem dúvida que o é para quem tem dinheiro e/ou um Visto Gold, ficam mesmo protegidos. Aí, não há racismo e nem as forças da lei se magoam até porque figura Gold não anda de transportes, não roça a fímbria de nenhuma farda nem se aproxima de qualquer toga. Tanto se acolhe a loira Madonna como a negra Isabel dos Santos, independentemente dos problemas com a Justiça desta última (de difícil defesa… e cuja profundidade levanta dramas a Portugal). Não é a cor da pele que dirá se és respeitado ou não, protegido ou enxovalhado. É mesmo a tua conta bancária, avaliadora do teu status social.

Identidade racial é o real assunto em cima da mesa, pessoas? Se assim fosse, os defensores da deputada Joacine Moreira estavam tão preocupados com o racismo relativo à Doutora como com o racismo feito às comunidades do bairro da Jamaica. Vejo muita areia atirada para turvar a visão social. Na realidade, haja dinheiro e logo todo o racismo desaparece de imediato.

Thursday, January 23, 2020

Eleições Presidenciais em Taiwan 2020: Independência ou Nada!

No passado dia 11 de Janeiro, aconteceu em Taiwan R.O.C. a15ª eleição presidencial. Tsai Ying-wén foi re-eleita Presidente pelo Partido Democrático Progressista, arrecadando mais de 57% dos votos, o que se traduz em mais de 8 milhões de votos a seu favor. É a maior vitória de sempre de um partido político em Taiwan. O derrotado foi o KMT (Kuomintang ou Partido Nacionalista Chinês) cujo candidato era Han Kuo-yu, presidente da câmara da cidade de Kaohsiung, uma cidade do sudoeste da ilha, não tão grande como Taipei.
Apesar da imprensa internacional ter classificado a vitória de Tsai Ying-wén como “estrondosa”, a Presidente mostrou-se modesta nas suas declarações, afirmando em resposta que se tratava de “uma vitória convincente, mas não esmagadora”. É preciso entender que os valores de modéstia são diferentes no Oriente, onde a humildade é uma virtude num sentido muito particular, ou seja: demonstrar publicamente humildade é, efectivamente, um sinal de grande auto-estima. Por outras palavras, não é necessário proclamar grandeza para saber que a grandeza existe.
Não sei se esta vitória constituíu surpresa para o mundo em geral, mas posso dizer que, pelo menos, em Taipei não foi espanto que Tsai Ying-wén ganhasse. Certo é que, nas eleições locais de 2018 o seu partido sofreu um revés tão grande que ela se demitiu de figura principal do mesmo. Para tal, muito contribuíram imensos rumores veiculados sobre a própria que a levaram recentemente a relembrar numa entrevista que “Existem leis pesadas no sistema judicial taiwanês para quem espalha notícias sem fundamento ou não apresenta provas do que diz. Para quem inventa e para quem distribui.” Entendedores entenderão.
Quem é, afinal, a primeira mulher Presidente de Taiwan? Não é apenas o facto de ser mulher que a diferencia dos seus antecessores. Ying-wén é solteira, e não tem filhos, algo inédito para um Presidente taiwanês. Atrevo-me até a dizer que não será muito comum no resto do mundo, onde a fachada política inclui a apresentação da fotografia de uma família, que se pretende o mais tradicional possível. A Presidente tem um Ph.D. em Direito obtido em meados dos anos 80 na London School of Economics no Reino Unido, país onde já estudava. Regressada a Taiwan, foi professora universitária antes de se envolver na política, nos anos 2000. O seu percurso não é comum para alguém originária de uma família modesta, o 11ª rebento do seu pai e (creio) o 4ª da sua mãe – a biografia não é clara, mas é lícito que a sua mãe não era a primeira mulher do seu pai. Além disso, tem origens aborígenes, algo relativamente raro, e que decerto terá contribuído para a sua política de introdução de mais línguas oficiais em Taiwan: antes dela, apenas o mandarim vingava, ao passo que hoje, a par do Mandarim, são considerados o Taiwanês (é diferente, sim!), o Hakka (que é aborígene) e mais uma data de outras línguas aborígenes cujo nome nem decoro pois são realmente várias (Matsu, Bunun, Paiwan, etc).
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Foto: Palácio Presidencial em Taipei (Distrito de Zhongzheng)
Esta última informação sobre a sua política já nos demonstra que Ying-wén é profundamente amante da sua terra. Este foi o real motivo pelo qual foi re-eleita, razão à qual não é alheia a conjuntura internacional dos protestos e da tensão bomba-relógio na vizinha Hong-Kong – tudo isto temperado com o crescente agigantar da China perante o território de Taiwan nos últimos anos e, mais concretamente, ultimamente.
De facto, as revoluções pró-democráticas em Hong-Kong não nasceram o ano passado. Remeto aqui, como exemplo, para a Primavera Asiática, uma revolução de peso que, na essência, clamava democracia para Hong Kong, e que ficou conhecida como Revolução dos Guarda-Chuvas. Entretanto, o sabor dos acontecimentos que já duram há quase um ano em Hong Kong remetem para um falhanço crescente da política “um país, dois sistemas” que foi instaurada nesse território – e que é, como sabem, substancialmente diferente da situação taiwanesa. Sem entrar na História (que qualquer pessoa pode hoje em dia acessar na net), direi apenas que Taiwan não pretende autonomia: entende que é um país, e deseja esse reconhecimento internacional, enquanto que a China – que frequentemente apelida Taiwan de “província rebelde” – não abre mão da ilha.
Uma das grandes diferenças entre o partido de Tsai Ying-Wén e o KMT é, precisamente, esta: Ying-wén acredita na independência completa de Taiwan enquanto nação e o KMT acredita que Taiwan é uma área chinesa, embora a denomine “Área Livre”. O predecessor de Ying-wén na Presidência (que era do KMT) manteve, por isso, a situação de democracia em Taiwan através de negociações de aproximação à China, mas Ying-wén discorda desta política: é firme quanto a afirmar que os tempos mudaram e que o contexto estrutural agora é mais difícil e bem mais tenso. A ambiguidade de outra época “já não serve”.
Somos levados a concordar quando vemos a celebração da vitória de Ying-wén nas ruas, que vem acompanhada de bandeiras e de gritos de “Independência de Taiwan”, “Continua Taiwan”, para além de imensas bandeiras negras – tão diferentes da luminosa bandeira solar de Taiwan. Estas bandeiras negras eram de apoio a Hong Kong, e impressionam muito: “Libertem Hong Kong”, “Hong Kong, a revolução”, “Hong Kong é a luta desta época”, “Continua Hong Kong”. A população taiwanesa identifica-se na luta do outro lado do estreito em relação à China. Por outro lado, Hong Kong vê nesta vitória uma razão para continuar a lutar, pois se Taiwan consegue (até agora, pelo menos) uma situação de democracia, é legítimo admitirem que também Hong Kong a poderá conseguir.
Nenhum residente de Taiwan pode negar a ameaça da China. Nas palavras da Presidente, esta ameaça intensificou-se nos últimos três anos – pessoalmente, não poderei falar de anos anteriores a esses pois só há 3 anos mudei de armas e bagagens para Taiwan, mas verifico que se tem sentido um crescendo de realidade quanto à possibilidade de invasão chinesa: são os aviões militares a sobrevoar, os navios militares a rondar, os exercícios militares em terra. A este respeito, a Presidente tem dito que pretende o “respeito da China” e o “reconhecimento de que Taiwan é uma democracia de sucesso”.
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Foto: Bandeira de Taiwan
Nos últimos anos, Ying-wén teve alguns episódios internos que definiram o seu governo em Taiwan: maior transparência no sistema judiciário (envolvendo questões de dissidentes políticos, por exemplo… atenção, não é uma reforma “muda tudo”; algumas coisas no sistema judicial taiwanês fariam revirar os olhos ocidentais, como a pena de morte, por exemplo); questões de pensões para trabalhadores; reforma do trabalho (cada vez há menos feriados, e em Taiwan isso não é dizer pouco… trabalha-se dia sim, dia sim e depois mais outro dia!);  questão da energia (tentar acabar com a energia nuclear e entrar em modo verde); reforçar a defesa do país; melhoria de transportes (que são muito bons) e de infra-estruturas no geral.
Porém, internacionalmente, aquilo que saltou à vista, foram apenas duas coisas: a legalização do casamento para pessoas do mesmo sexo e a constante reafirmação de independência de Taiwan.
legalização de casamentos para pessoas do mesmo sexo ocorreu em Maio de 2019 e não se tratou de coisa pouca, visto queTaiwan foi (e ainda é) o único local em toda a Ásia onde uma tal situação é legal. Não foi um processo simples – demorou dois anos em Tribunal (em Taiwan, um tempo aceitável para um processo de grande complexidade). Tratou-se de algo que dividiu muitíssimo a população e que gerou fervorosas, porém pacíficas, manifestações de ambos os quadrantes. Considerações à parte, o grande suporte público da Presidente à causa era notório. Mesmo nos media, Ying-wén assumia-se abertamente a favor do “amor sem distinção”. Para os apoiantes desta causa, este poderá ser o grande legado da Presidente; porém, ela considera que foi, é e será a pró-independência a sua imagem de marca.
Ying-wén sabe que Taiwan não possui muitos (ou quase nenhuns!) aliados diplomáticos. Os restantes países, incluindo Portugal, são aliados da China e logo, por oposição, não são aliados de Taiwan. É uma história onde não há possibilidade de ser amigo dos dois, pois a tanto não chega a diplomacia nesta fase histórica. De resto, a própria Presidente admitiu – em entrevista à BBC, dois dias após a sua re-eleição- que “não podia prometer ao povo de Taiwan conseguir mais aliados, já que a China detinha os restantes e as coisas são como são”. Nesta mesma entrevista, esquivou-se habilmente a responder à sua opinião sobre a posição dos E.U.A. “no caso de vir a eclodir uma guerra”. Os E.U.A. mantem relações abertas e de suporte com Taiwan mas ninguém sabe – à excepção dos gabinetes presidenciais de ambos ao países, claro – quais os verdadeiros acordos que detêm. O segredo é a alma deste negócio e a Presidente não confirma nem desmente. Preferiu dizer que a sua mensagem era “de paz e de estabilidade”. Embora “não excluo a guerra. Se formos chamados a tal, defender-nos-emos. Mas não somos o que provoca o outro lado [entenda-se: a China]. As nossas respostas são sempre brandas.”
Mas para a China, a voz baixa e indiscutivelmente calma de Ying-wén é uma provocação. As reacções à sua vitória não se fizeram esperar. Mao Xiaoguang, porta voz de Beijing para os assuntos relativos a Taiwan, disse no próprio dia 11 “Resolutamente, salvaguardamos a soberaneidade nacional e a integridade territorial e não aceitamos movimentos separatistas nem tentativas de independência de Taiwan”. Esta mensagem foi reforçada no dia seguinte, com Geng Shuang, porta voz dos Negócios Estrangeiros chineses, que afirmou sobre as eleições: “Não interessa o que aconteça em Taiwan. Só há uma China no mundo e Taiwan é parte da China. Nada mudará.”
Curiosamente, o medo da China muito contribuíu para a vitória de Ying-wén em Taiwan. Não sei se medo será a melhor palavra, visto que a sublevação em relação à China é uma realidade. O taiwanês não é frontal (no sentido ocidentalizado do termo, pois que prefere recusar pelo silêncio do que pela recusa bruta) mas é severamente obstinado.
No seu discurso de vitória, Ying-wén foi conciliadora, a favor do país, nos tempos que correm: “Peço aos meus apoiantes para não provocarem os opositores [o KMT]. O tempo é de nos unir-nos para enfrentar desafios e apoiar o nosso país” Isto significa pouco para um europeu, mas muito para quem ouve a palavra “país”, sabendo que apenas 15 nações no mundo, a maioria um conjunto de ilhas com pouco ou nenhum peso nas Nações Unidas, os consideram como país. Mas Ying-wén, sendo diplomata e apelante à “paz, e diálogo com a China”, também não hesitou na firmeza, dizendo que “Taiwan tem um governo eleito democraticamente e não cederá a ameaças nem intimidação. Espero que Beijing o entenda.”
Na sua exclusiva entrevista a 14 de Janeiro para a BBC (o único media que parece oferecer notícias não parcelares e que anda em cima do acontecimento), a recém-eleita Presidente respondeu, na essência, que o povo de Taiwan não queria ser ameaçado todo o tempo e que esta era a sua mensagem mais clara.
yesFoto: Multidão, celebrando a vitória de Tsai Ying-wén
 Quando a questionaram sobre os seus críticos, que a dizem provocadora e instigadora, ela respondeu que tem sido “razoável nos últimos 3 anos, mantendo a minha posição, firme e calma. Beijing tem de se habituar à ideia que temos uma identidade própria, e que essa realidade é inegável. Aliás, as novas gerações não conhecem nem aceitam outra coisa, algo em que Beijing deve pensar com tranquilidade em vez de nos ameaçar.” Eis um ponto importante: o jovem taiwanês não reconhece o domínio da longínqua e dominadora China, que na verdade vê como uma série de tormentos apenas, e não deseja que lhe roubem a sua vivência taiwanesa por excelência. Que futuro esperam conseguir de uma juventude que teria de ser convencida a aceitar uma vida que rejeita completamente, por a considerar contrária aos seus princípios de liberdade e democracia?
A perguntas sobre a formalidade da independência taiwanesa, Ying-Wén respondeu com um leve sorriso: “Não necessitamos de uma declaração formal de independência, porque funcionalmente já somos independentes: temos eleições, temos leis, temos milícia.” Na verdade, é isso mesmo. Não é a vida vivida que conta? Ou será um papel para demonstrar ao mundo?
Finalmente, quando questionada sobre os riscos da sua posição, Ying-wén admitiu que existem, incluindo a sombra da guerra, que é real, mas que também terá consequências para a China – se é verdade que Taiwan é pequeno junto do gigante, certo é que o gigante também tem algo a perder. “Sim, temos riscos… mas a nossa situação também nos oferece oportunidades: até hoje, temos vivido bem. Encorajamos a China a aceitar a nossa realidade como independentes.”
Não sou especialista em política, mas da maneira que isto ia lá bem, para ninguém perder a face da honra (conceito asiático muito importante!), era se, suavemente, fossem deixando de falar no assunto. Afinal, já ninguém ignora hoje que a China é um gigante mundial incomparável tal como já ninguém ignora que Taiwan se emancipou e fez a sua vida com sucesso. Afinal, cada um deles alcançou muito do que pretendia. A picardia da China perante Taiwan é como se o elefante estivesse incomodado com a vida de um bicho mais pequeno, e demonstra ao mundo a sua total intolerância perante quem não segue as suas regras – um factor que não lhe fica bem em termos de relações, para dizer o mínimo. Entrar em guerra e colisão aberta será tão destruidor para a imagem da China como para a vivência de Taiwan. Assim, para quê incomodar tigres que estão sossegados a comer na sua rotina ou mexer com dragões que ostensivamente se passeiam no palco do mundo?

Thursday, January 16, 2020

Coisas do Passado


Muitas pessoas aproveitam o novo ano para fazerem projectos futuros. Eu aproveito os primeiros dias do ano para arrumar (com) coisas que pertencem ao passado. Se “a vida é o dia de hoje […], nuvem que foge, sombra que voa” então mais vale não carregar muita bagagem porque não se voa alto carregando muito peso. Cada ano faço uma limpeza: coisas que não usei, tralhas que acumulei sem préstimo, enfim, toda a materialidade que para mim já se revela peso morto. Faço o mesmo com ideias e planos que já estão fora de prazo, porque agarrar(-me) seria tempo perdido. Como tempo perdido é o que nesta vida não se recupera, há que ser realista o bastante para perceber quando algo “já foi”. Uma expressão do calão português actual formidável é o “já foste!” que os jovens usam, aplicando a expressão a pessoas para quem “já é tarde” ou “já não dá”. Mais vale termos a sapiência situacional e autognose necessária para percebermos que “já fomos” do que ser outro a informar-nos. Uma limpeza vem a calhar, até no/do nosso interior e relações com os demais. No filme “Frozen” dizem isto melhor: “Let it go!”

A sociedade também faz estas limpezas, e é assim que o mundo vai girando, queiram ou não os personagens envolvidos. O processo é natural e necessário para o crescimento civilizacional, mas pode parecer injusto a quem o vive. Explico: alguém que ainda ontem era famoso pode ou não lidar de forma saudável com a sua perda de popularidade. O “já foste” é mesmo irreversível, como tentar surfar uma onda que já se desfez.

Em pequena escala, todos nós conhecemos este dinamismo. Por exemplo, aqueles que eram adolescentes nos anos 90 recordam a onda grunge, mas têm de reconhecer que hoje em dia já ninguém a ouve, excepto os ex-adolescentes dos anos 90, colecionadores e críticos de post-rock e alguns traumatizados crónicos com pais dignos de fazer concorrência ao casal West. Só passaram vinte anos. Dependendo da qualidade, o impacto na vida pode esvair-se bem mais depressa, ou ser substituído por um similar -  o que foi o “Despacito” senão uma espécie de “Macarena” actualizada? Aliás, cada Verão há sempre uma melodia latino-americana que convida a reboliço e no Inverno um êxito romântico acompanhado de saxofone. Toda a gente esquece o “hit” anterior, já foi.

Nesta voragem temporal, nem me reporto aos Governos. Só ficam para a história os primeiros-ministros. O restante staff desaparece imediatamente no mesmo nevoeiro que em Portugal vem engolindo governantes desde Álcacer Quibir mal os governos caem. Se guardamos na memória algum elemento fazemo-lo pelas piores razões. Por exemplo, quantos se lembram qual era o Ministério de Miguel Relvas? Mas toda a gente se lembra que o dito “era licenciado por equivalências”!

A famosa denominação “Personalidade do Ano” é mais do mesmo quanto a isto. A Revista TIME instituiu a categoria para que o público pudesse votar na pessoa que (cito) “para o melhor ou para o pior tenha sido a mais influente este ano”. Os leitores votam, saindo dessa escolha um nome – o ano passado foi Donald Trump, este ano Greta Thunberg. Conclusão: dá para tudo. A análise deste resultado não quer dizer (contrariamente a iluminadas e profundas análises que tenho lido) que em 12 meses o mundo se tornou mais inteligente e visionário quando o ano passado era obtuso. Isso é que era doce. Apenas quer dizer que, o ano passado, um esmagador número de gente votou no Trump e este ano na Greta. Talvez até os mesmos leitores. Para o ano, votarão naquela figura que for mais falada nos media, tal e qual como têm feito até aqui.

Gente que pensa pela sua cabeça é que duvido que apareça com fartura. Isso não costuma ser muito bem visto… pelo menos durante o seu tempo de vida. Anos depois de terem vivido, podem até ser venerados. Afinal, nenhum génio foi muito popular na sua contemporaneidade.

Thursday, January 2, 2020

A Praceta


Foi um contacto simples, de uma entidade que não reconheci mas cuja mensagem abri por impulso. Recuei vários anos no tempo.
"Exma. …, moradora na Praceta tal"
Eu, mas noutra vida.
Respondi, esclarecendo que já há muito que não residia nesse local e que todas as questões do imóvel em causa já não me diziam respeito. Além disso, só abro esta caixa de email uma vez no ano, de tão antiga que é. Seguiu-se uma resposta cordial e rápida:
"Desculpe, mas é que temos aqui o seu contacto associado a essa moradia."
E com muita simpatia se despediu a senhora que precisava de desligar não sei que utilidades num apartamento onde um dia morei, nessa cidade que ainda hoje me engasga o coração se lhe respiro o ar. Não porque não goste dela. Gosto de tudo. Do sotaque das pessoas, que "falam pouco e pensam muito", da cor luminosa das casas, das "catedrais submersas que escondem outro segredo", dos novelos pequeninos, do cheiro a incensos e a outras árvores, do horizonte largo onde nada se vê mas tudo se adivinha.
Vi-me outra vez na Praceta, sentindo-me na época muito adulta, eu pela primeira vez docente (com a agravante dos alunos serem todos mais velhos do que eu), eu pela primeira vez cozinheira todos os dias e não só no nome, eu pela primeira vez com uma casa só minha quando antes passara a vida a dividi-la, eu pela primeira vez num local de duvidosas cores e oblíquas janelas, mas que interessava isso se tinha outras contrapartidas. Recordo que lá deixei um aquário (onde jamais coloquei peixes, porque me fazia tanta pena que não nadassem no mar!) e um armário onde nunca tive nada a não ser livros e cds, porque quase todas as roupas que tinha eram casacos, já que toda a vida morri de frio ("oh menina isso é falta de um colinho!" dizia a velhota da esquina a mim e às crianças da escola da Praceta, também cheias de frio e encasacadas - não sei se a velhota não teria razão...)
A Praceta, cheia de grafittis, com má fama por causa dos assaltos, e dos adolescentes dados a vícios de agulha, e dos imigrantes ilegais, e do multibanco sempre cheio de esquemas, com o vidro todo partido e ganchos na máquina. A Praceta com atalhos para o Jardim, um lugar magnífico, natural e cheiroso, mas onde não era boa ideia passar sozinha à noite, porque se transformava: os arbustos que, durante o dia, eram um palco luxuriante para a vida natural, à noite eram o esconderijo de mil e um negócios pouco recomendáveis.
A Praceta onde os músicos de muitas etnias iam buscar inspiração e de onde saíam em bandos para as discotecas, africanas e cubanas, as mulheres lindíssimas e risonhas, e eles verdadeiros heróis da salsa e da kizomba. A Praceta onde martelava teclas a minha vizinha pianista, todo o dia, Lizst e Rachmaninov, um dois três quatro, incessante, e chorava porque a música ainda “não estava bem”, comendo em seguida quantidades descomunais de chocolates com saudades de casa, chorando tanto como se a Europa de Leste fosse no planeta Marte.
A Praceta onde aparecia o rapaz que dizia que era investigador, mas que tinha uma pele de nómada e um olhar de deserto mais do que se fosse cigano; perdia uma imensidão de horas fingindo que estava a apanhar joaninhas, mas na verdade esperava apenas qualquer outra coisa que o vento lhe trouxesse, e que nunca soubemos o que era.
Que saudades, de repente.
Creio bem que foi nessa Praceta que deixei a meninice para trás e entrei na vida adulta em pleno. Se é que alguma vez se deixa o que nunca se teve.