... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, January 1, 2016

Tu, Você, Exma Sra Dra (quiçá Doutora)


Em Portugal, as fórmulas de tratamento com que nos dirigimos às pessoas não são necessariamente indicadoras do (des)respeito que temos por elas. São motivo de grande confusão. Poucas são as línguas em que as pessoas se interrogam tanto sobre como devem tratar alguém. Um estrangeiro a quem ensino português perguntou-me quando é legítimo passar a tratar alguém por “tu” em vez de “você” e a minha resposta embrulhou-se em questões etárias, socio- profissionais e pessoais. Mas se a dúvida fosse apenas entre a segunda e a terceira pessoa do singular, estaríamos bem; seguiríamos a regra do “tu” e “vous” francês, do “du” e “Sie” alemão, do “tu” e “lei” italiano ou do “tu” e “usted” castelhano, tudo fórmulas familiares versus tratamentos corteses. No entanto, a questão em português é muito mais complicada.

Tenho a teoria de que quanto mais pomposamente me nomeiam, pior me vão tratar. Reparem: nas missivas dos serviços de Finanças, Segurança Social e similares, sou “V. Ex.ca” ou “Exma. Sra.”. São tratamentos extremamente pomposos com aroma a séc. XIX. A honra dura pouco tempo dado que, imediatamente a seguir, sou confrontada com algo mecanicamente redigido neste estilo: “Informa-se V. Ex.ca que está a pagamento o IMI” ou “Exma. Sra., o valor do Abono de Família desceu”. Portanto, traduz-se em:  “V. Ex.ca pague” ou “Exma. Sra. deixará de receber”.

Para os operadores de ações promocionais, sou “Doutora”. No trabalho, porém, não o sou. Aí, tenho uma panóplia de tratamentos desde “Professora” a “Mestre” (se o interlocutor é português) ou desde “Professor” a “Miss Cook” (para interlocutores anglófonos), e, finalmente, “Carla” tout court – de longe, a fórmula que prefiro. Há ainda uns monossílabos que entendo serem “Sôtora”, mais ou menos o equivalente a chamarem-me “Teacher” (o que também acontece).

Bancos e lojas, por exemplo, hesitam sempre entre “Sra. D.” e “Dra.”, consequência de eu não querer títulos nos cartões. Há ainda os que me chamam “Menina”, não sei se pela falta de aliança. Dentro do contexto laboral, mas em missiva eletrónica, há diversíssimas variantes, não só de grau de intimidade como de demonstração calorosa, a saber: “Cara Colega”, “Estimada Colaboradora”, “Prezada Professora” ou, na versão anglófona sem rodeios, sem género e por vezes até sem nome: “Dear Faculty Member”.

Há ainda a considerar a hesitação que medeia entre o uso do meu primeiro e do meu último nome. A aflição na cara de um sujeito que anseia por ser correto mas não sabe bem se me há de tratar por “Cara Sra Cook” ou “Cara Sra Carla”! O mais comum é um falante misturar atabalhoadamente várias formas de tratamento durante o mesmo discurso e desculpar-se pela sua falta de cortesia – que é tão insultuosa quanto o excesso da mesma.

E que dizer do uso da palavra “você” quando se me dirigem diretamente? Nada me soa tão vulgar como “você já viu isto?” e não consigo conceber onde está o chique da frase tão lisboeta “Pedrinho, você tem de prestar atenção aos seus pais” (tendo o Pedrinho cinco anos). Também me parece quase esquizofrénico o uso do meu nome antecedido por artigo para falar comigo e não de mim, como por ex: “A Carla quer mais chá?” (quem, eu? Ou outra? Ah, eu! Pois…)


Portanto, é difícil explicar a um estrangeiro isto das fórmulas de tratamento. Eu própria estou convencida que neste mundo de confusão onomástica reside a explicação da crise de identidade dos portugueses.