... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, January 2, 2020

A Praceta


Foi um contacto simples, de uma entidade que não reconheci mas cuja mensagem abri por impulso. Recuei vários anos no tempo.
"Exma. …, moradora na Praceta tal"
Eu, mas noutra vida.
Respondi, esclarecendo que já há muito que não residia nesse local e que todas as questões do imóvel em causa já não me diziam respeito. Além disso, só abro esta caixa de email uma vez no ano, de tão antiga que é. Seguiu-se uma resposta cordial e rápida:
"Desculpe, mas é que temos aqui o seu contacto associado a essa moradia."
E com muita simpatia se despediu a senhora que precisava de desligar não sei que utilidades num apartamento onde um dia morei, nessa cidade que ainda hoje me engasga o coração se lhe respiro o ar. Não porque não goste dela. Gosto de tudo. Do sotaque das pessoas, que "falam pouco e pensam muito", da cor luminosa das casas, das "catedrais submersas que escondem outro segredo", dos novelos pequeninos, do cheiro a incensos e a outras árvores, do horizonte largo onde nada se vê mas tudo se adivinha.
Vi-me outra vez na Praceta, sentindo-me na época muito adulta, eu pela primeira vez docente (com a agravante dos alunos serem todos mais velhos do que eu), eu pela primeira vez cozinheira todos os dias e não só no nome, eu pela primeira vez com uma casa só minha quando antes passara a vida a dividi-la, eu pela primeira vez num local de duvidosas cores e oblíquas janelas, mas que interessava isso se tinha outras contrapartidas. Recordo que lá deixei um aquário (onde jamais coloquei peixes, porque me fazia tanta pena que não nadassem no mar!) e um armário onde nunca tive nada a não ser livros e cds, porque quase todas as roupas que tinha eram casacos, já que toda a vida morri de frio ("oh menina isso é falta de um colinho!" dizia a velhota da esquina a mim e às crianças da escola da Praceta, também cheias de frio e encasacadas - não sei se a velhota não teria razão...)
A Praceta, cheia de grafittis, com má fama por causa dos assaltos, e dos adolescentes dados a vícios de agulha, e dos imigrantes ilegais, e do multibanco sempre cheio de esquemas, com o vidro todo partido e ganchos na máquina. A Praceta com atalhos para o Jardim, um lugar magnífico, natural e cheiroso, mas onde não era boa ideia passar sozinha à noite, porque se transformava: os arbustos que, durante o dia, eram um palco luxuriante para a vida natural, à noite eram o esconderijo de mil e um negócios pouco recomendáveis.
A Praceta onde os músicos de muitas etnias iam buscar inspiração e de onde saíam em bandos para as discotecas, africanas e cubanas, as mulheres lindíssimas e risonhas, e eles verdadeiros heróis da salsa e da kizomba. A Praceta onde martelava teclas a minha vizinha pianista, todo o dia, Lizst e Rachmaninov, um dois três quatro, incessante, e chorava porque a música ainda “não estava bem”, comendo em seguida quantidades descomunais de chocolates com saudades de casa, chorando tanto como se a Europa de Leste fosse no planeta Marte.
A Praceta onde aparecia o rapaz que dizia que era investigador, mas que tinha uma pele de nómada e um olhar de deserto mais do que se fosse cigano; perdia uma imensidão de horas fingindo que estava a apanhar joaninhas, mas na verdade esperava apenas qualquer outra coisa que o vento lhe trouxesse, e que nunca soubemos o que era.
Que saudades, de repente.
Creio bem que foi nessa Praceta que deixei a meninice para trás e entrei na vida adulta em pleno. Se é que alguma vez se deixa o que nunca se teve.