... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, February 25, 2010

O Amor de Um Mito é Puro Mito

  

Vamos começar por fazer um pequeno détour (podia dizer desvio, mas dizendo détour prestam-me logo mais atenção, por causa da tal mania portuguesinha da qual Eça de Queirós já fez troça, de que as coisas em francês são mais intelectuais): as mulheres da Literatura Açoriana têm todas fama de destravadas, cheias de coragem e de força mas também de maluqueira e claramente incomuns.  Natália Correia -  que arrisco a dizer que é mais lembrada como deputada do que como escritora (infelizmente), sendo que o que mais se conhece dela  são os famosos versos que disse como resposta ao deputado João Morgado na própria Assembleia na sequência da proibição do aborto, pois “o acto sexual é[ra] para ver nascer filhos”;  Alice Moderno, que foi a primeira mulher a preocupar-se com a condição feminina nos Açores e a escrever sobre a liberação das mulheres em todos os sentidos, desde a independência financeira aos cortes de cabelo, tudo coisas de fazer tapar a boca com a mão no princípio do século XX. Naqueles tempos  - como nos conta a investigadora Conceição Vilhena -, quando se dizia que alguém não estava bom da cabeça dizia-se que “estava como a Alice Moderno”, de tal modo as suas ideias eram consideradas provocadoras e contra a corrente.


No entanto, aquilo que me propuseram falar aqui um bocadinho é, sobretudo,  da imagem do feminino dada por aquele que escreve no masculino. Como não estou a escrever um artigo académico (pasmo de pensar que há quem pense que escrever num jornal é escrever outra coisa que não opinião, mas adiante…) perdoar-me-ão aspectos relevantes que ficarem de fora.


Escolhi Vitorino Nemésio como exemplo, não só por ser o autor sobre quem sempre me debrucei mais aprofundadamente (e, logo, tenho um conhecimento maior… mas pobre comparado com o código cifrado que ele utilizou para escrever, não se deixando desvendar) mas também porque a sua perspectiva do feminino é paradigmática.
É sempre difícil separar a obra de um homem dele próprio: é tentação comum inferir dos textos por ele produzidos não uma ficção mas a sua vida transposta. Apesar deste pecado, do qual nem sempre estou livre,  também eu “prefiro a obra de um autor à sua biografia”.


Comecemos por um romance pouco conhecido – Varanda de Pilatos. O protagonista, Venâncio, é um adolescente, tão idealista quanto amedrontado, com tendência para a evasão poética. As suas musas (uma musa única exigiria coragem que um Pilatos não possui) são Elisa, uma namoradinha infiel - que ele crê sempre incapaz de tais actos impróprios mesmo quando ela lhos confessa abertamente – e uma mulher mais velha, Fernanda, em quem ele deposita todo o impulso erótico que é incapaz de realizar com a namorada – e, logo, Elisa fá-lo por outro caminho.  
A “doce Elisinha, casta flor do meu jardim suspenso” tem com ele “um amor sério” no qual não entram desejos; entram poemas. Ao saber que ela o traía, Venâncio nem se atreve a pedir-lhe explicações, pois, como diz, ele era “um Rei […]atordoado” com esta Elisa, “pura de mais” aos seus olhos enevoados pelo amor. Elisinha não nega a traição; conta-lhe pormenores, deliciada de o ver humilhado na sua falta de decisão e de desejo (onde ela tanto o tentara sem resultado!).  Ele é rápido a passá-la de deusa, “razão de ser e fundamento” a “Messalina”, indigna do “alto sentimento que perfuma os cavaleiros, vindo de meigas donas”.


Mas realiza-se o rapazinho com Fernanda? Nem por isso. Pensamentos não lhe faltam, excitados por ela, que não ignora que basta-lhe subir a perna para arranjar as meias para provocar nele faces coradas. Mas são só isso mesmo: olhares e pensamentos. Pois Venâncio não teria atitude para avançar. A eroticidade que sente por Fernanda é também a excitação da dificuldade, o saber que está defronte do impossível e a idealização fascinada de um rapazinho por uma mulher, à vista dele, madura. De resto, ele próprio admite que as formas redondinhas de Fernanda a que deita o olho são uma desculpa para o erotismo, porque lhe dão ideias e, não raro, lembram-lhe a própria Elisa, por quem ele tem sentimentos mas em quem não consegue pensar como corpo. Assim, serve-se de uma para melhor continuar com a outra…


Como sucede em outras obras, há um bom amigo para equilibrar o protagonista confuso, esquema corrente e funcional. O amigo é rápido e certeiro a analisar que Venâncio “não passa de um trampolim onde pulam desejos pueris” sem sentido: “Falta-te o nervo!”, ao passo que vê que na Elisinha “Temos mulher.” Mas se Elisa tem sangue e Fernanda tem doces risinhos, Venâncio só ferve de contradições e nunca chega a lado nenhum, excepto a uma fuga,  insatisfatória até para o próprio.


Este romance foi dedicado a Gabriela Monjardino Gomes, expressamente “minha Mulher” segundo o autor. A dedicatória, plena de doces palavras e reconhecimento e gratidão pelo seu companheirismo, faz-nos pensar que GMG terá partilhado muito do fazer do livro. Dado estarem casados apenas há quatro meses, supõe-se que a sua intimidade era grande anteriormente (VN não era modernaço, não fazia livros em 4 meses). Impõe-se uma pergunta, dado que todos nós sabemos que VN também tinha as suas indecisões particulares: onde está “a bonequinha de sangue” que inspirou Mau Tempo no Canal?


Margarida Clark Dulmo, a protagonista de Mau Tempo no Canal, foi decalcada, como se sabe, de um amor antigo a quem VN nunca deixou de enviar cartas. Claro que Margarida é uma personagem muito complexa, desde já por ser um compósito da idiossincrassia açoriana a que o autor tentava regressar, memorialista e literariamente. Mas para além de ser esse arquétipo condensado de “Ilha perdida”, é a mitificação do sentimento amoroso de João Garcia, um co-protagonista  espécie de exorcização de VN, homem sem força de vontade, cheio de técnica e teoria, mas incapaz de uma atitude frontal e empenhada, o que fatalmente conduzirá à rejeição amorosa de Margarida, cuja “veneta” rebelde não concebe não ser orgulhosamente amada. A paralisia do carácter de João Garcia, a estagnação das promessas nunca cumpridas, “o gosto de a sentir sempre longe, sugerida, sem um apetite preciso”, a sua incapacidade de gerir o afecto chocam com os riscos (e até as sovas) que ela chega a sofrer por causa dele.  JG está muito consciente da sua fraqueza de acções (que não de sentimento), e atormenta-se por, no centro da sua concepção amorosa, repousar a ideia que ele tão bem expressa ao falar do seu amor por ela como se fossem Dante e Beatrice: ao vê-la, fica presa de “terror sagrado”, sente nela “o próprio irreal com rosto de realidade”. Esta veneração excessiva passa do simbólico ao concreto, não sendo ele capaz de nenhuma atitude rasgada como devem ser os amantes e acabando por perder a rapariga desafiadora e aventureira que via nas outras meninas do Faial umas “bispetas, que fazem biquinhos, a quem os papás compram piano e vestem de seda liberty”. 


A ofensa de JG a Margarida é a sua incapacidade de a amar, desafiando o mund(inho) local de pedestais, interpondo-se a personalidade dele de entrave ao amor dos dois como um biombo. O próprio João Garcia, derrotado, exprime este teorema, resumindo a consagração do feminino e o falhanço do amor por inexistência: “O amor de um mito é puro mito.”


Acaba por ficar comodamente casado com Laurinha, que nos aparece toda cheia de diminutivos, a começar pelo nome. Ela é boquinha, dentinhos, risinhos, dedinhos com que vai tecendo uma teia de assédio em que ele, molemente, se vai deixando enredar, sem grande gosto e, sobretudo, sem decisão firme: fica com ela como apanhado por um diabrete que lhe pisca o olho e, pensando no desgosto fundo de não ter Margarida, propõe-lhe ficarem juntos depois de ela muito o tentar. 


Apesar de agarrado pelo diab(inho), como admira ainda o seu mito feminino! … Afinal, para além de ser a amada, Margarida é também a força que ele não sabe ser: o desprezo pelas convenções sociais de tafularia, o gosto pela errância transgressiva, o “recalque” das dores, a serenidade aparente frente ao turbilhão e o amadurecimento psicológico extremo de quem tomou nas mãos o governo da casa e da família por oposição à imaturidade inerte dele –  que é um desenraizado no amor mas um tenente muito correcto do seu trabalho. Como diz Martins Garcia “ama com lógica (o que é mau) e raciocina com amor (o que é péssimo)”. 


A imagem do feminino como ser objecto de veneração ou, pelo contrário, diabo trapaceiro está presente noutras obras –  Lurdes, a funcionária com quem o protagonista Renato tem aventuras sexuais na cozinha, guardando de tudo uma sensação póstuma de repugnância; Zilda, a braços com horizontes tacanhos mas enlevada pelos homens que a rodeiam, caindo na armadilha do rapaz bem falante quando um pressagiador podre tubarão dá à costa; Célia, a quem o protagonista tanto amava que só falava com ela com um muro interposto, não fosse ceder a alguma tentação menos casta…


Porém, suspeito que este longo texto já tem dificuldade para caber na página. Portanto, vou deixar outros falarem. Além de que tenho de guardar alguma novidade para quando encontrar alguém no café – é que eu nunca aprendi malha, não pinto as unhas e, apesar do meu nome, não troco receitas; estou desesperada à procura de assuntos assim femininos!