“It was one of the few moments in my life that I was
fully aware of being on the brink of a great experience.
And not only aware but grateful, grateful for being alive,
grateful for having eyes, for being sound in wind and limb,
for having rolled in the gutter[…], for having done everything
that I did do since at last it culminated in this
moment of bliss.”
Henry Miller, The Colossus of Maroussi
Se eu fosse uma mulher generosa a dar conselhos, e além disso sapiente, acreditando que a minha (breve) experiência de vida vos serviria de alguma coisa, poderia dar-vos uma recomendação de destino de férias e de leitura. Porém, jamais as ofereço, porque há uma zona no meu cérebro que, quando ouve uma bem intencionada recomendação, relembra imediatamente óleo de fígado na sopa. Para além desta memória de prenda envenenada, estou sinceramente convicta que ainda me falta ver muito Mundo – no sentido mais lato possível da palavra - para começar a aconselhar.
Decidi, simplesmente, falar-vos de um livro pouco conhecido, embora o seu autor o seja sobejamente. De facto, já todos ouviram falar de Henry Miller (1891-1980), quanto mais não seja pelo facto do seu livro O Trópico de Câncer ter levado a uma série de processos em tribunal em ‘61 que questionaram as leis da pornografia nos EUA. As suas obras ousadas do ponto de vista da sexualidade (algumas autobiográficas, como a trilogia na qual descreve a sua vida após o divórcio da primeira mulher) tornaram Miller famoso, ofuscando os seus outros livros – a correspondência com outros autores onde se dedica à reflexão filosófica e à crítica social, as novelas surrealistas, os ensaios de crítica literária, as short-stories ou a vasta literatura de viagens que produziu.
De entre os últimos, destaco a mais interessante e inesperada viagem – Miller nunca teria embarcado se não tivesse ouvido a descrição da Grécia feita pela sua companheira de casa, que lhe pintou “a world of light such as I had never dreamed of and never hoped to see”. Desta ideia e de uma mitificação toda feita da combinação artística entre o sonho e o real, a História e o Mito criada em Miller pelas cartas constantes recebidas de Corfu, onde morava o seu amigo Lawrence Durrel (também ele escritor), nasceu o desejo inadiável de partir para as Ilhas Gregas.
A viagem aconteceu em 39-40 e o relato vívido, cativante, verdadeiro de um país e de um povo que tão pouco mudou no seu essencial arquetípico e personalístico e tanto mudou no acessório fácil que o turista distraído apreende ao primeiro olhar chama-se The Colossus of Maroussi.
Durrel acompanha Miller da capital em diante, dando-lhe ainda a conhecer várias outras fascinantes personagens. Miller torna-se um admirador dos gregos, que, segundo ele, preservam as qualidades humanas que parecem ter sido esquecidas no resto do Mundo: a paixão pela vida, a generosidade, o quase total desprezo pelo material, o conforto na vida simples e também a confusão agradável do caos e a assumpção de um não resolvido espírito contraditório. Esta gente agrada-lhe tanto mais quanto representa a antítese ao seu próprio povo – os americanos absurdamente capitalistas – se bem que Miller faça também comparações com os ingleses (dominadores na época da ilha de Corfu não tendo os nativos em grande consideração), cuja aristocracia falha por ser demasiado forçada, e os franceses (pois era em Paris que Miller habitava), cujo requinte era totalmente desprovido de um afecto espontâneo e natural.
A admiração de Miller encontra valor simbólico no poeta grego Katsambalis, o Colosso que figura no título. Katsambalis é um encantador pela palavra, pelo seu sentido de aventura interior maior que a vida, por fazer crer que o génio (ao invés da mediocridade) é a norma: “The task of genius, and man is nothing if not genius, is to keep the miracle alive, to live always in the miracle, to make the miracle more and more miraculous.” Da vida, Katsambalis tira mais vida, como quando imita um galo a cantar de madrugada em plena Acrópole e lhe respondem vários galos, despontando, assim, a manhã.
Miller guarda também da Grécia a incomparável paisagem semelhante a uma tela (importante para quem, como ele, pintava), as limpas e modestíssimas pousadas, o humor de se encontrar num barco repleto de gente, animais e carga dentro do mesmo espaço ou de enfrentar o perigo e o enjoo de uma vez só, ambos profunda e teimosamente. Também não esquece a língua grega, que é “para poetas, não para mercadores”, flexível, amante, uma língua para homens que precisam de se inventar em heróis.
The Colossus of Maroussi não é um elogio gratuito à Grécia. Fala também da sua rudeza ocasional, da sua falta de meios na província, da sua loucura intempestiva. Mas é, sem dúvida, o relato mais verídico de um périplo pela Grécia. Todos os que lá foram com olhos de ver (logo, fora dos sítios de boom turístico) ou lá viveram sabem que é um lugar onde o vento, a água, a terra e o fogo são eles mesmos, em estado puro. Só isso, combinado com o aroma ancestral da História e a carga do Mito, fazem da Grécia sem rival.
Nota: A foto que publiquei a acompanhar o artigo foi uma foto diferente, da Ilha de Mykonos. Esta é da ilha de Syros. Uma espreitadela à foto original aqui: ...