... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, November 29, 2007

A Comunicação - Parte III - Entre Pais e Filhos

Quando esta relação começa, a geração mais velha está em vantagem porque a mais nova, pura e simplesmente, não sabe falar. Além disso, regra geral, são os pais que ensinam os filhos a falarem, após tentarem, sem qualquer sucesso, comunicarem com eles através de “gugu, nhánhá, pschtiii” e outras baboseiras, acompanhadas de gestos exagerados que nenhum ser que não seja pai de um bebé, palhaço ou domador de focas faz.


Depois de terem ensinado aos filhos a sua linguagem, os pais arrependem-se amargamente e haverá muitos momentos num breve futuro em que hão-de desejar tê-los mantido sem acesso à reinvidicação verbal. Como já antes salientei (ver “A Comunicação, Partes I e II, sff), a linguagem é uma fonte de mal entendidos. Tão só. Mas como não temos outra coisa  - já quase ninguém sabe código Morse e custa bastante fazer sinais de fumo num clima tão húmido – lá vamos falando...


De facto, em breve, as criancinhas que antes choravam para fazer entender que tinham dores de dentes, fome ou pura birra, agora querem explicar as suas razões. Convenhamos que, para a maior parte dos pais, as razões não interessam nada, desde que pare o berreiro. Ou não é verdade que cada vez há mais criancinhas mal-educadas batendo o pé na rua e rivalizando em competência sonora com as sirenes dos Bombeiros porque querem os chocolates e as Barbies e um telemóvel de brincar (Santo Deus!) ? É. Isto tudo numa saída normal de compras ao sábado de manhã. Nem imagino o que pedirão no Natal.


Estes insuportáveis espécimes que não raro nos pespegam pastilhas elásticas no cabelo mas que são, segundo o cliché, “o melhor do mundo” não têm culpa nenhuma de ser assim. A culpa é de outra espécie muito em voga que (não) toma conta deles, denominada “os pais que não querem ter chatices”. Estes pais fabulosos são muito amigalhaços dos filhos, que consideram crianças hiper-activas (outro conceito muito giro e que, hoje em dia, se aplica a quem se mexe um bocadinho mais do que seria desejável e mesmo até a quem se mexe saudavelmente, para aqueles pais hiper severos que têm as casas como se fossem museus, cheias de coisas inúteis e anti-criançada como porcelanas, pratas e jarros sem flores).


Na infância, há também uma fase de comunicação usualmente chamada “idade dos porquês” que irrita muito os progenitores. Este momento da vida deveria antes orgulhá-los pois nunca na existência os filhos voltarão a perguntar-lhes os porquês deste mundo, pela simples razão que não mais voltarão a acreditar que os pais são assim tão sábios.


Na verdade, ao passarem à adolescência, os filhos entram em cheio noutro momento, diametralmente oposto, no qual consideram que os pais, embora geralmente até sejam gajos porreiros, estão um bocado ultrapassados e, portanto, não vale a pena perguntar-lhes nada porque os infelizes cotas já não têm estaleca para tanto. Os próprios pais, nesta altura, vêem–se muitas vezes na situação de ter de pedir favores aos filhos, geralmente de ordem tecnológica: “Ó Rodrigo, será que podes explicar ao pai como é que funciona o blackberry que a empresa me deu?” Tirando estes momentos e os grunhidos monossilábicos com que os filhos respondem aos pais à pergunta “Está tudo bem?”, não há muito mais a dizer quanto à comunicação.


Já na vida adulta, há um desconcertante momento no qual os pais e os filhos estão, por assim dizer, activos e independentes. Como já não falavam há vários anos, não se lhes ocorre nada que possam dizer. É por isso que os avós e os netos são tão importantes nas festas de Natal e outras que juntam as famílias. Na falta de avós e ranchos de criancinhas que façam berreiro, convém ter uma televisão. E comida, claro, porque com a boca cheia as pessoas têm uma desculpa para não falar.


Segue-se, depois, a última fase, que depende do modo como as coisas se passaram na primeira. Quando os pais ficam velhotes e, logo, dependentes dos filhos (seja económica seja fisicamente por questões de mobilidade ou doença), não há filho que não se lembre da sua infância e um sentimentozinho muito humano de “olho por olho, dente por dente” renasce no mais terno e menos vingativo dos seres. Por alguma coisa, a Santa Casa da Misericórdia é a instituição mais rica de Portugal.


E assim termina este ciclo, no qual, como se viu, não é possível pôr grandes culpas na comunicação, dado que ela está cheia de fragilidades. A culpa (palavra feia!), não parece, porém, estar nestas coisas das ligações genéticas, porque, como diz Deborah Tannen, da Cornell University, “a razão pela qual as mães e as filhas não comunicam bem é porque ambas são mulheres.” Pronto. Melhor, só o Freud. 


Thursday, November 15, 2007

A Comunicação - Parte II - Entre os Povos


Outra coisa fenomenal sobre a comunicação são as diferentes línguas, claro. Sempre foi um tema fascinante para mim, não sei se por ser bilingue e depois ter aprendido outras línguas - o que me deu muito jeito, na vida pessoal e profissional; todavia, só me veio confirmar que ninguém se entende, até porque as línguas reflectem seguramente uma questão cultural e não raro também um ambiente.


Um exemplo prático quanto ao ambiente: o ano passado, vivi num país muito frio e foi a primeira vez que me vi envolvida em nevões e que tive de tirar a neve com uma pá da frente da porta para poder sair, muitas vezes diariamente. Antes disto, nunca tinha sequer tocado em neve. A primeira vez que me caíram uns flocozinhos em cima, fiquei numa excitação tremenda, e, muito prosaica e infantil como só um ser humano perante as sensações novas, comecei a dizer: “It’s snowing! It’s snowing!”. A minha colega de trabalho levantou a sobrancelha por cima do seu olho azul direito, dizendo-me “It’s not snow, Carla. It’s flurries.” Após uma semana, já eu tinha percebido a diferença entre a “verdadeira neve” e as “neves ligeiras” - impossível de traduzir melhor isto para português, porque não temos necessidade de mais do que uma palavra para o conceito de “neve” num país onde a mesma é rara e quando ela aparece não tem tantas variações que impliquem outras tantas palavras a condizer. Dizem-me que os inuits, que vivem no extremo norte da Terra, têm mais de cem palavras para definir os tipos de neve. Logo, língua equivale à nomeação do que me rodeia. Se algo não existe na minha realidade, nunca sentirei a necessidade de ter uma palavra para esse conceito.


Quanto à parte antropológico-cultural, idem aspas: mesmo se eu for uma barra em hebraico mas não tiver a sua vivência, sou muito capaz de não entender porque raio têm os hebreus determinadas questões religiosas e culturais, e logo nunca hei-de interiorizar realmente porque carga de água o verbo “yodea” significa igualmente e sem distinção, “amar” e “conhecer”.


O facto de falarmos diferentes línguas levanta, ainda, outra problemática: as expressões idiomáticas. Estas miseráveis são o quebra-cabeças de todos os tradutores e professores de línguas. É de uma beleza primitiva explicar a um estrangeiro frases como esta: “Bem, Maria, tens de fazer das tripas, coração!” Experimente-se dizer isto assim corridinho, como em certos filmes muito bem traduzidos por certas almas: “Well, Mary, you must make of your guts, your heart!” ; “Bon, Marie, tu doit faire de tes intestins, ton coeur!” E agora expliquem que esta expressão de transformar as entranhas num orgão sublime significa dar o máximo. Hã?! As tripas são o máximo?! Ninguém entende. Só um português. E talvez só um gajo do Norte.


Outro dos meus exemplos preferidos é o da distância. Vai um inglês a passar ao pé ali do mercado e pergunta se falta muito para chegar ao aeroporto. Todos sabemos como esse pessoal anda a pé que se mata. O português, solícito, diz-lhe “Hey, don’t go by foot, pá (o português diz sempre “pá”), the airport is in cork’s hooves”, que é como quem diz “em cascos de rolha”. O inglês, baralhado, procura logo “cascos de rolha” no mapa do Faial.


Temos também aquelas expressões lindas que envolvem as nacionalidades alheias. Viver muito bem, ou até com excesso de bens, é viver “à grande e à francesa”. Experimente-se explicar a um francês que «Ici, cher ami, on vivre à la grande et à la française». Com este tipo de frases, se criam conflitos diplomáticos extraordinários. Já para não falar da complicação de como seria, no momento actual da nossa conjuntura política, explicar-lhes a todos a frase: “nós cá não damos cavaco a ninguém”...


Claro que as outras línguas também têm frases feitas que nos dão a volta ao miolo. O espanhol, nisto, é fenomenal. Por exemplo: “Vamonos a tu casa cagando leches.” A primeira vez que ouvi esta expressão, fiquei um bocado atrapalhada, pensando como raio produziríamos tal milagre. Mas, afinal, “cagando leches” significa “rapidamente”, para minha tranquilidade.


Depois, há os falsos amigos linguísticos, aquelas palavras que, sendo iguaizinhas em ambas as línguas, têm, porém, um significado completamente diferente. Analisemos o caso de uma portuguesa que namore um italiano. Ele convida-a para jantar. É impossível a rapariga estar descansada: a “manteiga” portuguesa é “burro”em italiano; o “azeite” português é “olio” em italiano, e o nosso “vinagre é “aceto”, para confundir. Só isto torna impossível que se entendam. Já livres da refeição, não pensem que a digestão será livre de agrumos: “suave” em italiano diz-se “morbido” e “seda” diz-se “seta”. Duros golpes para uma rapariga apaixonada cujo conhecimento lexical da língua do outro não é brilhante. E “subir” diz-se “salire” o que pode terminar a noite duma forma inesperadíssima e ninguém sabe como é que aquilo acabou.


Concluindo com uma verdade de La Palisse: a Babel impede que as pessoas se entendam. Devemos deixar de falar e entendermo-nos só por linguagem gestual? Nem pensar. A linguagem gestual também varia de povo para povo. Experimentem pôr as mãos abertas e esticadas à vossa frente, estilo stop, ao falarem com um grego e arriscam-se a levar um murro.


E vamos lá a ser sinceros: a linguagem gestual portuguesa também deixa a desejar – quem é que alguma vez percebeu a lógica da célebre “hum, este arrozito está de trás da orelha” enquanto apertamos a dita? Pois eu também não.

Tuesday, October 30, 2007

A Comunicação - Parte I - Entre Ele e Ela


O grande problema deste mundo é o da comunicação. Quando me vêm com as teorias psicológicas new-wave, dizendo que a falta de comunicação é que a responsável pelas questões de trabalho, pelos mal-entendidos entre amigos e pelos divórcios, apetece-me logo dizer-lhes “Chiu! Calem-se lá! A linguagem é que é a fonte da desgraça!” Ou não é?. Vamos analisar a questão, com o mínimo de palavras possível para não chatear.


Neste mundo, praticamente toda a gente se queixa de ser um incompreendido. Homens que me lêem, todos vós sabeis que as mulheres nisto são mestres. Começando pelo princípio: quando um homem e uma mulher não estão de acordo, ela fala pelos cotovelos (e pelos joelhos, e todas as articulações e poros, enquanto o infeliz finge escutar, se bem que, na verdade, já tenha perdido completamente o fio à meada e ela vai discorrendo sobre o ano em que se conheceram ao invés do problema actual).


Quando a mulher repara, no meio da diarreia verbal, que ele está calado que nem um rato, dispara com “Não dizes nada?” ao que ele responde“O que é que eu posso dizer?”, muito justificadamente porque é impossível responder à metralhadora da boca feminina com a mesma eficácia e rapidez. É, aliás, também por isso, que não há muitas mulheres em lugares de chefia. Os homens têm medo delas como o diabo tem da cruz.


 A mulher, muito infeliz porque não encontra eco, sente-se frustradíssima e diz que ele nem sequer a escuta e que não a compreende. A verdade, porém, é que ele nem sabe porque é que ela fala tanto: “Mas porque é que vais agora buscar essas coisas?” Ela, necessária e justificadamente, quer compartilhar aquelas desgraças todas e acusa-o de não comunicar. Mas o pobre de Cristo, senhoras, não pode com tanto fluxo informativo duma vez só. Bolas, é muito problema a resolver ao mesmo tempo, Maria. Ele nem sabia que vocês tinham tantos assuntos pendentes. “E vamos resolver isso tudo agora? E se fôssemos antes jantar e não se falasse mais nisso?”


Portanto, recapitulemos. Quando o psicólogo new wave vos diz para comunicarem mais e fala no diálogo na vossa união / no vosso casamento e tal, e a partilha de todos os problemas e mais que sim, não vão nessa! O diálogo no casamento é aquele que a gente sabe. Se não conseguirem comunicação eficaz quando estão em silêncio (enfim, mais ou menos...), bem podem esquecer que se vão escutar enquanto desfilam exaustivamente a lista das acusações que têm um contra o outro desde 1980. Aliás, era um bocado sufocante estarem sempre com a história do desgraçadinho e do triste fado todos os dias ao chegar a casa e do molho que se entornou na carpete, não era? Era.


Para além desta problemática, há outra, igualmente interessante. Reparem: quando um milagre de atenção, concentração e esforço louváveis por parte do elemento do sexo masculino (obviamente, sempre em dias de semana e nunca quando o Benfica joga para as competições europeias) os faz realmente escutar tudo o que disse o elemento do sexo feminino, há depois um “rebound” – é como no boxe, portanto. Nesse segundo “round”, verifica-se que a mensagem proferida pelo emissor e a mensagem recebida pelo receptor, inexplicavelmente, não é a mesma, quero dizer, foi espantosamente alterada no espaço de canal que medeia entre os dois. Seguem-se as célebres frases de ricochete: “Não foi nada disso que eu disse!” e “Percebes sempre tudo mal!” ou, em versão dos casais que lêem romances do século XIX, “Deturpas as minhas palavras ao extremo, Miguel!” Podem substituir o “Miguel” por “Maria” – a verdade é que a mensagem dita por um nunca é a mensagem ouvida pelo outro, independentemente do sexo.


Quando a desgraça alcançou este nível, o que é que se pode fazer? Bem, há sempre aquela clássica hipótese que é a de ele sair de casa para desanuviar no café e a de ela fazer um grande berreiro, telefonando para a mãe e para a amiga. Piorou. Porque guardam estas reacções para depois as atirarem um ao outro da próxima vez: “E lembras-te daquele dia em que saíste porta fora... / em que contaste à tua mãe que...?”


Não sendo eu conselheira da revista Maria (ainda existe esta pérola?) nem sendo eu paga principescamente como os tipos das novas seitas, para dar conselhos de rodapé resta-me dizer que o que resulta em momentos de crise, quanto à minha humilde pessoa, é o humor. Trocando por miúdos: alguém parar com a briga, dizendo uma piada qualquer por mais tonta que seja. Tem é de dar vontade de rir. Como o riso é contagioso, a luta pára logo ali e da melhor forma.


Então, e “quem é que ganha?”, perguntam os espíritos mais aguerridos; “e como é que sei se ele/ela me compreende ou não, afinal?” perguntam os mais atormentados. .Bom, isso quando estamos todos a rir, interessa muito pouco, não é? Aliás, a vida é um bocado curta para estarmos com preocupações dessas.

Monday, October 22, 2007

A Carne Mal Passada e os Telhados

As pessoas têm muita dificuldade com isto da liberdade. Todos dizem ser algo a que aspiram, e bem se vê o quanto sofrem quando estão privados dela. Mas não é um conceito que se possa gerir com facilidade, quanto mais uma realidade livre de complexidades.
Mesmo livres, e vivendo em “democratia”,os seres humanos estão amarrados a toda a sorte de coisas. Amarrados inconscientemente - ao seu grupo social ou familiar, à sua terra, à nação. Os laços prendem-nos, sejam eles de sangue, telúricos, afectivos ou convencionais. Amarrados de livre vontade - ou talvez não! – a outros nós, quantas vezes pelos próprios indivíduos criados.
Amarrados ainda a coisas mais fúteis e vãs. Aquilo a que chamam sucesso e que corresponde a poder, a ser reconhecido na rua quando vão na sua cidadezinha, a ter mais notas (nada a ver com dó, ré, mi, já se vê...) do que o vizinho e mais objectos a ganhar pó lá em casa.
Os humanos, na verdade, gostam de estar sujeitos. Gostam desse comodismo de estar presos e, sobretudo, de receber umas ordenzinhas. Isso permite não gastar muito os neurónios, já que obedecer cegamente custa muito menos que agir pela própria cabeça e com alguma criatividade. Ui, criar, isso não! Dá muito trabalho. Que seca! O melhor é sentarmo-nos todos calmamente e dizer que sim a quem tenha tido alguma ideiazita qualquer, por mais tonta que ela seja. Isso sempre nos dá menos que fazer e mostra que somos obedientes. Bons trabalhadores, no fundo. Daqueles que passam o tempo a bocejar, a jogar dominó virtual e a falar ao telefone com a Maria Joana sobre o refluxo gástrico do bebé dela até às 17h30, “sharp”.


Há uma fantástica história sobre a liberdade escrita por Emile Zola, que se chama “O Paraíso dos Gatos”. Conta-nos a vida de um angorá, que vive principesca e vegetativamente em casa de uma senhora, com almofada de penas por cama e carne mal passada ao jantar. Mas tinha uma tal sede por experimentar a liberdade dos telhados que decidiu aventurar-se e ir, finalmente, viver. Passa por muitas peripécias e acaba por escolher voltar para casa, porque a vida não é um risco que ele tenha... como dizer? “legumes daqueles que se põem nas saladas” para enfrentar. Ele sabia que, ao voltar, seria espancado a chicote, mas isso não o desanimou: a vontade de uma existência cómoda e fácil foi maior que o medo da dor e da tristeza dessa prisão sempre igual. Diz o gato:”Gozei imensamente a voluptuosidade de estar no quente e de ser espancado. Enquanto ela me batia, eu pensava, deleitado, na carne que, depois, ela me ia dar.”


 Este pensamento que parece, à partida, tão masoquista e cru é a escolha fundamental de muitos seres humanos, que preferem não a verbalizar, por ser mais fácil ignorar aquilo de que não gostamos nas nossas rotas.


Não pretendo com isto criticar as escolhas de cada um. Até porque, entendamo-nos, juízes só os do tribunal e, mesmo assim, é sempre difícil engolir a ideia de que um ser humano possa julgar outro do ponto de vista ético, ainda que isso seja socialmente necessário para o bom funcionamento da máquina de grupo e tal e etcetera.
 Pretendo só ressalvar que a liberdade, que quase todos elegem como factor determinante para a felicidade, é também aquela de que quase todos abrem mão, consciente e alegremente, em favor de uma vid(inh)a mais cheia de coisas. De haveres. A verdade é que a liberdade não pressupõe pertença, antes a exclui, e as pessoas sentem necessidade de “ter”, seja uma casinha, um emprego estável, um afecto ou amigos por perto.


“Então, não há salvação?”, como dizia a minha avó, ou, por outras palavras, “não se podem conjugar a carne mal passada e os telhados?”, perguntaria o gato do Zola. A resposta é: eu não faço ideia (ao contrário dos juízes, que sabem sempre tudo). Mas a minha intuição é que sim, “é possível ser livre e ter algo”. Basta mudar um pouco a nossa rígida percepção das coisas, tanto do ter como da aventura.


Afinal, basta pensar que a liberdade consiste em viver exactamente da maneira que queremos. Já vejo as cabeças a levantarem-se e os cantos da boca a rirem de mansinho e a pensarem “Isso é que era doce! Olha como se a gente pudesse viver da maneira que quer... Eu bem gostava de ter um BMW / de fazer um curso de meditação na Birmânia / de conhecer a Giselle Bündchen.” e outras aspirações assim elevadas. Bom, viver é escolher. O difícil, realmente, é fazer a escolha dentro das circunstâncias que temos.No entanto, visto pelo prisma da simplicidade, torna-se descomplexo: basta escolher, em qualquer ocasião, o que nos torna mais felizes naquele momento. Até porque nada é para sempre.



Wednesday, September 19, 2007

As Pessoas que Mandam Nisto


Há algumas crónicas atrás, falei da minha saga com os mecânicos. Os espíritos mais  elevados perceberam a minha análise das pessoas que realmente mandam neste território. Sim, a ideia de que são os governantes que mandam é muito relativa. É por saber isso mesmo que a maior parte das pessoas não vai votar (vide nível de abstenção em quase todas as últimas eleições, sejam elas municipais, presidenciais ou o que forem). Quem realmente manda são aquelas pessoas que têm determinados poderes que nós, tristes seres que ficamos embasbacados a olhar para eles e a pedir “por favor não me arranja isto até ao meio-dia?”, nós não temos. Essas pessoas realmente poderosas estão inteiramente conscientes de que têm o resto do mundo na mão. Há um risozinho de triunfo na maneira como nos olham de lado, um esgar ligeiramente superior no modo como ajeitam os óculos e fungam antes de dizerem “por acaso, não vai ser possível”. Por acaso. Reparem no pormenor. Se tivessem acordado bem dispostos, talvez até tivessemos sorte.


Entre estas pessoas realmente poderosas da nossa sociedade contam-se os senhores das Finanças, as meninas das companhias aéreas (porque é que são quase sempre mulheres? é requisito preferencial?), os técnicos de informática, o pessoal das companhias de telemóveis, os polícias de trânsito e demais fauna policial, os porteiros das discotecas e os taxistas. Isto só para referir alguns. Há uma data de etcetera, mas não vamos agora meter-nos a fundo nisto, até chegar aos médicos e aos padres, por exemplo (ui, aí é que tinha mesmo piada!). Desiludam-se os advogados, porque já lá vai o tempo em que mandavam alguma coisa. Agora, na generalidade, falta-vos engenho.


Se julgam que estou a brincar, pensem na maior parte dos vossos dias. Imaginemos um dia normal: um tipo chega ao trabalho e os computadores não funcionam. O técnico de informática diz:”epá, não sei o que se passa!”. Seguindo o bom e velho esquema da tuguice, fica tudo a bezerrar até que ele resolva o assunto, porque, enfim, não há computadores (como é que se trabalhava há dez anos é um mistério para todos, incluindo para a Maria que não sabia trabalhar com computadores há dois anos!). O técnico decide que, uma vez que o pessoal está todo dependente dele, bem que pode ir tomar um café ou dois. Raras vezes se tem uma tal sensação de poder, caraças.


Entretanto, telefona o senhor da TMN (da Vodafone, se quiserem). Como telefonam sempre de um número que a gente não descodifica nem à lei da bala, acabamos por atender. Erro. Depois de um questionário sobre mil serviços que nunca utilizámos, “oh senhor, eu estou com pressa!”, ele quer vender-nos um pacote muito interessante a preço super para “si, cliente especial”. Mas eu agora não posso atender. Volto a telefonar ao atendimento de clientes no dia a seguir, quando tenho tempo, mas a treta da promoção de um telefone por metade do preço e mensagens grátis era só ontem. Pffff! Mas volte sempre, “até já” (dou um bombom a quem me explicar porque é que se despedem sempre com “até já”; eu não estou interessada em voltar a ouvi-los já).


Depois, vamos a correr tratar da nossa vidinha. Somos apanhados pela polícia porque íamos chocando de frente com a viatura policial. “A senhora estava distraída?”(Os polícias, amavelmente, perguntam sempre. Pode dar-se o caso de eu querer mesmo chocar contra o carro deles e desfazê-los, suicidando-me em grande estilo também). Explico toda a minha vida, o porquê de estar com pressa e da minha distracção. O polícia exclama“Ahhhhh!” compreensivamente. Chama o colega (andam sempre aos pares, como na TV) e eu explico tudo outra vez. São amáveis, gentis, cavalheiros. Levo com multa. Perdi 40 minutos. Detesto fardas.


Lá consigo chegar às Finanças. Depois de duas horas e meia de espera, contribuindo para que me rebentem as veias das pernas e algum aneurisma, a senhora, com uma boa disposição só comparável à de uma mosca ao ver o frasco de DumDum, diz-me que faltam os documentos X e Y. “Porque é que não me avisou quando estive cá ontem? É que assim já vou ter de pagar multa, porque o prazo é hoje!” A senhora diz que eu me devo ter esquecido. Sim, eu estou interessada em dar ao Estado mais 100 euros de minha livre e legítima vontade. Sim, sim, devemos dizer sempre que sim porque nunca se sabe quanto mais se podem irritar... e quem paga a frustração é a nossa carteira.


Depois, apanhamos um táxi a correr para ir para o aeroporto. O taxista cobra-nos mais não sei quanto pela bagagem, e mais não sei quanto porque é de tarde e mais não sei quanto porque temos um animal dentro de uma caixa. Vai a pisar ovos e eu com pressa. Relata-nos as agruras do Benfica, enquanto a rádio toca a Ruth Marlene em altos berros e a rádio táxi vai guinchando de vez em quando.”É um problema isto do Scolari”. Na verdade, o maior problema para mim, neste momento, é a Ruth Marlene.


Ruth Marlene devia ser o nome da menina da companhia aérea. Não era mas ficar-lhe-ia bem. Há um erro de sistema. Ok. Já consegue entrar no sistema. Fixe. Não consegue encontrar um passageiro chamado Cook. Interrogo-me se é a primeira vez que ela faz isto. Já encontrou. Não sabe fazer não sei o quê que me escapa. Chama a colega (também andam sempre aos pares, curiosamente, mas no caso presente, graças aos céus). Não sabe o que fazer com o gatinho. Explico-lhe (como se fosse minha função saber, mas enfim...) Lá consigo ter um talão de excesso para o bicho e um de embarque para mim – era giro se fosse ao contrário, não era?!


Já noutro local, decido ir espairecer deste dia. À porta da bendita da discoteca, o porteiro diz-me que não posso entrar porque estou de ténis. “Devia vir de salto alto?” Ele responde que não deixam entrar pessoas de ténis e ponto final. E não há volta a dar. Viro costas e cara alegre, que isto é só para moças com ar de quem trabalha na Côte d’Azur.


Gostaria de finalizar esta crónica, assegurando a todos que adoro a Humanidade. Mais ou menos como a Madre Teresa a adorava e o Dalai Lama a adora. Isto é: quanto mais se puder fazer por ela, melhor. E quanto mais longe se estiver dela, melhor ainda. 


Monday, September 3, 2007

Portuguese Do It Better


Há pouco tempo, li um artigo interessante numa revista de bordo. Era sobre sapatos. Não sou especial consumidora de coisa nenhuma, com a doce excepção de chocolates e gelados, mas li, apesar de sapatos não serem uma paixão minha, mas tão só um item necessário na sociedade em que vivo. Achei muito curioso e interessante saber que as marcas de sapatos Fly London, Aerosoles, Helsar e Swear são portuguesas. Portuguesas! Ena! Nunca imaginei.


Segundo os entrevistados, estas marcas facturam imenso, sobretudo extra-muros. A Fly London exporta 95% do que produz e a Aerosoles manda 4 milhões dos seus sapatinhos para o estrangeiro.
Não contentes com este sucesso, estão também nos pés de gente famosa. A Swear calça os REM, os Radiohead, a Cher e as Spice Girls (enfim, é discutível que aquelas botas tipo anos 70 de meter medo ao susto destas últimas pequenas sejam giras, mas enfim…); a Fly London calça os Prodigy e os Rolling Stones (todas as gerações em coro agora: WOW!!!); a Helsar é muito mais “sophisticated” e calça a mulher do Exmo. Tony Blair. 


Enfim, um português lê este artigo e fica todo inchado de orgulho. Sempre soubemos que o cabedal português era bom. Falo do cabedal no seu sentido literal, o que serve para fazer sapatos e malas, não estou aqui com duplos sentidos, entendamo-nos. Sempre ouvimos dizer que a indústria do calçado em Portugal ia de vento em popa, mas tanto assim a gente nem suspeitava. Ah, o orgulho nacional!


Agora, pergunto-vos: não notam nada de especial nestas marcas cheias de sucesso? Olhem com atenção. Pois é. Os nomes. Têm todas nomes que soam a nomes estrangeiros. Portuguesíssimas serão, mas escolheram nomes que de portugueses não têm nada.


Uma pessoa, esteja onde estiver neste mundo e seja de onde for, olha para um sapatinho Fly London ou Swear e pensa que está comprando um sapatinho inglês. Um tipo pega num Aerosoles e julga que está levando para casa uma bota espanhola. E serei eu a única a julgar que uma chinelita Helsar parece sueca?


A conclusão que retiro desta operação de marketing é a seguinte: um português para ter sucesso no estrangeiro deve, em primeiro lugar e sobretudo, não parecer português (embora nunca deixe de lado a sua fibra de cabedal lusitano interiormente). Pelo menos, no mundo dos sapatos.


Enfim, outros exemplos haverá que confirmem esta teoria, acabadinha de inventar agora mesmo. A cantora Nelly Furtado é um caso de sucesso incontornável internacionalmente. No Canadá, é a canadiana Nelly; em Portugal, é a filha dos imigrantes portugueses Nelly, e nos Açores é a Nelly com a costela da Ponta Garça.


Na verdade, a Nelly tem sucesso também (mas não só, admito…) porque sabe aproveitar as suas múltiplas facetas, conforme a ocasião e/ou circunstâncias.  Todos sabemos que o maior segredo do sucesso, neste mundo, é a capacidade de adaptação. Aqui, a Nelly dá cartas: até aos russos ela agrada, dizendo que foi chamada Nelly Kim como homenagem a uma ginasta russa! Isso sim, é que saber agradar às massas às quais se apresenta.
Além disso, Nelly fala inglês e português mas também fala espanhol fluentemente, o que não é de estranhar, uma vez que a comunidade falante do espanhol tem um grande peso na América do Norte (e os que não o falam gostam de ouvir cantar em espanhol e compram discos, que é o que interessa). A Nelly diz que até fala hindi, o que lhe empresta um ar muito exótico (em termos de imagem, não lhe faz falta, só acrescenta, porque é lindíssima e já o tem) e agrada a um público ainda mais vasto – Sim, sabem vocês quantas pessoas falam hindi? É a língua mais falada na Índia, a par do resquício colonialista Inglês, e  se há coisa que a Índia tem – ainda mais do que caril - é população.


Bom, concluo. Já explanei a minha teoria. Obrigada à revista Atlantis e ao cabedal português. Viva o sucesso da indústria do calçado, tipicamente lusa  como se vê, e viva o “folklore da Nelly. É que nem é “folclore” o nome do disco de que tanto nos orgulhámos, por causa das raízes lusas anunciadas. É mesmo folklore, para o público anglo-saxónico não se chocar.


O marketing é uma coisa fenomenal e nada está numa publicidade por acaso. Está ali porque irá voar mais longe assim. Like a bird.

Wednesday, August 29, 2007

Tudo Bem


Tenho uma amiga que detesta a expressão “Tudo bem?” porque ninguém espera para ouvir a resposta. Ela tem razão. Mas, na verdade, é muito simples: temos medo de a ouvir e fingimos que estamos com pressa (sabemos todos que raras pessoas têm pressa em Portugal, porque a classe trabalhadora é composta por pouca gente e, dentro desta, ainda há que ver os que realmente trabalham...).


Imagine-se o que era descobrir que andava toda a gente tristíssima. Nós, os empáticos, temos imensa dificuldade em lidar com as desgraças alheias porque as sentimos como verdadeiramente nossas, ao menos um bocadinho. Se até chorámos com as criancinhas que, supostamente, morreram no 11 de Setembro! Se temos tanta dificuldade em ver as misérias do Iraque no telejornal! O que não faríamos se soubéssemos que com a nossa amiga “não está”, efectivamente, “tudo bem”. A nossa reacção e subsequente ajuda a um ente querido são pressurosamente inimagináveis.


Claro que há sempre a hipótese de estar, em boa hora, “mesmo tudo muitíssimo bem”. É um grande erro, caríssimos, responder que estamos bem, com cara de gente feliz. Certamente nunca se deve intensificar com o advérbio “muito” a nossa felicidade pessoal. E não é porque fique bem a rugazinha de pensamento soturno a meio da testa, mas sim porque a felicidade levanta suspeita.


Se andamos com um ar muito feliz, logo a reacção geral é de incómodo. Pensam imediatamente "Porque será que aquele caramelo anda todo satisfeito? Que será que ele já sabe que eu ainda não sei? ... De certeza que já meteu a patinha na parte que me cabia a mim! Humpf!" As pessoas têm, bem no fundo de si, a ideia de que a nossa felicidade se ganhou à custa da felicidade de outro alguém. Não há volta a dar-lhe.


De modo que o melhor, para manter a paz de espírito alheia - e , logo, a nossa - é ser o mais low profile possível. E, por mais feliz que estejamos, manter sempre um ar mais ou menos alheado. Um ar "mais ou menos", em suma.


A triste realidade deste mundo é que a maior parte das pessoas aguenta muito melhor a miséria alheia – porque esta lhes permite compadecer-se, humanizar-se, serem, enfim, seres plenos de caridade – do que a felicidade dos outros. O nosso triunfo acaba por suscitar nos demais sorrisos amarelos, elogios que soam a falso. O drama e a tragédia são muito mais apelativos ao coração generoso dos seres do que a partilha da glória. Daí resulta que aqueles para quem” tudo está bem” se sentem culpados da sua felicidade , tão terrível aos olhos dos outros.


Claro que isto do estar bem é sempre momentâneo, porque tudo é efeméro no ciclo vivencial. As criaturas que respondem “tudo bem” e se sentem realmente assim, também não estão completamente satisfeitas com a vida, mas (...pst, cheguem-se agora todos aqui para ouvir o segredo...) estão-se nas tintas para aquilo que não têm neste momento. Como dizia o meu avô: “Se não há, não é preciso.” Este é que é o segredo.


Pensando assim, nem há lugar para a inveja neste mundo. A inveja nasce, realmente, de um sentimento íntimo de comparação. As pessoas comparam a sua vida com a de outro e porque não estão satisfeitas com a vida que levam e supõem que a do outro é mais interessante, cobiçam-na, embora não saibam nada da verdadeira vida que ele leva, na maior parte das vezes. É a divagação, a fabulização de pequenas historietas mentais que causa esse sentimento – até porque o que lhes interessa não é tanto a realidade mas o que lhes permite canalizar o veneno interior. No fundo, a inveja é uma espécie de esgoto, a fossa asséptica da alma de cada um.


Por outro lado, as pessoas adoram dissertar compungidamente sobre os problemas alheios, falar das grandes misérias que bateram à porta dos vizinhos e dos amigos,martirizar-se com culpas e vergonhas de há anos a que juntam outras tantas inventadas, e não esqueçamos aquelas que desfilam o rol das suas doenças e as comparam em praça pública com as doenças dos outros. Depois, junta-se tudo num grande saquinho e fala-se mal da Região e do País, e etc. Apetece perguntar a estas pessoas porque não fizeram uma operação plástica, não se divorciaram, não mudaram de emprego/ amigos/ casa e emigraram. Estão sempre a tempo de mudar de vida, enquanto estiverem vivos. E, já agora, porque é que imaginam que, sempre que estamos a rir, nos havemos de estar a rir deles. Para eles, nunca põem a hipótese. Com eles, de quê? Isso é que era doce.


Enfim, não tenham medo de responder ao “tudo bem?”. Riam-se do mesmo modo que os estrangeiros se riem para os locais, sem razão e sem má interpretação. Já é tempo de começarmos a rir uns para os outros, de assumirmos que estamos mesmo bem, que isto do fado português sofrido e penado, da mulher de lenço preto que espera na praia, já nem a minha avó o fazia. Tenham paciência, mas as pessoas têm mesmo o direito e o dever pessoal de serem felizes.


Saturday, August 4, 2007

Eu Gosto é do Verão

Parece que chegou o Verão. Quase não se dá por ele, especialmente em certos dias brumosos, feios, encapotados e em que mais apetece, ilha por ilha, emigrar para a Sardenha ou para a Córsega ou - caso o desejo de sol seja muito - para S. Tomé.


A maior parte das pessoas (que não eu, escusadamente acrescento, porque “a maior parte” nunca me inclui e é com um desgosto escolar que o digo...) está de férias ou a contar os dias que faltam para as mesmas. As férias são a vingança anual do povo. Depois, já mais apaziguado, e quase “cansado da pasmaceira que é estar sem fazer nada” e dos “dias em família, torrando ao sol”, pode voltar ao trabalho.  Por esta razão, não se compreende porque é que a Natureza, geralmente cooperante, se mostra, este ano, tão antipática, a pôr a língua de fora. Isto só a nós é que nos chateia, porque os turistas (os poucos que temos, que são todos velhos e do Norte e, portanto, dispostos a pensar que estão nas Caraíbas) andam sempre de belo calção, mostrando a alva perna. Até dá jeito que o sol não seja como o sol mediterrâneo, para não queimar a frágil pele idosa e passível de tonalidades encarnadas perigosas.


Férias sem sol de jeito são especialmente cruéis para as mulheres. Anda uma mulher a preparar-se afincadamente, depila daqui e dali, compra creme anti-celulítico, faz dieta, inscreve-se no ginásio, corre a avenida toda ao fim da tarde e até sobe a estrada até à Santa, maldiz os nove meses em que comeu, bebeu, fumou quanto quis – que é o mesmo que dizer, os nove meses em que viveu normalmente - , faz pedicure por causa da sandália, compra um bikini novo, porque o bikini é melhor que o fato-de-banho já que bronzeia o estômago mas é preciso que seja um bikini que estilize a figura e aperte os papos da anca e não deixe sair os papos da barriga, e ainda, se possível, levante e/ou encha o peito ou o rabiosque de quem o tem descaído (o tempo que se perde e as viagens que se fazem para achar estas duas peças!!!). Finalmente, lá acaba por ir à praia, franzindo o nariz porque não há muito sol e o efeito não é tão espectacular como se esperava porque, enfim, não há público suficiente!  Profundamente injusto, o mundo. O mundo é a ilha, claro está. Felizmente, logo se anima, se há amigas por perto. As amigas na praia servem, fundamentalmente, para que a mulher se certifique de que a sua Operação-Verão foi bem sucedida (“Ai, querida, estás tão gira! E muito mais magra! Esse bikini fica-te mesmo bem! Onde arranjaste? Eu procurei uma coisinha assim imenso tempo!” ; “Mas tu também estás espectacular! Que segredo é o teu? Gosto imenso do teu novo corte de cabelo! Estavas a precisar de mudar! Assim estás muito melhor!”), e, não menos importante, para cortar na casaca de todas as outras mulheres. Atenção que isto não é por mal, evidentemente. Tão somente o fazem porque essas criaturas – as outras – não sendo amigas, são gordas (ou, se forem como eu, esqueléticas e desengonçadas), certamente fizeram esforços desumanos para serem assim (ou será que são doentes? “Sim, porque eu já ouvi dizer...”), e vê-se logo que estão mesmo a tentar chamar a atenção com aquele andar e aqueles olhos e aquela saia horrivelmente curta. Blargh. Devia ser proibido.


O Verão sem sol também é duro para os homens. Não há a possibilidade daqueles raios brilhantes como relâmpagos a faiscar nos carros fenomenais que se compraram, que vão dos 0 aos 250 km em poucos segundos, para impressionar os amigos, para fazer inveja aos vizinhos e para dar status. São carros completamente inúteis num sítio circular, curvadinho e centrado como é uma ilha, mas isso não interessa nada, porque o carro não foi adquirido para andar. Um carro não é para andar, eh eh eh, que noção! Um carro é para mostrar ao pessoal. Além disso, sempre se ouviu dizer que as mulheres gostam de homens com carros assim possantes (quem inventou esta estupidez gostava eu de saber?).


De qualquer modo, com sol ou sem sol, sempre há a possibilidade de dar largas ao tuning: faróis de cores, autocolantes, verificação das molas dos estofos (porque nunca se sabe se, em dias de sorte, o carro vai ser mais útil parado do que a andar...) Sobretudo,  pôr a música em altíssimos decibéis para chamar a atenção das miúdas, enquanto se ajeitam os óculos de sol -comprados nas barracas das festas- com a ponta do dedo indicador, e se baixa o vidro da janela do carro, devagarinho. Bonito.
Outro espécime é o surfista de Verão. Surfista que é surfista é-o todo o ano, e com maior razão no Inverno, porque ondas ferozes e boas é com mau tempo que se apanham. Mas nós temos essa especialidade gira que é o surfista estival. Cabelo todo wax, vocabulário cool, bronzeado e (quando calha) giro. Pena é que confunda surf com bodyboard e  não apanhe uma onda que seja sem se espetar. Podia ser interessante se fosse genuíno e, logo, não-sazonal.


Eu gosto do Verão, sinceramente. Adoro o sol. Tenho verdadeiro prazer em comer gelados (embora aí seja um pouco como a publicidade da OLÁ, passe a pub, gosto sempre). Agora, assusta-me é essa coisa de andarem por aí com campanhas de promoção da natalidade no país e no mundo. A natalidade sobe imenso no Verão, como se sabe, com as feromonas em alta e tudo o mais. Mas a mim parece-me que, com gente assim, já temos é pessoas a mais. 


Friday, July 27, 2007

Fraldinha e Sabonete


Li, numa revista médica, que as mulheres engravidam mais nos meses de Verão. Havia uma data de razões apontadas, metade das quais não me lembro, mas sobretudo o nível de produção de hormonas de ambos os sexos -ao que parece, os níveis de testosterona dos homens são mais altos nos meses de calor - que, como todos sabemos leva a uma maior predisposição para fazer bebés (embora “fazer bebés” não seja aquilo que realmente se queira 98% das vezes).


O facto não me surpreende. Na minha própria família, quase todos nascemos na Primavera (e início do Verão, quando o pessoal já andava a gastar os últimos cartuchos...) Assim, contando nove meses para trás, as mulheres terão engravidado na época estival. 


Actualmente, a maior parte das minhas amigas estão todas a tentar engravidar Algumas já ostentam orgulhosamente uma barriguinha que só com muito esforço se vê. Agora que escrevo isto, reparo bem no contrasenso que é, porque até há bem pouco tempo atrás o que mais se queria era não engravidar e era uma grande desgraça se tal drama nos batesse à porta. De repente, querem todas  ter o primeiro bebé. É uma febre que ataca as mulheres que sentem chegar o fim da década dos vinte anos – acende-se um sinal vermelho dentro do cérebro que diz: “Alto, Maria! A Sara, a Sofia e a Bernardete já engravidaram... Tenho de me despachar senão qualquer dia não tenho assunto nenhum para falar com elas, porque elas já só falam de marcas de fraldas e de parto sem dor. Hum... A ver se me engano  na toma da pílula este mês...”


O assunto agrava-se quando há uma cunhada ou uma irmã que (supremo infortúnio!) já deu o primeiro netinho aos ansiosos avós. Já não vamos a tempo! A acérrima competição entra agora no campo familiar. Não raro a avó em potência excita as feras, com suspiros “O desgosto que tenho de ainda não ter uma menina correndo neste quintal, ao lado do netinho que a Luísa me deu. Ainda bem, Luísa, que me trouxeste a alegria desta criança!”, e aí temos esta Luísa (cunhada que sempre odiámos secretamente!), toda inchada de um pedaço de gente que berra e se baba todo o santo dia.


Depois, há o problema da idade. Ainda ontem éramos umas rapariguinhas – “Vê lá não chegues tarde a casa...”; “Quem é esse tipo com quem andas agora? Ainda me parece pior que o anterior!”; “Onde é que estiveste? ;”, etc, . Subitamente e sem aviso, já temos de nos despachar ou começamos a ser “um bocado velhotas para ter o primeiro filho”. Porquê? Porque senão o corpo pode não voltar a ser o mesmo, que é como quem diz não voltar a ter o mesmo peso, abrir estrias por toda a santa curva, descair o peito, ficar flácido aqui e acolá. Isto tudo vai fatalmente acontecer quer uma pessoa tenha filhos agora ou depois, e até há-de acontecer a quem nunca os tiver, mas nós, pobres ingénuas, gostamos de pensar que se seguirmos certas regras na vida, evitamos todas as misérias que a velhice traz. Mais tarde, quando chegar a pancada cruel, havemos de dar razão à nossa avó, mas não interessa porque aí já havemos de ter a idade dela e ninguém, sobretudo os filhos e netos que eventualmente tivermos, nos hão-de dar ouvidos.


Uma mulher é olhada muito de lado ao assumir que não quer ter filhos. Imediatamente, é um ser anti-social, mais ou menos como os que insistem em andar de bicicleta neste mundo de carros, os que preferem ter uma iguana como animal de estimação em vez de um cão ou os que não usam gravata no escritório. Neste mundo, só há um crime pior do que ser diferente – é ter genuíno prazer em sê-lo. “Mas porquê, Maria?” perguntam a amiga, a vizinha, a mãe dela,  e o patrão que antes refilou por contratar uma mulher dado que “as gajas engravidam e depois é uma chatice...”  Não interessam as razões da Maria, porque todos lhe hão-de dizer que não é natural  -  vigora a ideia de que uma mulher só se pode sentir realizada se der à luz.


Repare-se que não é educar que parece importante ao mundo, mas sim o acto de fazer nascer. Ter filhos é fácil (sobretudo para mim, que, efectivamente, nunca pari nenhum.) Como é coisa que já se vem fazendo desde que o Mundo é Mundo, julgo que a Natureza se encarregou de nos dotar com esse saber inato, sem necessidade dessa ideia tão pós-moderna e hollywoddesca – agora também nos Açores, iupi! - que são as “aulas de preparação para o parto”, que, segundo sei, não existem no Terceiro Mundo onde os bebés são mais que as mães  continuam. Mais difícil é criá-los depois.


Actualmente, há umas versões de “pai” e “mãe” muito em voga que são “o/a amigo/a mais velho/a”. Não têm conta os pais e mães que dizem “Eu o que quero é ser uma espécie de amigo/a mais velho/a do meu filho, não exactamente um pai/uma mãe”. Ora, se não querem ser pais nem mães, faz sentido terem filhos? É que amigos podem-se ter vários na vida, e escolhemo-los nós, mas pai e mãe será difícil arranjar outros...


É verdade que a educação é uma coisa ingrata – é preciso castigar as maldades e saber dizer que sim e que não e dar uns abraços apertados e proteger só na medida certa e blablabla e é o maior quebra-cabeças do mundo para se ter com alguém que na primeira oportunidade nos vai dizer que fizemos quase tudo errado.


Felizmente, está cheia de momentos inesquecíveis e divertidos. Não resisto a contar um, que se passou com um menino de cinco anos, a quem o meu sogro tentava ensinar algo sobre a bondade e a vida eterna. Depois de uma grande prelecção sobre boas acções, fez-lhe perguntas para se assegurar de que ele tinha percebido. “Então, se eu for à missa sempre, vou para o céu?”. “Não”, disse o miúdo. “Muito bem. E se eu tiver muito dinheiro vou para o céu?” “Não”. “Claro. O que é que é preciso para irmos para o céu?”. O menino não tinha dúvidas – “Temos de estar mortos”. 

Wednesday, July 4, 2007

O Choque Tecnológico


Vivemos numa época em que é (quase) tudo absurdamente fácil. Não nos damos conta disso porque estamos automaticamente programados para viver assim. As invenções e  esquemas novos que nos facilitam a vida entram depressa no nosso sistema e, passados uns meses, já nem nos lembramos como foi possível viver sem aquela tecnologia ou mecanismo.


Isto vem a propósito de um momento insólito que vivi recentemente. Vivo num condomínio, cujo portão nos permite a todos entrar para dentro do chão comum que nos leva aos nossos apartamentos, e esse portão funciona electricamente – carrega-se num botão e abre-se o portão; nada mais simples (e rima!). Acontece que a electricidade falhou. Algo que para os nossos pais (nem digo avós...) seria encarado como quase comum, mas nós maldizemos logo a EDA, as obras da Câmara, o Governo e a Assembleia (de notar que algumas destas entidades não têm absolutamente nada a ver com a falta temporária de electricidade, mas é extraordinário ver como são sempre metidas ao barulho sempre e quando falta qualquer coisa na vida de um cidadão).


Chegámos nós ao portão para sair de casa e, gesto automático, carregámos no botão. Não abriu. O pânico instalou-se. As vozes levantaram-se: “Não podemos sair; estamos presos em casa!”. A minha amiga lembrou: “Vamos saltar o portão!”, mas a vontade não era muita, porque é alto, complexo, e – obviamente - foi feito para que ninguém o saltasse… Só depois de analisadas várias hipóteses,  incluindo a solução Tarzan - saltar a varanda das traseiras (um risco físico muito pior do que saltar o portão, e susceptível de causar um ataque de coração à vizinha do prédio ao lado) e a solução Calimero – esperar, calmos e conformados, que voltasse a luz… - é que alguém (pronto, fui eu, podem bater palmas) se lembrou que devia haver uma chave do portão.


Primeiro, fomos ao portão confirmar que sim senhor, havia lugar a uma chave, não era de todo um portão ultra-hiper-extra-moderno, sem lugar para uma coisa tão corriqueira como um buraco de fechadura. Depois, ficámos com cara de palhaços (é o que somos…), porque não nos tínhamos lembrado do bom e velho método da chavinha na porta antes. Contemporâneos extravagantes! E agora, onde está a chave do portão?! Porque, evidentemente, nunca a tínhamos usado nem sequer dado conta da sua existência…


Este pequeno episódio doméstico não serve só para ilustrar que somos um pouco disfuncionais, coisa que, evidentemente, só interessa aos próprios. Serve, sobretudo, para dizer que neste mundo Moderno já ninguém se lembra do mais evidente. A tecnologia devia ser apelativa, sobretudo por poupar tempo para depois se aproveitar melhor a vida, mas, muitas vezes, impede as pessoas de pensar – não estaremos a ficar um bocadinho mais ignorantes com tanta facilitação? As criancinhas, agora, usam todas calculadora antes de saberem a tabuada, pelo que nunca a saberão; está fora de moda ensinar a gramática como deve ser, porque as regras gramaticais limitam a livre expressão (aliás, o erro, dependendo de quem vem, passou a ser considerado figura de estilo…).


 É fácil desculpabilizarmo-nos no mundo tecnológico – a culpa não é nossa, foi qualquer coisa na porcaria do sistema que falhou. E também posso culpar o computador porque, como diz um senhor que conheço, ele nunca há-de gritar a defender-se.


Pessoalmente, apesar de viver numa casa sem televisão, e de só muito tarde ter aderido ao telemóvel (e hoje não vivo sem ele, e tenho a firme convicção que me bastava mudar de número para mudar de vida… experimentem!), não posso conceber voltar atrás no tempo para aqueles dias sem as paredes que vomitam dinheiro chamadas Multibanco, sem máquinas digitais que fazem de toda a gente um grande fotógrafo e sem internet em casa que nos permite ser escritores ou músicos em potência, sem jogos virtuais, nos quais somos o Indiana Jones descobrindo templos e matando crocodilos, preguiçosamente sentados no sofá.


Às vezes, não há electricidade e uma pessoa pára. É obrigada a pensar de modo diferente. Até parece que usa uma zona adormecida do cérebro outra vez. 

Friday, June 22, 2007

A Importância de um Local que Soe Bem


Sei que a toponímia está na moda, mas não vou aqui dissertar sobre os nomes dos Açores, até porque há obras recentemente publicadas sobre a questão de indiscutível valor (as obras, não a toponímia, que deixa um pouco a desejar como sabemos).  É certo que este deve ser dos temas mais caros a toda a gente, sobretudo para nos picarmos uns aos outros com questões da naturalidade e da residência de cada um, expressas em nomes infelizes.


Estou convencida (e isto para dar um exemplo clássico) que os indivíduos de Rabo de Peixe passaram a sofrer agruras de troça do restante arquipélago exactamente por nascerem e/ou viverem num sítio denominado assim. Não me venham com a história da pronúncia dos seus  habitantes (que não é menos compreensível que a de muitos outros sítios da ilha de S. Miguel) ou com questões socio–culturais e económicas (tão gritantes ali como noutras freguesias). Não, não. O azar destes senhores foi mesmo terem nascido no Rabo de um Peixe qualquer. Marca para toda a vida aos olhos dos demais.


É por isto mesmo que os naturais de Rosto de Cão (também na ilha de S. Miguel, como sabemos) se sentem eminentemente superiores. Afinal, eles nasceram no Rosto e os outros infelizes vêm do Rabo. A vida é injusta, porque dá a estes segundos um longo caminho a percorrer, enquanto que aos primeiros coloca-os já na pole-position. E, se formos mais longe, a coisa é ainda mais séria, porque os do Rabo são de um Peixe e os do Rosto são de um Cão, grandes companheiros da espécie humana, inteligentes e semper fidelis, etc, etc. Mesmo assim, não se livram de serem gozados, toda a vida, pelos demais, que tiveram a sorte de não nascerem/não residirem em locais com denominações tão peculiares.


As ruas – das quais se esperaria terem nomes mais vulgares e ajuizados, porque não se escapam com questões de tradição – vão pelo mesmo triste caminho. Tive um colega  que morava na Rua das Necessidades, perto da velha estrada da Ribeira Grande. Rua das Necessidades! Podem imaginar…O rapaz, que era inteligente e simpático, sofria sempre imenso cada vez que tinha de dizer a sua residência. Via-se na cara das pessoas o gozo fenomenal. Ah, que necessidades seriam essas? E ele, em particular, estaria necessitado de algo? Imagino que a primeira coisa que deve ter feito foi mudar-se dali para fora. A zona, hoje, é toda bastante mais in, muito via rápida, mas continua a ter aquela ruazinha assim denominada. Fica-lhe bem.


Há outra interessante rua (hesito entre a Fajã de Cima e os Arrifes e aceito correcções, porque a minha memória recusa-se a lembrar-se disto muito bem, como podem entender…): é a Rua do Mata-Mulheres. Calculo que deve haver uma história por detrás desta invulgar tabuleta. Louvo a coragem das senhoras que habitam ali. Cada manhã é uma vitória sobre o mito.


Lamento ter trabalhado tão pouco tempo na ilha Terceira e não estar suficientemente por dentro da fascinante toponímia da cidade de Angra. Mas sempre me fascinou a Rua do Galo, completamente desenquadrada dos restantes nomes, quase todos sonantes da cidade do Heroísmo, património mundial e tudo o mais. O Frango está ali só para chatear, para dar uma ideia de cobardolas esquecido e de situações mal resolvidas, sei lá, chatices que acontecem pelo meio das pernas.


Convenhamos que também estamos bem servidos no Faial, a começar pelo nome da cidade. Pois bem sei que deriva do nosso primeiro capitão-donatário flamengo Van Huertere, blablabla, mas o certo é que hoje é Horta e lembra logo repolhos. Se bem que Ponta Delgada para nome de cidade também é algo muito pouco pujante (não bastava ser pontinha, mas ainda é delgadinha, Senhor Deus, que fraqueza!). A Ribeira Grande, neste aspecto, faz-lhe sombra.
Mas olhem que dentro do Faial – como nome de ilha não está mal pensado, é melhor que a denominação cardinal e vulgar de Terceira – temos ainda outras preciosidades, onde se inclui essa valorosa terra (abundante de dinheiros e dada à leitura da Vogue magazine) que dá pelo nome de Espalhafatos.
E que dizer da freguesia das Angústias, como abreviadamente é conhecida? Um dos meus momentos catárticos é passar ali perto da Polícia, virar à esquerda e dar de caras com esta tabuleta -  “Parque Infantil de Angústias”. Lida de um só fôlego e com esta preposiçãozita sem artigo (DE Angústias) é de homem! Eis um local que se assume. Aqui, meninos, podeis e tendes o dever de dar largas às vossas ansiedades.


No entanto, talvez mais importante que a toponímia é a antroponímia, que é o mesmo que dizer o nome pessoal de cada um. Saberão vocês, pais e mães, a responsabilidade que pesa sobre vós ao escolher o nome dos vossos filhinhos ? Marca um destino para uma vida inteira, senhores.
Recordo sempre um Inspector-Geral da Portugal Telecom que se chamava Luís Todo Bom. Isso mesmo. A primeira vez que o ouvi anunciado na televisão, estava na cozinha e fui a correr para a sala de estar só para ver com os meus próprios olhos quem seria o dono de tal nome. As expectativas que cresceram em mim durante estes décimos de segundo são indescrítiveis e não as posso pôr em palavras. Não só era Luís Bom, como era mesmo Todo Bom, intensificado por advérbio. Que coragem, registado em cartório!...  Pois lamento dizer às leitoras que  me senti um pedacinho  defraudada quando pude observar o senhor (mas é legítimo abrir um parêntesis para dizer que nestes assuntos não há verdades absolutas e poderá ser que as senhoras encontrassem motivos para verificar a adequação deste nome onde eu nada vi).


Claro que a lista de antropónimos é infindável, mas é igualmente perigosa e eu própria tenho telhados de vidro. Para além do usual questionário pelo qual tenho de passar e das alcunhas que o meu sobrenome permite, é raro passarem-me recibos correctamente, o que me causa grandes chatices (qualquer dia escrevo sobre os impostos mas há-de ser num dia em que me encontre particularmente azeda, coisa dificílima). Assim, passei a, gesto automático, soletrar o meu nome. Quando por qualquer razão isto não resulta, tenho por hábito usar a analogia do Capitão Cook (toda a gente sabe quem foi o Cpt Cook e a fila anda!).
Porém, há pouco tempo, fui comprar uma batedeira para fazer os meus bolinhos. A menina da caixa não sabia quem foi o Capitão Cook. Também, aparentemente, tinha dificuldades em soletrar. Ficámos num impasse. Mostrei-lhe o Bilhete de Identidade. Ela riu-se: «Ah! Bolas, menina! Já me podia ter dito que era cozinheira, só que é cozinheira em inglês!»

Friday, June 1, 2007

Os Especialistas


É gratificante viver rodeada de especialistas. Suponho que todos sentimos o mesmo. Sabemos que estamos imensamente seguros neste nosso pequeno mundo, pois não há tarefa a executar que não tenha, pelo menos, uma mão cheia de especialistas na área prontos a debitar sobre o assunto. Lá deitar mãos à obra é que é mais complicado, como sabemos. Podem não mexer uma palha, mas falar sim (não necessariamente à frente dos executantes, claro está).  Como não se deram ao esforço de suar para que algo fosse, efectivamente, feito, é muito fácil – após a obra concluída - dizer que a mesma está uma treta. O mais rísivel é que quando lhes perguntamos como poderia ser melhor, não sabem. Mexer (e mexer-se!) dá muito trabalho. Então agora, em tempo de calor, é uma canseira. Ufa!


Há todo o tipo de especialistas. Infelizmente – para mal dos nossos pecados- nem são capazes de se entenderem entre si. Veja-se o exemplo dos mecânicos, especialistas em consertar automóveis. Uma mulher (pronto, eu, deixemo-nos de eufemismos) leva o carro à oficina. Os mecânicos observam a entrada, com cara de «ehehe, olha a dama, vem trazer a máquina, cerca pela esquerda Manel, a dama não vai perceber nada disto, ainda por cima é pequenita e o motor deve ser mais velho do que ela, olha esta potência». Atiram uma beata para o chão para dar um certo ar de macho, fungam e dizem: «Entao, queria alguma coisa?». Eu queria, queria saber porque é que este carro não anda e assumo que os meus conhecimentos da avaria são escassos.


Oh, nada dá mais alegria aos mecânicos! Eles, a quem compete saber porque é que aquela carroça não se mexe, também não têm a mais remota ideia, mas que EU não saiba é que lhes dá um gozo bestial. «Então, e quando é que a senhora, perdão, a menina deu por isso?»  eh eh eh. «Foi ontem, foi de repente, eu quer-me parecer  que isto é só uma questão da bateria».


Ah, a arrogância, agora a mim há-de-me querer parecer alguma coisa! E só da bateria! Como se fosse pouco.  Começando a mexer no carro, os mecânicos vão piscando o olho entre si e atirando com frases que é suposto eu não entender porque uma mulher não deve poder penetrar no universo sagrado da mecânica automóvel: «Oh minha cara menina isto tanto pode ser das velas, como do carter como da suspensão ou do diferencial. Epá, até pode ser da transmissão, um gajo assim de repente não pode dizer…Percebe? eh eh eh. Claro que isto para si, se calhar, é chinês. O melhor é deixar as coisas técnicas connosco e depois, na altura certa, a gente devolve-lhe a máquina. Fique descansada.»  O outro atira com : «Pensava que era assim simples, não é? Isto parece simples, mas nós já andamos a mexer em carros há muitos anos, menina… Nós é que sabemos.»


É nessa altura que faço o erro fatal de fazer espumar as feras, dizendo: «Bem, os senhores deram-me 5 hipóteses prováveis para a resolução de um problema e nenhum tempo concreto para o resolverem, o que, para especialistas que andam aqui há muitos anos, não me parece muito eficiente.»
Após alguns grunhidos e salivadas, misturadas com «olha-me esta gaja…», sai um polido «Se calhar, a gente não lhe explicou bem os termos técnicos, para a senhora poder entender esta nossa linguagem que é muito específica e só com a prática é que o pessoal percebe» (de notar que passei a ser  senhora para melhor me chamarem burra). Digo: «Eu percebi muito bem todos os vossos termos técnicos. Quando não perceber, pergunto. Muito obrigada. E daqui a quanto tempo é que os senhores calculam ter feito o trabalho que vos compete fazer?»
  Bufando e respingando, respondem: « Isto demora, isto não é como pintar a unha todos os dias, ó senhora doutora.» (vou subindo de título enquanto falam comigo e descendo de título enquanto falam entre eles sobre mim).  «Se os senhores prestassem atenção reparavam que não tenho as unhas pintadas. Guardem lá essa conversa para as senhoras que servem de decoração, fazem favor. »


E assim, os especialistas – amplamente reconhecidos, pelo seu excelso trabalho – e eu, convivemos em sã harmonia, todos os dias. Precisamos uns dos outros, que se há-de fazer? 

Friday, May 18, 2007

A Opinião Pública


Esta opinião (a minha, não a pública) vem a propósito de uma conversa que tive noutro dia com um amigo, em que lhe disse que não me preocupava nada com a opinião alheia, nomeadamente no que concerne a assuntos pessoais, ao que ele me respondeu ser isso impossível porque todos temos necessidade de aprovação, sendo o Homem um ser social e blablabla.
Reformulando: não me preocupo nada com a opinião pública e julgo que qualquer pessoa com dois dedos de testa também não se preocupará.


Em primeiro lugar, a opinião pública é como um coro de vizinhas velhas e rabugentas, preocupadas com o seu quintal e com as laranjas da sua laranjeira que parecem estar a tombar para o nosso lado do muro, e não vá a gente lembrar-se de tirar uma. Porém, se por acaso, o gato delas roer as nossas plantas, até nos oferecem um cesto de laranjas com laço a decorar. A opinião pública muda como um catavento; se soubermos a razão da mudança ainda temos muita sorte.


Lembro-me sempre de uma situação engraçada acerca do valor das pessoas para o público: certa ocasião, quando o Eriksson era treinador do Benfica, a equipa estava a ter um campeonato muito fraquinho e andavam todos a falar mal do homem como se ele fosse pior do que um iogurte ingerido fora de prazo; entretanto, o Benfica jogou para a Taça dos Campeões e fez um figurão, passando o Eriksson de besta a bestial num espaço de 90 minutos. Houve mesmo um jornalista que lhe pôs esta questão – o eterno “Como se sente por o povo português agora passar a considerá-lo um herói quando ainda ontem se dizia tão mal de si?” O homem riu-se e disse que “Já não era a primeira vez!”.


De facto, tendo em conta que individualmente a maior parte das pessoas até pensa mais ou menos bem (ou, pelo menos, pensa) mas quando integrada num grupo parece perder as suas capacidades de lucidez e de raciocício - range os dentes e entra num espírito de carneirada, vamos todos por ali, por onde não se sabe bem, quase de olhos fechados que estão mas é por ali que vão - não sei por que carga de água se há-de atribuir grande importância à opinião desse rebanho. Experimentem perguntar-lhes o porquê de qualquer coisa / assunto / ideia  / ódio ou amor viscerais e a resposta será, 90 por cento das vezes, “eu ouvi dizer que…”. Logo, a opinião pública não só tem muito pouco de própria (no sentido de individualmente pensada) como de fundamentada nada tem. Vive de hits de momento, de foguetórios para animar a malta quando não há festarola nem há mais de que falar e de “ouviste a última? a mim, também me parece que sim”. O parecer é fundamental, porque ninguém quer ser responsável por dar certezas algumas de nada, claro está.


Não se pense que isto é exclusivo das classes sociais menos letradas. Nem pensar! Isto é de todos e para todos. Ou não fosse esta opinião… pública. A malta das literaturas, por exemplo, também tem opiniões assim elevadas e dadas a mudarem de rumo conforme sopra o vento (não raro estão eles a soprarem para que o vento mude de direcção mais depressa…). Como exemplo, Vladimir Nabokov expressou grande surpresa por um dos seus livros ter sido analisado – sincronicamente!- da seguinte forma, por dois grupos de críticos diferentes: “ A Velha Europa troçando da Nova América” e “A Nova América troçando da Velha Europa”  (Nabokov, On a Book Entitled Lolita, Nov. 1956).


Assim, é justo dizer que a opinião pública é uma espécie de mentira social, murmurada primeiro, gritada depois, levada em braços e, finalmente, deitada no lixo. Afinal, se pensarem dois minutos, vocês conhecem mais gente inteligente ou mais gente de mente desocupada e boca grande? Pois, são os fazedores da opinião pública.

Friday, May 4, 2007

Lusofobia e Lusofagia


Há pouco tempo atrás, quando trabalhava noutro país, um jornalista disse-me que a comunidade portuguesa era um caso curioso porque “não gostavam uns dos outros”. Como eu vivia muito deslocada daquilo a que vulgarmente se chama a comunidade emigrante (dado que na minha cidade praticamente não havia portugueses e no meu trabalho éramos duas, coisa sem relevância no meio da máquina trituradora de centenas), não pude pronunciar-me nem a favor nem contra. Hoje, porém, penso que os portugueses não gostam uns dos outros nem lá fora nem muito menos cá dentro, que é, como quem diz, em Portugal.


Basta pensar no caso simples dos portugueses em férias no estrangeiro. Não há nacionalidade que mais goste de comprar T-shirts com nomes de cidades. É vê-los com “LONDON”, “AMSTERDAM”  estampados nas camisas logo ao segundo dia de repouso e sol (se bem que escolhi maus exemplos para “sol”). Têm uma necessidade premente de se integrar na onda do sítio para onde foram, esquecendo que qualquer cidadão local (pelo menos os que gozam do seu perfeito juízo... pronto, isso exclui uma percentagem razoável) não usa uma T-shirt com o nome da cidade onde habita estampada em letras garrafais. Estão a ver o que era se andássemos por aí com camisas ostentando “HORTA”? Não respondam à retórica, por favor.


O português em férias também tenta não falar a sua língua, mas sim a língua do visitado. Isto pode ser um sinal de simpatia para com o país acolhedor, e até de um certo polilinguismo que nem todas as nacionalidades possuem, seja porque a língua portuguesa tem uma amplitude fonética muito grande (o que lhe permite “imitar” outras com uma certa facilidade), seja porque temos, culturalmente, maior acesso a vários idiomas que não têm acesso à língua portuguesa (quantas vezes um inglês terá ouvido falar português antes de chegar a Portugal, por exemplo?).


Porém, passe o facto de sermos simpáticos, espertos e abertos ao mundo – já vos dei elogios para 15 dias! -, a verdade é que o português também tem, muitas vezes, desgosto. Quantas nacionalidades diriam coisas como “Eu até  gosto de português, mas prefiro ouvir outra língua”?  O que ele, realmente, apreciava era aprender português assim como quem aprende a arte do origami: qualquer coisa exótica e distante, para preencher o fim de tarde. Tendo em conta a maneira como muitos se expressam ao falar, até leva a crer que é mesmo isso que andaram a fazer na primeira infância...


O português tem, sobretudo, vergonha dos seus compatriotas quando está noutro país. Vai no Metro de Paris (cidade mais recheada de portugueses que uma lixeira de moscas)  e ouve falar português (mal) misturado de francês (pior). É o chamado francoguês, que dá pérolas como esta: “Pleuvera-til, Mariana? Não, il ping, seulement.” O português ouvinte esconde-se atrás do jornal, cora, tem suores frios, está em pânico de que o resto da carruagem descubra, por azar, que ele também é português. Que infortúnio! Mas porque é que esta gente não vai toda para as suas casinhas na Serra?! Na verdade, um português julga-se sempre melhor que todos os outros portugueses  - já o francês julga-se melhor, e ponto final! 


Mas ainda nem vos falei da Lusofagia – vocábulo que roubei ao tal jornalista (mas ele também não sabe e quem lhe disser é um lusófago!). O caso é simples...
Uma comunidade de portugueses (quer habite na Mauritânia, na Serra Nevada ou na minha rua) tem dificuldade em dividir. Há uma espécie de jogo de vaidades onde toda a gente se queima e ninguém ganha coisa alguma. E isto não acontece por uma ambição natural de querer progredir – seja esse progresso íntimo de que natureza for -, mas por uma mal dissimulada inveja do “quintalinho do vizinho”, que se traduz em aparecer numa revista social, em ser distinguido, em não poder ver ninguém fazer nada que não se pense logo que o fez obscuramente, em pensar que de tudo se podem tirar dividendos do alheio para benefício próprio, em desculpar isto “porque todos o fazemos assim”.


Claro que vocês estão a pensar exactamente o que eu disse na época ao tal jornalista:  isto é universal, não é um drama exclusivamente português! Certo. Concordamos. O problema é que o nosso Portugal, e dentro dele, os nossos Açores são tão pequeninos que tudo se nota muito mais, como se a formiguinha, vista à lupa, fosse logo candidata a elefante.

Thursday, April 5, 2007

O Luto

Em 1969, a psiquiatra suiça Elizabeth Kubler-Ross definiu cinco estádios pelos quais passa alguém que sabe padecer de uma doença terminal, no seu livro On Death and Dying. Essas fases, denominadas como estádios de dor ou de luto, foram - mais tarde - alargadas àqueles que sofrem a perda de um ente querido e lidam com esse facto, inevitavelmente. 



Assim, segundo Kubler-Ross, o doente que sabe estar a morrer (ou alguém que acaba de perder um ser amado) passa primeiro por uma fase de negação, na qual é frequente rejeitar o que se está a passar com pensamentos do tipo "Isto não está a acontecer..." 




Quando, finalmente, interioriza a realidade dos factos, surge-lhe a raiva, que corresponde ao segundo estádio. Nessa fase, tudo é ressentimento, frustração, guerra aberta contra o mundo, contra o Deus em que, possivelmente, se acredita(va) e se atreve a faltar-lhe e a apunhalar-lhe a fé, contra a ciência que não sabe encontrar uma cura e serve para tanto como as mezinhas da nossa avó, tudo é, pois, resumido em "como é possível?" e "porquê eu?" (ou "porquê a minha bebé? o meu pai?", etc, dependendo de quem lhe falta ou faltará em breve...)





Cansado de uma guerra estéril e inútil, entra-se na terceira fase - a da negociação. Não se percebe muito bem com quem o ser humano procura negociar em face da morte, mas a tentativa tem sido comprovada. Fala sózinho (fala com Deus?). Faz pactos nos quais o outro lado permanece invisível e - o que é pior - silencioso. Promete coisas: "Se me deixares viver mais algum tempo (pode ser só até ao Verão, mesmo que seja até ao Verão!), não faço mais asneiras como costumava fazer..."; ou sugere trocas: "Se tanto te faz um morto como outro... não seria possível levares-me a mim em vez dele? Faço menos falta à família." 



O silêncio - que bem se pode chamar sepulcral, passe a crueldade - do outro lado (será esse lado divino?) acaba por levar à quarta fase: a depressão. Um verdadeiro estado depressivo implica não ter interesse por nada, nem por si. Todo o mundo parece um parque de diversões inútil, feito para distrair as pessoas, desviando-lhes a atenção do essencial: a existência é vazia de sentido e todos vamos acabar sem que nada se possa fazer para contrariar o passar do tempo. Parece impossível que ninguém repare nisto e todos andem aparentemente contentes, na óptica do depressivo.





A depressão causada pelo luto é, talvez, a mais profunda até por ser reactiva e parecer não ter remissão.
Se calhar exactamente porque se chega à conclusão de que o fluir da vida não pode ser contrariado e que a morte faz parte desta, numa espécie de círculo eterno, de fluxo de acontecimentos que perfazem a totalidade da Vida Maior, que se chega à quinta fase: a aceitação. 




Nesse estádio, já não há luta contra o sofrimento. É uma espécie de sintonia com o curso geral da unidade, de remar a favor da corrente, de serenidade. 




Naturalmente, a rigidez com que Kubler-Ross define estas fases é própria de um profissional clínico. Nem toda a gente tem de passar por tudo isto, ou de seguir os períodos nesta ordem. Pode-se voltar atrás e dar saltos à frente, ou até nem sentir muitas das questões aqui focadas quando confrontados com uma situação deste tipo. Mas é interessante verificar como, realmente, este esquema permite enquadrar muitos indivíduos e perceber que o que sentimos perante a evidência da morte não são sentimentos solitários, tão pouco invulgares. Se bem que isso não nos traga nenhum conforto...