“O Mundo que eu vi” da autoria do navegador Genuíno Madruga foi lançado a 20 de Maio num porto mítico para a navegação oceânica: o Peter Café Sport. Trata-se de um livro que resulta da evocação da sua primeira volta ao mundo iniciada em 2000, mas sobretudo do relato da segunda volta começada em 2007, viagens estas feitas a bordo de um veleiro, talvez profeticamente baptizado “Hemingway”. Obra essencialmente descritiva – para o que muito contribuem as dezenas de fotografias – de um homem pragmático, que aqui regista pormenores de navegação e de percurso, narra histórias de encontros e de vidas, comenta um mundo revelador que o surpreende e se surpreende com ele como acontece em todas as situações em que interagem diferentes culturas. Conjunto de memórias e de experiências de um périplo marítimo, este livro insere-se na chamada Literatura de Viagens, para a qual os portugueses tanto contribuíram desde os tempos idos das Descobertas.
Genuíno Madruga – Este é um projecto que já tem muitos anos. A primeira parte do livro foi escrita ainda à mão e nem pensava em computadores. Escrevia sobre coisas que vivia na pesca, sobre sítios que fui vendo, pessoas que fui conhecendo na época. Estamos a falar dos idos anos 60. Depois, surgiram as duas viagens. E também escrevi para dar resposta às muitas pessoas que me perguntavam “Então, Genuíno, e quando é que fazes um livro?”. Todas estas coisas somadas acabaram por resultar neste livro.
C.C. – A primeira parte do livro é a sua história, tem detalhes da vida do Genuíno, da sua família e do seu sonho. Até nesse sentido, é um livro pessoal e íntimo. Não sentiu receio de se expor demasiado? Afinal, um navegador solitário é, por definição, um homem recatado e ensimesmado.
G.M. – Não, não creio que se dê esse caso. Muitas das coisas que escrevi não são coisas assim tão pessoais quanto isso. Não escrevi nada que não possa ser do conhecimento geral. Haverá outros aspectos que não constam ali… Talvez um dia, pense em escrevê-los, mas para já não. Não sou escritor. O fundamental deste livro parece-me minimamente conseguido: quis deixar um registo das coisas que vi, desde os primeiros tempos em que construí o meu primeiro barco. Este livro é isso mesmo.
C.C. – Há muitos mitos acerca de navegar em solitário. Diz-se que há momentos em que o deserto do mar pode ser difícil. Nessas alturas, um livro ajuda?
G.M. – No meu caso pessoal, posso dizer que, nessas alturas, as companhias que tive foram os livros que tinha a bordo, alguns que fui também adquirindo pelo caminho e outros de amigos, e as minhas músicas… Excepto alguma ave que, de vez em quando, procurasse o Hemingway. De resto, não havia mais nada. O mar, o céu, as estrelas de noite e o sol durante o dia, que, por vezes, escalda imenso… Mais nada. É preciso ter as ideias bem arrumadas para navegar sozinho!
C.C. – Aproveito para perguntar: um homem do mar que escreve um livro de viagens pretende alcançar que tipo de público – outros homens do mar, todo o tipo de gente com sede de aventura, pessoas interessadas em culturas diferentes… Que expectativas tem em termos de leitores?
G.M. – Creio que o livro, escrito por mim que não sou expert nas Letras, é acessível a qualquer um. Não é especialmente dirigido a ninguém. Embora me pareça, e não vejo nisso mal, que muitos dos meus companheiros do mar e da pesca possam efectivamente ter interesse nele e entender muito do que ali escrevi.
C.C. – Há partes muito curiosas no livro. Notei que encontrou açorianos em muitos dos sítios por onde passou. Aliás, a aventura da viagem começa exactamente pelo encontro de um faialense que mora em Cabo Verde. Corrobora a frase “os açorianos estão por todo o lado”?
G.M. – Sim, é mais ou menos verdade! É bom ter em conta que já Joshua Slocum na sua viagem em solitário à volta do mundo em meados do século XIX, passa pela Terra do Fogo e já relata aí um encontro com um açoriano. Passa também pelas Ilhas de Robinson Crusoé no Pacífico e relata um encontro que teve com um açoriano da Ilha de São Miguel, um tal Manuel Carroça que vivia naquela ilha com uma brasileira que tinha para lá levado do Rio de Janeiro. Estamos em 1880, mais ou menos. Esse açoriano era conhecido por “Rei” porque era o único naquelas ilhas que falava inglês. Ou seja, era um indivíduo que saíra dos Açores na altura da emigração baleeira e acabou por chegar àquela ilha perdida no Pacífico.
Na minha viagem, não tive qualquer oportunidade de ir a esta ilha, embora tivesse muita vontade. Passei sempre lá de noite… Aquilo é uma base chilena, portanto não somos autorizados a entrar nem a sair de noite.
Mas encontrei vários. Por exemplo, a família Silva e a família Pereira que vivem na Samoa Ocidental. Da parte da família Silva, soube pelo padre Silva, que o bisavô tinha vindo “das ilhas e que tinha andado numa baleeira”. À partida, seria oriundo daqui dos Açores.
Na África do Sul, tive o prazer de um dia, à tarde, ser visitado pelas duas únicas açorianas que lá vivem: Maria de São João, da Ilha de São Jorge, e Maria Romana, da Ilha Terceira.
Isto são exemplos. Como se sabe, antes da emigração para a América do Norte que começou com a baleação, houve um grande fluxo de emigração açoriana para o Brasil. No Brasil, ainda se podem ver muitos vestígios açorianos. Quando estive no município de Alcântara, no Estado do Maranhão, encontrei um doce chamado “espécies”!... Das duas uma: ou as nossas “espécies” vieram de lá… ou fomos nós que levámos para lá as “espécies”. Portanto, há também muitas marcas açorianas importantes por esse mundo fora.
C.C. – Há momentos em que encontra pessoas que já encontrara aquando da sua primeira viagem. Nota-se que essas experiências de reencontro, algumas com pessoas muito humildes, tiveram uma forte importância humana para si pelo destaque que lhes dá nesta sua obra.
G.M – Obviamente. Por exemplo, refiro um caso que envolve pescadores. A primeira vez que cheguei à Ilha de Rodriguez, cheguei sem mastro devido a ter passado por uma tempestade violenta no Índico. Tive a ajuda de pescadores locais e apanhámos um bambu para improvisar um mastro que me permitisse fazer mais mil e tal milhas. Pescadores e suas mulheres arranjaram velas, limparam, enfim… Trataram das coisas. Quando agora passei pela segunda vez na Ilha de Rodriguez, um deles – o Manuel – assim que soube que eu tinha chegado, veio logo trazer-me de prenda um grande saco de tomates.
Tive muitos momentos marcantes a nível humano nesta viagem… Uma família com quem criei um relacionamento mais próximo nas Ilhas Fiji, gente da África do Sul, outros das Marquesas,… de todo o lado. Também, na primeira viagem, fiz uma palestra para uma escola; na segunda, encontrei alguns dos miúdos e isso foi importante.
C.C. – Pessoalmente, creio que alguns dos momentos mais interessantes do livro estão no que poderíamos designar por “choque de culturas”. Recordo, por exemplo, a aguardente do Pico que deu a provar nas Ilhas Fiji e que tanta confusão causou. No fim de tudo isto, que lhe parece: as diferenças culturais deste mundo são inultrapassáveis?
G.M. – Não, não, cuidado! Todos falamos a mesma língua. Por exemplo, no mar. Quer se trate dos que andam em barcos altamente sofisticados quer se trate dos que andam nas canoas da Polinésia, todos os que andam no mar falam a mesma língua, apesar de falarem diferentes idiomas. Há coisas que todos entendem sem ser necessária muita explicação.
Claro que, nos dias que correm, põem-se situações muito complicadas às pessoas: cada vez há menos peixe - nos Açores e em todo o mundo -, cada vez há maiores dificuldades, cada vez há um maior fosso entre os maiores e os mais pequenos … É uma situação que vai explodir um dia destes, quando as pessoas estiverem demasiado encostadas à parede.
C.C. – O que foi mais difícil: dobrar o Cabo Horn… ou escrever este livro?
G.M. – Ah, são coisas completamente diferentes. Mas se navegar o Hemingway e passar o Cabo Horn, conseguir sair dali para fora, saber do vento, da neblina, do mau tempo, foi difícil… escrever o livro também teve situações complicadíssimas. Teve gritos e situações de vária ordem, até porque eu não estava habituado a escrever. Para além disso, houve vezes em que eu queria escrever uma coisa e a Beatriz entendia que ficava melhor outra. Mas o que importa, no fim de tudo, é que, com bom ou mau tempo, o Cabo Horn passou-se e o livro também se escreveu!
C.C. – Gostaria de transmitir mais alguma coisa acerca deste livro ou de outros projectos futuros?
G.M. – Há sempre projectos; o problema é haver meios para os concretizar.
O livro aí está – as pessoas agora podem ver muito daquilo que passei e, no fundo também, daquilo que sou. Outros tê-lo-iam escrito de outra forma; mas eu fiz uma coisa simples.
A primeira parte trata da minha vida mas não só. Trata também da vida e da faina da pesca naquela época, nos anos 60. Por muito difícil que a vida no mar hoje seja (e é evidente que é e que muitas coisas têm mesmo de tomar outro rumo), essa vida não tem comparação com aquilo que era nesses tempos. Os próprios pescadores não têm nada a ver com aquilo que eram nessa altura. Naquele tempo, a maior parte dos pescadores eram analfabetos. Ser um pescador ou um homem do mar não era um desejo de muita gente; os pais não queriam isso para os filhos. Eu tive muitas dificuldades para andar no mar, porque isso era considerado uma desonra para a família e uma condenação à miséria, talvez até à fome. Isto que acontecia naquela altura não tem rigorosamente nada a ver com o que é a pesca hoje em dia. Há dificuldades, sim. Mas temos outras condições e formas de ultrapassar as coisas más.
Considero que a pesca e, acima de tudo, o mar são muito importantes para a economia e para o desenvolvimento destas ilhas. Vivemos numa situação de privilégio: dum lado, a Europa, do outro, as Américas do Norte e do Sul – isto não está a ser devidamente explorado. Temos uma água limpa. É certo que temos maus invernos, mas os verões são bons. E temos paz e segurança numa área enorme de mar que tem de ser tratada pelos açorianos e não por gente de fora. Se os açorianos não o fizerem, vão vir pessoas que o farão…