Tenho grandes reticências em relação aos números desta epidemia, por comparação a outras epidemias. O que é inegável é que uma das consequências deste vírus é a restrição de contacto entre as pessoas por todas as formas: não veja X, não toque em X, não se desloque até X, não receba X em sua casa, veja os seus parentes através de um vidro, toque nos seus amigos com luvas. Isole-se dos outros para evitar o “bicho” invisível. Um vírus que, supostamente, terá escapado de um laboratório e assim infectado o mundo inteiro, mas que nós acreditamos que as nossas máscaras vão manter à distância. Ou bem que a primeira premissa não é verdade ou bem que a segunda não é real; porque as duas juntas são absurdas.
O problema do isolamento é só este: a solidão (também) mata. Não precisa de
outra co-causa para matar. Por si só, o isolamento e a solidão que daí advém
são fatais. Há muito que a ciência o sabe.
A psico-biologia vem demonstrando desde os anos 50 do século passado que a
solidão, muitas vezes apelidada “isolamento emocional”, em pouco tempo causa
desregulamentos hormonais, desorganização molecular, e é causadora de doenças
várias entre as quais Alzheimer, obesidade, diabetes, problemas de tensão e
cardíacos, doenças neurovegetativas, já não falando de tumores (as metástases
progridem a um ritmo muito mais acelerado nas pessoas sofredoras e sozinhas, o
que não é segredo para ninguém). Depois, existe ainda uma vastidão de problemas
psicológicos relativos a mudanças de comportamento, depressão, descontrolo de
emoções, tendências (auto) agressivas, e todo um extremo que daí pode advir.
As pessoas podem sofrer de tudo isto quando acompanhadas? Com certeza. Mas muitas
pessoas acompanhadas também sofrem de solidão, e não é pouco. Essa é outra
conversa.
Nem sequer é necessário irmos desenterrar as experiências de Harry Harlow
com macacos recém-nascidos para saber que a ausência de calor corporal
carinhoso provoca danos irreparáveis. Nesses cruéis testes, Harlow colocou os
bebés rhesus em isolamento tendo por companhia mães feitas de fio de arame que
os alimentavam artificialmente. As necessidades materiais eram inteiramente
providas mas o afecto, o aconchego, o calor, não. Não só estes bebés eram
profundamente apáticos e tristonhos como se tornaram adultos desconfiados e
socialmente incompetentes. Note-se que estas experiências datam dos anos 60 e
que, entretanto, a tecnologia já as apurou – vejam as experiências de Suomi
sobre a solidão e o isolamento que mostram que estas condições presentes na
vida de um mamífero causam transformações imunitárias graves e até perturbações
genéticas. Suomi apontou exemplos relativos à degeneração da matéria cinzenta
do cérebro e da ligação entre a amígdala e o córtex pré-frontal. Em última
análise, um isolado torna-se fatalmente doente (mesmo que antes fosse
saudável).
Nos anos mais recentes, há vários estudos que confirmam que os seres
humanos necessitam de outros seres humanos – e que a proximidade de um ser
querido, tanto emocional como física, é importante para estruturar o equilíbrio
e o bem estar. Por isto mesmo, Caccioppo e Hawkley da UCLA desenvolveram uma
Escala da Solidão e descobriram, muito antes da pandemia, que o isolamento
ceifava mais vidas do que qualquer outra coisa. Por isso mesmo se dedicaram a estudos
mostrando como evitar o isolamento social e ensinando às pessoas como se
conectar. Aliás, nem precisamos de estudos universitários pois basta olhar para
os vídeos, livros, podcasts de hoje em dia para saber que tudo gira à volta de
conexão, tranquilidade, união, vínculo.
Com tudo isto, não pretendo ser subversiva em relação às medidas oficiais tomadas
hoje em dia para nos isolar. Mas é preciso ajuizar pela nossa cabeça e
intuição, com lógica e sensibilidade, nestes tempos difíceis, o que realmente
mata mais. Afinal, a solidão também se torna uma pandemia de séria fatalidade. Vale
a pena pensar porque estamos a promover o isolamento e a obediência tão
radicalmente. Voltando à subversão, o “Letreiro” de Miguel Torga condensa tudo:
“Porque não sei mentir, não vos engano: nasci subversivo. A começar por mim,
meu principal motivo, de insatisfação. Diante de qualquer adoração – ajuízo.
Não me sei conformar. E saio, antes de entrar, de cada paraíso.”
É de partir o coração ver bebés nascidos no fim de 2019 que pensam que a
única realidade deste mundo são pessoas com máscara, gente que morreu
absolutamente só porque lhes foi negado o contacto de outro ser, e o esmagador
número de deprimidos e de suicidas que este vírus causou. De novo: um vírus tão
inteligente que contorna um laboratório mas tão frágil que sucumbe a um paninho
à volta da boca e do nariz. Como diz Harari, quem me dera reencarnar para ler
os livros de História daqui a cem anos, com a claridade que a distância traz.