Foi um
contacto simples, de uma entidade que não reconheci mas cuja mensagem abri por
impulso. Recuei vários anos no tempo.
"Exma. …,
moradora na Praceta tal"
Eu, mas
noutra vida.
Respondi,
esclarecendo que já há muito que não residia nesse local e que todas as
questões do imóvel em causa já não me diziam respeito. Além disso, só abro esta
caixa de email uma vez no ano, de tão antiga que é. Seguiu-se uma resposta
cordial e rápida:
"Desculpe,
mas é que temos aqui o seu contacto associado a essa moradia."
E com muita
simpatia se despediu a senhora que precisava de desligar não sei que utilidades
num apartamento onde um dia morei, nessa cidade que ainda hoje me engasga o
coração se lhe respiro o ar. Não porque não goste dela. Gosto de tudo. Do
sotaque das pessoas, que "falam pouco e pensam muito", da cor luminosa
das casas, das "catedrais submersas que escondem outro segredo", dos
novelos pequeninos, do cheiro a incensos e a outras árvores, do horizonte largo
onde nada se vê mas tudo se adivinha.
Vi-me outra
vez na Praceta, sentindo-me na época muito adulta, eu pela primeira vez docente
(com a agravante dos alunos serem todos mais velhos do que eu), eu pela
primeira vez cozinheira todos os dias e não só no nome, eu pela primeira vez com
uma casa só minha quando antes passara a vida a dividi-la, eu pela primeira vez
num local de duvidosas cores e oblíquas janelas, mas que interessava isso se
tinha outras contrapartidas. Recordo que lá deixei um aquário (onde jamais
coloquei peixes, porque me fazia tanta pena que não nadassem no mar!) e um
armário onde nunca tive nada a não ser livros e cds, porque quase todas as
roupas que tinha eram casacos, já que toda a vida morri de frio ("oh
menina isso é falta de um colinho!" dizia a velhota da esquina a mim e às
crianças da escola da Praceta, também cheias de frio e encasacadas - não sei se
a velhota não teria razão...)
A Praceta, cheia
de grafittis, com má fama por causa dos assaltos, e dos adolescentes dados a
vícios de agulha, e dos imigrantes ilegais, e do multibanco sempre cheio de
esquemas, com o vidro todo partido e ganchos na máquina. A Praceta com atalhos
para o Jardim, um lugar magnífico, natural e cheiroso, mas onde não era boa
ideia passar sozinha à noite, porque se transformava: os arbustos que, durante
o dia, eram um palco luxuriante para a vida natural, à noite eram o esconderijo
de mil e um negócios pouco recomendáveis.
A Praceta
onde os músicos de muitas etnias iam buscar inspiração e de onde saíam em
bandos para as discotecas, africanas e cubanas, as mulheres lindíssimas e
risonhas, e eles verdadeiros heróis da salsa e da kizomba. A Praceta onde
martelava teclas a minha vizinha pianista, todo o dia, Lizst e Rachmaninov, um
dois três quatro, incessante, e chorava porque a música ainda “não estava bem”,
comendo em seguida quantidades descomunais de chocolates com saudades de casa,
chorando tanto como se a Europa de Leste fosse no planeta Marte.
A Praceta
onde aparecia o rapaz que dizia que era investigador, mas que tinha uma pele de
nómada e um olhar de deserto mais do que se fosse cigano; perdia uma imensidão
de horas fingindo que estava a apanhar joaninhas, mas na verdade esperava apenas
qualquer outra coisa que o vento lhe trouxesse, e que nunca soubemos o que era.
Que saudades,
de repente.
Creio bem que
foi nessa Praceta que deixei a meninice para trás e entrei na vida adulta em
pleno. Se é que alguma vez se deixa o que nunca se teve.