... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, July 25, 2013

O amor exigente


“Explica-me sucintamente em que é que os açorianos diferem dos continentais.” Pediu-me o meu colega, sofregamente académico, com uma caneta na mão em posição de tomar notas.

Gostava de saber condensar a minha experiência de um ser ilhéu, seguramente uma experiência afetiva e vivencial, mas depressa me dei conta que essas são as experiências mais difíceis de conseguir transmitir. A experiência de se sentir açoriano é uma ligação telúrico-cultural difícil, que Nemésio exprimiu muito bem em quase todos os seus escritos, sobretudo (ou talvez exatamente pela máxima razão de) ter sido um homem que viveu maioritariamente afastado dessas ilhas, embora nunca se tenha conseguido desprender delas.

Como em todos os imigrantes, há uma sensação de desterro e de prodigalidade muito fortes, acompanhados por uma ideia de eterno retorno que nunca é concretizável porque a terra que se perdeu está, efetivamente, perdida para quem a deixou. Mas nestes contornos, quase filosóficos, não seria o açoriano desterrado muito diferente do conceito mítico do judeu errante. E, na verdade, há lados bem diversos no que constitui o sentir açoriano que, aliás, só se define conjuntamente se apresentarmos os Açores como um todo frente à porção de terra peninsular.

Pois a primeira coisa que um açoriano sabe é que os Açores dificilmente se unem. “Tu de onde és?” é pergunta frequente para se saber a que porção de terra diminuta se pertence, logo nos colocando etnográfica e culturalmente numa realidade de ilhéus que nada tem a ver com as outras oito ilhas. Outra pergunta que ainda se vê nas gerações mais antigas é “Tu de quem és?”, prova mais que provada que um ser solitário não é ninguém nessas ilhas, onde o ostracismo ainda é arma de eleição.

Muitas vezes se fala da condição de ser açoriano misturando-a com a defesa dos Açores. Mas isso é governança autonómica. A condição de se ser açoriano é, hoje como ontem, ser picaroto, micaelense, terceirense, florentino, e restantes… antes de se sentir açoriano. Há nove identidades a constituir uma – tal nem sempre tem sido fácil de gerir e acredito que seja difícil de compreender para os que nunca vivenciaram os Açores.

Claro que todas as geografias deste mundo condicionam os indivíduos, moldando ou mesmo determinando a sua História. Creio que a açorianidade se torna tão intrínseca pelo tal “sentimento de solidão atlântica” de Roberto de Mesquita. É o isolamento –ou melhor, o insulamento - que define o açoriano, a tal clausura aprisionante de quem se sente definido pelo “mormaço nas pedras e fastio de morte nas almas”. A fuga marítima é tão natural para o açoriano como respirar, porque o próprio mar é o seu oxigénio. Para lá de todos os condicionantes climatéricos e geo-estratégicos que definem a psique açoriana, é aquele olhar o mundo a partir do mar que assume importância capital.

Se bem que não faltem ilhas por esse globo fora, talvez nenhumas sintam com tanto peso a ambiguidade irónica que sentem as dos Açores – plantadas no meio de um Oceano, entre os dois continentes mais influentes do mundo, poderiam ser ponte (o que, mesmo assim, invalidava que fossem destino) mas continuam a ser pedacinhos de terra encarcerantes com um infinito à frente. E é, com certeza, por isso que o açoriano é naturalmente fragmentado, quer o evadido quer o que permanece.

Transgressores que partem ou quietistas que se acomodam, todos continuam unidos pela Ilha que carregam, sedutoramente cómoda ou impiedosa asfixiante, sentindo-se, curiosamente, todos um pouco estrangeiros, um pouco sem lugar.

Como poderia eu explicar tudo isto a quem nunca vivenciou os Açores? Difícil. Limitei-me, pois, a falar da imponência da montanha vulcânica, do romantismo das lagoas, do basalto escuro, da aridez da urze e do calor da vinha, dos frutos do araçá, dos cheiros únicos das grutas e das cores transformantes da maresia. “Mas isso é tudo amor à terra” respondeu-me o meu interlocutor. Talvez seja, precisamente. Mas, como dizia Margarida Clark Dulmo ao embarcar no paquete para a Europa no fim de “Mau Tempo no Canal”, “o amor à nossa terra é o mais exigente.” Esse amor duro, que tem dificuldade em perdoar as traições de personalidade, guarda os recalques, tem repentes de rebeldia, e encontra guarida na recordação do cheiro do tempo da flor e da baleia, apesar de preferir apartar-se deles, é um amor de complexa definição. “O mais exigente” como disse Margarida, que, ao deixar a terra, não hesitava em fazer “uma cruz no cais… para sempre.”