No passado dia 11 de Janeiro, aconteceu em Taiwan R.O.C. a
15ª eleição presidencial. Tsai Ying-wén foi re-eleita Presidente pelo Partido Democrático Progressista, arrecadando mais de 57% dos votos, o que se traduz em mais de 8 milhões de votos a seu favor. É a maior vitória de sempre de um partido político em Taiwan. O derrotado foi o KMT (Kuomintang ou Partido Nacionalista Chinês) cujo candidato era Han Kuo-yu, presidente da câmara da cidade de Kaohsiung, uma cidade do sudoeste da ilha, não tão grande como Taipei.
Apesar da imprensa internacional ter classificado a vitória de Tsai Ying-wén como “estrondosa”, a Presidente mostrou-se modesta nas suas declarações, afirmando em resposta que se tratava de “uma vitória convincente, mas não esmagadora”. É preciso entender que os valores de modéstia são diferentes no Oriente, onde a humildade é uma virtude num sentido muito particular, ou seja: demonstrar publicamente humildade é, efectivamente, um sinal de grande auto-estima. Por outras palavras, não é necessário proclamar grandeza para saber que a grandeza existe.
Não sei se esta vitória constituíu surpresa para o mundo em geral, mas posso dizer que, pelo menos, em Taipei não foi espanto que Tsai Ying-wén ganhasse. Certo é que, nas
eleições locais de 2018 o seu partido sofreu um revés tão grande que ela se demitiu de figura principal do mesmo. Para tal, muito contribuíram imensos rumores veiculados sobre a própria que a levaram recentemente a relembrar numa entrevista que “Existem leis pesadas no sistema judicial taiwanês para quem espalha notícias sem fundamento ou não apresenta provas do que diz. Para quem inventa e para quem distribui.” Entendedores entenderão.
Quem é, afinal, a primeira mulher
Presidente de Taiwan? Não é apenas o facto de ser mulher que a diferencia dos seus antecessores. Ying-wén é solteira, e não tem filhos, algo inédito para um Presidente taiwanês. Atrevo-me até a dizer que não será muito comum no resto do mundo, onde a fachada política inclui a apresentação da fotografia de uma família, que se pretende o mais tradicional possível. A Presidente tem um Ph.D. em Direito obtido em meados dos anos 80 na London School of Economics no Reino Unido, país onde já estudava. Regressada a Taiwan, foi professora universitária antes de se envolver na política, nos anos 2000. O seu percurso não é comum para alguém originária de uma família modesta, o 11ª rebento do seu pai e (creio) o 4ª da sua mãe – a biografia não é clara, mas é lícito que a sua mãe não era a primeira mulher do seu pai. Além disso, tem origens aborígenes, algo relativamente raro, e que decerto terá contribuído para a sua política de introdução de mais línguas oficiais em Taiwan: antes dela, apenas o mandarim vingava, ao passo que hoje, a par do Mandarim, são considerados o Taiwanês (é diferente, sim!), o Hakka (que é aborígene) e mais uma data de outras línguas aborígenes cujo nome nem decoro pois são realmente várias (Matsu, Bunun, Paiwan, etc).
Foto: Palácio Presidencial em Taipei (Distrito de Zhongzheng)
De facto, as revoluções pró-democráticas em Hong-Kong não nasceram o ano passado. Remeto aqui, como exemplo, para a Primavera Asiática, uma revolução de peso que, na essência, clamava democracia para Hong Kong, e que ficou conhecida como
Revolução dos Guarda-Chuvas. Entretanto, o sabor dos acontecimentos que já duram há quase um ano em Hong Kong remetem para um falhanço crescente da política “um país, dois sistemas” que foi instaurada nesse território – e que é, como sabem, substancialmente diferente da situação taiwanesa. Sem entrar na História (que qualquer pessoa pode hoje em dia acessar na net), direi apenas que Taiwan não pretende autonomia:
entende que é um país, e deseja esse reconhecimento internacional, enquanto que a China – que frequentemente apelida Taiwan de “província rebelde” – não abre mão da ilha.
Uma das
grandes diferenças entre o partido de Tsai Ying-Wén e o KMT é, precisamente, esta: Ying-wén acredita na independência completa de Taiwan enquanto nação e o KMT acredita que Taiwan é uma área chinesa, embora a denomine “Área Livre”. O
predecessor de Ying-wén na Presidência (que era do KMT) manteve, por isso, a situação de democracia em Taiwan através de negociações de aproximação à China, mas Ying-wén discorda desta política: é firme quanto a afirmar que os tempos mudaram e que o contexto estrutural agora é mais difícil e bem mais tenso. A ambiguidade de outra época “já não serve”.
Somos levados a concordar quando vemos a
celebração da vitória de Ying-wén nas ruas, que vem acompanhada de bandeiras e de gritos de “Independência de Taiwan”, “Continua Taiwan”, para além de imensas bandeiras negras – tão diferentes da luminosa bandeira solar de Taiwan. Estas bandeiras negras eram de apoio a Hong Kong, e impressionam muito: “Libertem Hong Kong”, “Hong Kong, a revolução”, “Hong Kong é a luta desta época”, “Continua Hong Kong”. A população taiwanesa identifica-se na luta do outro lado do estreito em relação à China. Por outro lado, Hong Kong vê nesta vitória uma razão para continuar a lutar, pois se Taiwan consegue (até agora, pelo menos) uma situação de democracia, é legítimo admitirem que também Hong Kong a poderá conseguir.
Nenhum residente de Taiwan pode negar a
ameaça da China. Nas palavras da Presidente, esta ameaça intensificou-se nos últimos três anos – pessoalmente, não poderei falar de anos anteriores a esses pois só há 3 anos mudei de armas e bagagens para Taiwan, mas verifico que se tem sentido um crescendo de realidade quanto à possibilidade de invasão chinesa: são os aviões militares a sobrevoar, os navios militares a rondar, os exercícios militares em terra. A este respeito, a Presidente tem dito que pretende o “respeito da China” e o “reconhecimento de que Taiwan é uma democracia de sucesso”.
Foto: Bandeira de Taiwan
Nos últimos anos, Ying-wén teve alguns episódios internos que definiram o seu governo em Taiwan: maior transparência no sistema judiciário (envolvendo questões de dissidentes políticos, por exemplo… atenção, não é uma reforma “muda tudo”; algumas coisas no sistema judicial taiwanês fariam revirar os olhos ocidentais, como a pena de morte, por exemplo); questões de pensões para trabalhadores; reforma do trabalho (cada vez há menos feriados, e em Taiwan isso não é dizer pouco… trabalha-se dia sim, dia sim e depois mais outro dia!); questão da energia (tentar acabar com a energia nuclear e entrar em modo verde); reforçar a defesa do país; melhoria de transportes (que são muito bons) e de infra-estruturas no geral.
Porém, internacionalmente, aquilo que saltou à vista, foram apenas duas coisas: a legalização do casamento para pessoas do mesmo sexo e a constante reafirmação de independência de Taiwan.
A
legalização de casamentos para pessoas do mesmo sexo ocorreu em Maio de 2019 e não se tratou de coisa pouca, visto queTaiwan foi (e ainda é) o único local em toda a Ásia onde uma tal situação é legal. Não foi um processo simples – demorou dois anos em Tribunal (em Taiwan, um tempo aceitável para um processo de grande complexidade). Tratou-se de algo que dividiu muitíssimo a população e que gerou fervorosas, porém pacíficas, manifestações de ambos os quadrantes. Considerações à parte, o grande suporte público da Presidente à causa era notório. Mesmo nos media, Ying-wén assumia-se abertamente a favor do “amor sem distinção”. Para os apoiantes desta causa, este poderá ser o grande legado da Presidente; porém, ela considera que foi, é e será a pró-independência a sua imagem de marca.
Ying-wén sabe que Taiwan não possui muitos (ou quase nenhuns!) aliados diplomáticos. Os restantes países, incluindo Portugal, são aliados da China e logo, por oposição, não são aliados de Taiwan. É uma história onde não há possibilidade de ser amigo dos dois, pois a tanto não chega a diplomacia nesta fase histórica. De resto, a própria Presidente admitiu – em entrevista à BBC, dois dias após a sua re-eleição- que “não podia prometer ao povo de Taiwan conseguir mais aliados, já que a China detinha os restantes e as coisas são como são”. Nesta mesma entrevista, esquivou-se habilmente a responder à sua opinião sobre a posição dos E.U.A. “no caso de vir a eclodir uma guerra”. Os E.U.A. mantem relações abertas e de suporte com Taiwan mas ninguém sabe – à excepção dos gabinetes presidenciais de ambos ao países, claro – quais os verdadeiros acordos que detêm. O segredo é a alma deste negócio e a Presidente não confirma nem desmente. Preferiu dizer que a sua mensagem era “de paz e de estabilidade”. Embora “não excluo a guerra. Se formos chamados a tal, defender-nos-emos. Mas não somos o que provoca o outro lado [entenda-se: a China]. As nossas respostas são sempre brandas.”
Mas para a China, a voz baixa e indiscutivelmente calma de Ying-wén é uma provocação. As
reacções à sua vitória não se fizeram esperar. Mao Xiaoguang, porta voz de Beijing para os assuntos relativos a Taiwan, disse no próprio dia 11 “Resolutamente, salvaguardamos a soberaneidade nacional e a integridade territorial e não aceitamos movimentos separatistas nem tentativas de independência de Taiwan”. Esta mensagem foi reforçada no dia seguinte, com Geng Shuang, porta voz dos Negócios Estrangeiros chineses, que afirmou sobre as eleições: “Não interessa o que aconteça em Taiwan. Só há uma China no mundo e Taiwan é parte da China. Nada mudará.”
Curiosamente, o medo da China muito contribuíu para a vitória de Ying-wén em Taiwan. Não sei se medo será a melhor palavra, visto que a sublevação em relação à China é uma realidade. O taiwanês não é frontal (no sentido ocidentalizado do termo, pois que prefere recusar pelo silêncio do que pela recusa bruta) mas é severamente obstinado.
No seu discurso de vitória, Ying-wén foi conciliadora, a favor do país, nos tempos que correm: “Peço aos meus apoiantes para não provocarem os opositores [o KMT]. O tempo é de nos unir-nos para enfrentar desafios e apoiar o nosso país” Isto significa pouco para um europeu, mas muito para quem ouve a palavra “país”, sabendo que apenas 15 nações no mundo, a maioria um conjunto de ilhas com pouco ou nenhum peso nas Nações Unidas, os consideram como país. Mas Ying-wén, sendo diplomata e apelante à “paz, e diálogo com a China”, também não hesitou na firmeza, dizendo que “Taiwan tem um governo eleito democraticamente e não cederá a ameaças nem intimidação. Espero que Beijing o entenda.”
Na sua exclusiva entrevista a 14 de Janeiro para a BBC (o único media que parece oferecer notícias não parcelares e que anda em cima do acontecimento), a recém-eleita Presidente respondeu, na essência, que o povo de Taiwan não queria ser ameaçado todo o tempo e que esta era a sua mensagem mais clara.
Foto: Multidão, celebrando a vitória de Tsai Ying-wén
Quando a questionaram sobre os seus críticos, que a dizem provocadora e instigadora, ela respondeu que tem sido “razoável nos últimos 3 anos, mantendo a minha posição, firme e calma. Beijing tem de se habituar à ideia que temos uma identidade própria, e que essa realidade é inegável. Aliás, as novas gerações não conhecem nem aceitam outra coisa, algo em que Beijing deve pensar com tranquilidade em vez de nos ameaçar.” Eis um ponto importante: o jovem taiwanês não reconhece o domínio da longínqua e dominadora China, que na verdade vê como uma série de tormentos apenas, e não deseja que lhe roubem a sua vivência taiwanesa por excelência. Que futuro esperam conseguir de uma juventude que teria de ser convencida a aceitar uma vida que rejeita completamente, por a considerar contrária aos seus princípios de liberdade e democracia?
A perguntas sobre a formalidade da independência taiwanesa, Ying-Wén respondeu com um leve sorriso: “Não necessitamos de uma declaração formal de independência, porque funcionalmente já somos independentes: temos eleições, temos leis, temos milícia.” Na verdade, é isso mesmo. Não é a vida vivida que conta? Ou será um papel para demonstrar ao mundo?
Finalmente, quando questionada sobre os riscos da sua posição, Ying-wén admitiu que existem, incluindo a sombra da guerra, que é real, mas que também terá consequências para a China – se é verdade que Taiwan é pequeno junto do gigante, certo é que o gigante também tem algo a perder. “Sim, temos riscos… mas a nossa situação também nos oferece oportunidades: até hoje, temos vivido bem. Encorajamos a China a aceitar a nossa realidade como independentes.”
Não sou especialista em política, mas da maneira que isto ia lá bem, para ninguém perder a face da honra (conceito asiático muito importante!), era se, suavemente, fossem deixando de falar no assunto. Afinal, já ninguém ignora hoje que a China é um gigante mundial incomparável tal como já ninguém ignora que Taiwan se emancipou e fez a sua vida com sucesso. Afinal, cada um deles alcançou muito do que pretendia. A picardia da China perante Taiwan é como se o elefante estivesse incomodado com a vida de um bicho mais pequeno, e demonstra ao mundo a sua total intolerância perante quem não segue as suas regras – um factor que não lhe fica bem em termos de relações, para dizer o mínimo. Entrar em guerra e colisão aberta será tão destruidor para a imagem da China como para a vivência de Taiwan. Assim, para quê incomodar tigres que estão sossegados a comer na sua rotina ou mexer com dragões que ostensivamente se passeiam no palco do mundo?