... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 24, 2010

Dar



“Dar” é um verbo difícil de conjugar. Ainda hoje me falaram numa criança que não consegue conjugar bem o pretérito perfeito do indicativo e diz “eu di” em vez de “eu dei”. Mas claro que não é isto a que eu me refiro quando falo na difícil conjugação desta palavra. Todos os nossos problemas fossem linguísticos quando falamos de “dar”.


Confesso que fico um pouco irritada com aquilo a que se pode chamar “caridadezinha”. No Natal, ela atinge o seu auge. Há pessoas que pagam salários absurdamente miseráveis à empregada que lhes limpa a sanita lá de casa, isto para além de a tratarem como se ela fosse um verme que se passeia numa casa de família onde todos são rosas de colecção; essas mesmas pessoas gostam imenso de fazer donativos espectaculares para causas sociais que se vejam, isto é, que sejam notícia, que ponham o seu nome em destaque no jornal da terra. Dizem-me que são pessoas generosas. Talvez a palavra “generosidade” agora tenha outro significado que não seja “dar livremente sem esperar algo em troca” e eu não tenha dado por isso… Tenho de me actualizar.


Do mesmo modo, incomodam-me as pessoas que se aproveitam das desgraças alheias (sejam elas individuais como uma orfandade, ou colectivas como um sismo) para exibirem ao mundo a sua pretensa largueza de coração. A verdadeira generosidade é recatada. Não precisa de testemunhas. Prefere até não as ter, por respeito para com quem recebe, pois quem recebe está – quantas vezes! – envergonhado por precisar de receber.


Os pretensos generosos são, afinal, narcisistas em busca de um bocadinho de estrelato, de palmas e de elogios. Querem receber qualquer coisinha. E não é pouco.


Também há quem sofra de um mal oposto. São os que dão demais. Entregam-se todos ao mundo. Este género é bem mais raro, claro. Constitui outro tipo de problema, não para o mundo, mas para os próprios, pois dando tanto – do seu tempo, das suas capacidades, das suas vidas – estes seres acabam por constatar que pouco tiraram para si. Vivem sempre em função do próximo, numa perpétua atitude de imolação. Como tal, também são infelizes.


“Dar” também pode ser um verbo perigoso. A este respeito, há uma lenda dos Andes, que o grande  H.G.Wells adaptou para conto e chamou-lhe “The Country of the Blind”. Num vale perdido e muito fundo, quase sem luz, de geração em geração acabou por se desenvolver uma tribo de homens inteiramente cega. E, na verdade, eles não necessitavam de ver. Com o passar do tempo, esqueceram que existiam não–cegos, pois os seus próprios corpos eram adaptados à cegueira, com órbitas fundas e ouvidos apurados. Certo alpinista desastrado caiu nesta terra perdida, sobrevivendo da monumental queda por milagre. Ao perceber que estava numa terra de cegos, ficou aterrado… mas também fascinado. Quantas coisas ele podia ensinar àquela gente! Como seria bom fazê-los descobrir tanta coisa que até aí lhes estava vedada! Guiá-los pela mão para as maravilhas a que só ele, alpinista, tinha acesso. Começou a falar-lhes do que via e de como sentia as coisas, imbuído de um sentimento generoso (e também, porque não confessá-lo?, da ideia de que ele era o único com olhos numa terra de cegos…). Não foi preciso muito tempo para que todos o julgassem louco e o encarcerassem. Como o alpinista continuava a falar e a tentar dar-lhes um pouco do seu mundo, decidiram que a sua loucura (pois que era certo que de loucura se tratava esta sua diferença teimosa dos restantes) era devida às protuberâncias que ele tinha nos globos oculares – coisa que eles não tinham – e resolveram que o pobre alpinista necessitava de ser curado para ficar como todos eles. Decidiram ser magnânimos e tirar-lhe os olhos. Foi então que o alpinista percebeu que “não se pode lutar alegremente com pessoas cuja base mental é diferente da nossa” e que nem sempre o velho provérbio sobre o homem com um olho ser rei é verdadeiro – pelo menos, não o é perante uma multidão de gente que nunca viu e se recusa a ver. O alpinista suicidou-se, vendo a bela paisagem.


“Dar” é complicado. Mas continua a ser a única forma de viver para alguém e de viver connosco. Tem é um equilíbrio muito frágil, todos os dias do Ano, quer seja ou não Natal. 


Thursday, December 23, 2010

Nós e Laços



“Natal é a festa da família”, toda a gente sabe. Mas “família”, hoje em dia, é um vocábulo que não significa o mesmo que significava antigamente e negá-lo seria mais ou menos como dizer que o Menino Jesus é mais conhecido que o Pai Natal. O que faz com que tantas pessoas suspirem por estar sozinhas no Natal e outras tantas suspirem por ter de aturar (literalmente) os familiares que, por azar genético, lhes couberam em sorte, durante esta quadra? Como não sou antropóloga – e logo não sei o que, de modo transversal, culturalmente se entende por família hoje em dia – lembrei-me de ir espreitar os últimos estudos feitos sobre a dita. Sem surpresa, verifica-se que hoje andar na escola e ser filho de pais divorciados ou de famílias monoparentais não é incomum; incomum é aquele miúdo cujos pais ainda vivem juntos (note-se a utilização do advérbio “ainda”, que prevê uma fatalidade não muito distante). Cada vez mais usual, é aquele menino que tem várias famílias: a da mãe, a do padrasto, a do pai, a da madrasta, a do ex-namorado da mãe de quem ficou amigo (veja-se a acumulação de avós que vai aqui… e de prendas natalícias!).


Qual é a única coisa que vale a pena investigar aqui? Precisamente: porque é que, mesmo sabendo que a família - enquanto instituição - é aquilo que podemos chamar uma empresa falhada, porque motivo se casam hoje as pessoas? Tal como eu, também uma equipa do Pew Research Center (em Washington) colocou a mesma questão.


Aparentemente, segundo o PRC, até há algumas gerações atrás (o estudo incide apenas sobre os últimos cinquenta anos), as mulheres casavam para terem dinheiro e os homens casavam por razões sexuais. Hoje em dia, visto que a esmagadora maioria das mulheres trabalha e tem um estatuto económico independente dos homens, não precisa de casar para sobreviver; do mesmo modo, actualmente, dada a liberação sexual, ninguém espera pelo casamento para ter relações sexuais, portanto os homens não precisam de casar para garantir esse bónus. Aliás, acho esta conclusão do estudo do PRC muito curiosa: se os homens casavam pelo sexo e as mulheres por dinheiro, o que era o casamento senão a prostituição legalizada?


Mas voltemo-nos para os dias de hoje, para não ofendermos os nossos familiares mais velhos. As pessoas, actualmente, não acreditam no casamento e, o que é mais, acham que enquanto modo de vida está condenado à extinção. Mas casam. É fácil de perceber a primeira parte da premissa. São pessoas que já conhecem os casamentos desfeitos dos pais (não raro os segundos casamentos desfeitos de um lado e doutro), sendo que a maior parte também já se “descasou”. Porque raio querem voltar a dar o nó? Diz este estudo que o casamento é a medalha de mérito da nossa sociedade, a única forma de se mostrar que se é bem sucedido. Por outras palavras, um solitário é seguramente visto como um outsider e alguém que falhou. Pode ter muitos amigos e ter a mamã e cem namoradas (podem construir a frase no feminino que dá igual), mas não teve quem lhe quisesse fazer canja de galinha quando estivesse doente. Looser. Ou seja, paradoxalmente, os não-casados não são casáveis. Não são atraentes para o sexo oposto, pelo menos a longo termo. E eles sabem disso (ora não!).


Com quem (alguns cínicos dizem contra quem…) casam as pessoas? Isso também mudou. Até há pouco tempo, os homens casavam sempre com mulheres que sentissem ser intelectualmente inferiores ou que ocupassem uma posição social menos visível. Ex: Médicos ligavam-se a enfermeiras, executivos a secretárias, comandantes a hospedeiras. Hoje, as pessoas tendem a casar dentro da mesma faixa (por assim dizer), por acharem que assim há mais complementaridade na união. Também é interessante que os segundos casamentos optem mais por este modelo do que os primeiros, nos quais se verifica ainda uma grande necessidade de domínio – inclusivamente no aspecto social - de um parceiro sobre o outro. Eu diria que nas uniões seguintes também, só que a necessidade de domínio tem vergonha de se exteriorizar porque não é politicamente correcta – afinal, estamos na era da igualdade!


Claro que estou a deixar de lado questões importantes como a idade. Antes, o casamento era a entrada na idade adulta. Agora, as pessoas casam cada vez mais tarde e com um grau cada vez maior de educação. Neste drama etário entram duas questões: primeiro os filhos, depois as finanças (again!). Embora não considerem ter filhos uma razão para casar, as pessoas colocam “ser bom pai/boa mãe” como um dos primeiros items para continuar com o parceiro. Mas após o/a deixarem, consideram os próprios filhos “uma pressão” – eufemismo para “fardo” - na sua (nova) vida: ou seja, é um nó que não conseguem desembaraçar e para o qual ainda se vêem socialmente pressionados a dispensar tempo e dinheiro (os mais simpáticos ou hipócritas até dispensam uma ou outra conversa para além do “tens tido boas notas?” e “estás bem de saúde?”).


Em relação às finanças, a crise parece motivar casamentos: muitos jovens adultos consideram não ter dinheiro para fazer vida sozinhos, mas a junção de duas vidas já permite pagar uma renda e livrar-se dos pais. Mecânico e pouco romântico? É o mundo que temos.


A propósito, o motivo pelo qual os casais mais discutem são “outros familiares”, sejam filhos ou pais. Se calhar, o melhor casamento foi mesmo o de Adão e Eva, que consta só terem começado a dar-se mal quando apareceu um terceiro elemento, pois enquanto estavam só os dois viviam mesmo no Paraíso.


Há notas importantes a retirar deste estudo. Primeiro que as pessoas independentes – num sentido lato, tanto material como emocional, leia-se: os que não têm necessidade de andar na sombra de outro - têm muita dificuldade em encontrar parceiros e formar relações estáveis, sendo ironicamente as que dão melhores duplas, por serem mais confiantes e logo mais capazes de dar de si. Segundo, que a nossa sociedade deu direitos legais à união de facto… mas culturalmente não a respeita como um compromisso, nem sequer em termos de fidelidade: “Temos novas regras de intimidade, mas não sabemos bem quais são. Não se respeita uma coisa que não se aprendeu” diz o estudo do PRC “As pessoas não têm expectativas quanto à união de facto e por isso se portam como solteiros, coabitando como casados.” Complicado de entender? Imaginem se fossem vocês as criancinhas dos ditos.


Afinal, porque se casam as pessoas? Como diz um amigo: “Para se poderem divorciar com o mínimo de impacto social a seguir. Tem mais estilo do que sair de casa apenas!”

***

Leiam mais em: Pewsocialtrends.org/family: The Decline of Marriage and Rise of New Families. E não se esqueçam de comprar prendas para os irmãos dos vossos irmãos que não são vossos irmãos mas que também fazem parte da vossa família. Complicado? Muito comum até. Se vocês não têm um, já estão na prateleira dos antiquados! Vamos lá a ver se resolvem esse assunto em 2011.


Nota: Este artigo teve uma versão bem mais condensada que foi publicada dez dias antes no Açoriano Oriental e que pode ser consultada aquhttp://www.acorianooriental.pt/opinioes/readOpiniao/211698/

Tuesday, December 7, 2010

Vitorino Nemésio e a sua Ilha Natal: a Obra - Espelho do Ficcionista

Intro: O seguinte texto foi feito para ser oralmente apresentado (naturalmente de forma completamente diversa, como todas as apresentações em conferências e palestras) no V Encontro Cultural Açoriano, promovido pela Casa dos Açores do Rio de Janeiro.

Posteriormente, o RTP-Comunidades mostrou interesse na publicação do texto proferido na palestra, juntando algumas informações e fotos da mesma.
Ver aqui:
http://ww1.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?k=Vitorino-Nemesio-e-a-sua-Ilha-Natal-A-Obra-%96-Espelho-do-Ficcionista-CARLA-COOK.rtp&post=29252







Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Casa dos Açores por me ter convidado a vir hoje aqui falar um pouco sobre Vitorino Nemésio, vivendo convosco este encontro Cultural Açoriano no qual para mim é uma honra participar e que me dá a oportunidade de partilhar de mim, aprender, reencontrar conhecidos mas sobretudo conhecer novos amigos .


Queria sublinhar desde já que quando digo que vou falar “um pouco” de Nemésio não utilizo um eufemismo, porque Vitorino Nemésio é um mundo: David Mourão Ferreira (grande conhecedor de Nemésio na vida e na obra, a quem foram confiados os seus escritos após a sua morte) dizia dele: “nasceu com um talento multiforme que daria à vontade para mais dez autores e todos eles de primeira água: dois ou três poetas, dois ou três ficcionistas, dois críticos, um extarordinário filósofo da cultura, um cronista mulifacetado e ainda um biógrafo e um historiador” … A par de tudo isto, Nemésio viveu também com pluralidade, de locais e de experiências, pelo que é impossível abarcar tudo isto em 45 minutos. Mas já me debruçarei sobre este assunto.

Antes, porém, gostava de agradecer a simpatia e carinho extraordinários com que tenho sido recebida aqui e que é dificil expressar em palavras. Tenho-os sentido como uma emoção inesperada e extraordinária.

Igualmente gostava de partilhar convosco que é a primeira vez que estou a pisar o chão do Brasil. Isso é para mim uma emoção grande, porque apesar de já ter trabalhado e estudado noutros países, sendo imigrante também, nunca tinha estado aqui, mas para mim o Brasil é muito importante por razões pessoais, sendo uma delas o facto de ter um filho pequeno que está a aprender a falar e tem uma ama brasileira – pois hoje, ao contrário de antigamente, são os brasileiros que emigram para os Açores e não os açorianos que emigram para o Brasil; grosso modo, o ciclo inverteu-se. Ironicamente, eu que sou professora de língua portuguesa (variante europeia) para estrangeiros, chego a casa e tenho um filho que fala brasileiro. Estou a tentar perceber, dentro de mim, se isso é engraçado ou se significa que falhei no meu trabalho e como mãe!

Falando agora de Vitorino Nemésio.

Nemésio disse que a biografia era uma velha ciência, mas uma ciência que raro se deu por tal (escreveu esta frase num livro que fez aqui no Brasil, curiosamente, intitulado “Conhecimento de Poesia”). Quer isto dizer que a biografia não explica mas ajuda. A verdade é que todo o escritor se reflecte na obra de ficção que produz e que esta revela sobre ele muito mais do que ele suspeita ou talvez até desejasse.

O próprio Nemésio admitiu que a ficção libertava muito mais quem a fingia (ou seja, quem a escrevia) do que quem a lia. Ao lermos uma obra de ficção, estamos pois em presença de um momento catártico do autor, de um instante em que ele se revela, faz limpeza a si próprio (com perdão do vocabulário). Assim, podemos dizer que escrever é quase uma forma barata de ir ao psicólogo!

Porém, em Vitorino Nemésio não é muito fácil perceber esta evidência dado que Nemésio se refreia quando faz esta transposição para a escrita, escrevendo com muitos enigmas, intertextualidades, codificações que devem ser desvendadadas por quem lê. É o que ele denomina “contenção expressiva”.



A infância e a adolescência de Nemésio foram momentos cruciais da sua vida. Certo é que foram momentos cruciais para todos nós, pois que são os momentos que moldam a nossa personalidade e que fazem a diferença nas nossas atitudes posteriores. Se necessário fosse dar exemplos justificadores desta importância, bastaria recordar que um ser humano que sofre de Alzheimer, recorda até mais tarde os momentos da sua infância, esquecendo primeiro os outros períodos da vida.

Se para todos nós, esta importância é evidente, para um autor, estes períodos da vida assumem uma relevância acrescida - são um reservatório para a criação literária ficcional de onde ele retira a matéria-prima para as suas obras. A este respeito, Nemésio diz-nos: ¬¬¬¬¬

“Todo o escritor foi um espião disfarçado na infância e na adolescência. O lugar de nascimento, o da criação sobretudo determina no escritor o campo da experiência.” A experiência posterior é inevitavelmente modelada pelos primeiros anos da nossa vida - no caso de Vitorino Nemésio, nascido na Praia da Vitória (19-12-1901) e estudante em Angra do Heroísmo, os anos passados na ilha Terceira.

A proposito destes anos, Nemésio escreveu um romance denominado Varanda de Pilatos (1927), até hoje um romance esquecido, em grade parte eclipsado por essa obra prima da Literatura Portuguesa que é MauTempo no Canal. ¬¬¬

Visto que o tema deste V Encontro Cultural Açoriano é “Vitorino Nemésio e a Praia da Vitória”, decidi detalhar-me sobre este romance, o único que foca a ilha Terceira, um romance lamentavelmente pouco conhecido do público e não muito estudado pela Academia.

Varanda de Pilatos tem a ilha natal de Nemésio como pano de fundo, a ilha arquetípica e matriarcal, que sempre foi para ele o eixo do mundo.

Apesar das viagens de Nemésio, da sua experiência como professor aqui no Brasil e em Montpellier, viagens que também estão retratadas em vários livros ou conjuntos de poemas –e.g.: O Segredo de Ouro Preto; Caatinga e Terra Caída; Andamento Holandês; La Voyelle Promise – sentimos sempre que é a presença da ilha que ele procura em tudo … e que é à ilha que Nemésio retorna sempre, mesmo que não corporalmente, em ideal, até quando, por exemplo, se encanta aqui na Bahia com o culto do Divino.

Este romance, o primeiro e mais juvenil de Nemésio, acabou por ser um romance de que o próprio dizia não gostar muito, não por ter sido uma das suas verdes obras (como poderiamos pensar) mas sim porque imediatamente percebeu que tinha revelado nele muito da sua própria experiência e vida: “O que aí fica psicologicamente é a minha manta de retalhos” (in Dedicatória).

Na Dedicatória da obra (Nemésio dedica o livro à sua mulher, Gabriela Monjardino), é-nos explicado que Nemésio desejava juntar neste livro “a infância e a adolescência, o que há de transitivo à volta dos 15 anos, os sinais visíveis do ninho que se deixou de fresco dum lado; do outro, a primeira rajada de vida, um pouco de amor, a confusão que provocam sempre num jovem os primeiros passos decisivos”.

O protagonista é Venâncio, pura personificação de Nemésio.

No dia da partida de Venâncio de Vilório (i.e. da Praia da Vitória) para Angra, encontramos um quadro familiar em que o pai é atencioso em extremo e é a mãe quem lhe prepara um saco de livros e de doces, enquanto chora. Venâncio chora também, com muita dificuldade em abandonar esta família (à qual acresce grande número de tias), e com ela o mundo infantil que fica na terra onde passou os primeiros anos. Crescer é penoso para o jovenzinho de treze anos, mas a família também não lhe torna fácil o momento de emancipação.

Mas é chegada a adolescência de Venâncio que o obriga a um “corte umbilical” com a estrutura familiar e a um alargamento de relações pessoais e sociais, que lhe ampliam a visão do mundo. Não é por acaso que a adolescência é vista como um segundo nascimento pelos varios psicólogos que se dedicaram a estudá-la. É, todavia, um processo difícil para esta personagem, porque uma parte do seu todo afectivo ainda reside na infância. A sua socialização da afectividade está incompleta e o seu estatuto psico-afectivo - no momento em que deixa Vilório – encontra-se na posição hiper-delicada do adolescente frágil, que se prepara para ingressar num internato numa cidade, a seus olhos, grande.

Sabemos hoje, pelas Notas Autobiográficas de Vitorino Nemésio, que a mudança da escola primária que frequentava na Praia para o Liceu de Angra lhe foi particularmente dificil, sobretudo conjugada com a mudança do conforto da casa dos pais para a vida mais autónoma. Ele, que nunca fora um aluno brilhante (que se aborrecia na escola com a imposição do ditado, ironicamente indo fixar-se na escrita mais tarde), não conseguiu ambientar-se à mudança de cidade, apesar de estar na mesma ilha, e regressou à Praia ainda nesse ano. Só no ano seguinte voltou ao Liceu de Angra e ficou hospedado então em casa de uma tia a quem atribuía um papel muito importante na sua vida: a tia-avó Inácia, denominada Perpétua nesta obra Varanda de Pilatos - é na casa dela que Venâncio se instala quando vai viver para Angra.

Vejamos o que nos diz Nemésio acerca desses tempos: “Filho único, mimado por tias e primas sem número, não me adaptei ao pensionato angrense em que meu pai me meteu, apesar do carinho com que lá era tratado. Eu, criado numa vila pacata, via-me de repente instalado num casarão citadino, em plena Praça Velha, com um quartel de bombeiros por baixo e uma esquadra de polícia em frente.”

Do(s) mesmo(s) mal(es) se queixou o protagonista Venâncio que, pela pena de Nemésio, levou vida idêntica. Filho único de uma família onde imperavam mulheres com alguma possessividade e dominância, foi-lhe mais difícil a passagem à autonomia e a uma nova inserção social, embora a sua maturidade intelectual seja, pela mesma razão, mais precoce do ponto de vista cognitivo e racional, devido ao convívio constante com adultos em detrimento de uma companhia infantil. Para além disso, porque não possui o microsocial da fratria, só lhe foi proporcionado, até ao ingresso no internato em Angra, um confronto com os pais (e com as tias e as primas mais velhas; note-se que também não há primos dentro da mesma faixa etária e nem, curiosamente, do mesmo sexo). Deduz-se que o internato será um golpe duplamente chocante, para este Venâncio, que chora, no dia da partida, como se fosse “para a América”.

A relação de Venâncio com a tia Perpétua é, por regra, conflituosa, ainda que este conflito seja mais ou menos encoberto, porque o próprio adolescente se furta a uma oposição frontal e aberta. Naturalmente que enquanto ser em transição para a idade adulta, o adolescente passa, necessariamente, por uma fase natural de oposição à família. A revolta contra a família é símbolo de revolta contra a sociedade adulta, mas é uma revolta puramente simbólica, visto que a família nunca deixa de representar o laço com a infância que o jovem se recusa a romper completamente. Se o estádio infantil é para ele um nível a ultrapassar, é também uma ponte para o futuro, ou seja, a família acaba por constituir um problema: é o refúgio e o terreno natural e é, por outro lado, as amarras que devem ser cortadas para prosseguir com o crescimento individual a todos os níveis.

Notamos este duplo sentimento em Venâncio, em casa da tia Perpétua: por um lado, a necessidade fremente de independência, que se manifesta, por exemplo, na vontade de estabelecer o seu próprio horário, mesmo correndo o risco de desobediência; por outro, o apego às origens, simbolizado no nome de família. Em Varanda de Pilatos, há notáveis páginas de erudição histórica, em que a tia de Venâncio lhe dá a conhecer a árvore genealógica, que o jovem tanto preza. Isto mesmo se coaduna com o gosto que Vitorino Nemésio tinha sempre em frisar que era “um açoriano de treze gerações!”

Pouco a pouco, a situação de corte do cordão umbilical que, no início da obra, se nos afigurava tão dolorosa, é, afinal, facilmente ultrapassada pelo adolescente Venâncio. A cidade causa-lhe “uma forte impressão”, aparecendo-lhe “como um belo presépio enorme”, com “casas maiores” (do que as da Praia) e “grandes ruas limpas”. Ao terminar o primeiro capítulo, Venâncio já nem pensa em retornar à modesta terra materna…

A Nemésio, terá sido sido muito difícil a condensação deste período da vida em Varanda de Pilatos, a julgar pelas suas Notas Biográficas: “Do tempo do liceu, que às vezes me parece amargo, o difícil é julgar e resumir, cobrindo-me quase toda a adolescência.”

Porquê este adjectivo “amargo”? Sabemos que a tónica permanente do humor adolescente é a instabilidade. É notável que este período tão falho de equilíbrio na vida deixe, paradoxalmente, saudades a todos. Veja-se o que diz Bastos, o amigo mais velho de Venâncio, que o introduz no mundo da anarquia revolucionária: “Estás na idade melhor…”

Todavia, o adolescente, ele próprio, só tem a impressão de avançar na vida sem direcção nem certezas e só mais tarde olhará para esta primeira juventude como “a idade melhor”. Nesta fase de afirmação da personalidade e procura de novos modelos, precisa de projectar a sua necessidade de admirar alguém e a sua nostalgia de perfeição num amigo mais velho. Este amigo, comum na adolescência, é, para Venâncio, o Bastos, a quem imita e atribui qualidades dignas de herói.

O revolucionário Bastos teve como protótipo uma figura real - o amigo de Nemésio, Jaime Brasil, que ele conheceu aos catorze anos, a mesma idade com que, na obra, Venâncio conhece Bastos. Jaime Brasil teve influência no precoce início da vida literária de Nemésio no jornal Eco Académico e, mais tarde, já em Lisboa - para onde irão ambos - será o amigo quem o ajuda a vencer as dificuldades económicas que o assaltam na época em que Nemésio se dedica ao jornalismo. Este amigo mais velho guiava Nemésio na aventura de descoberta da literatura, “inoculando no adolescente ainda piedoso que eu era o vírus da indiferença e algumas estirpes anarcóides”(Vitorino Nemésio, “Um repórter na rua da Atalaia”, A Luta, 19.11.1976) e tornando-se, deste modo, seu “mentor de iniciação literária e agnóstica.” Por isso, Nemésio lhe dedicou o seu livro La Voyelle Promise, com a significativa e singela mensagem:

“A Jaime Brasil, pelo muito que lhe devo da minha formação na adolescência.”

Em Varanda de Pilatos, Bastos introduz Venâncio num círculo revolucionário do qual ele próprio faz parte. Ora, todo o adolescente deseja mudar a sociedade; porém não é um verdadeiro revolucionário, pois não tem um esquema concreto de reforma social, mas apenas fantasias messiânicas ingénuas de salvação do mundo. Por isso, Bastos, anarquista convicto, se exaspera variadas vezes com a falta de experiência do “menino de mama que veio de Vilório”(p. 95): “Estás numa idade transitiva. Há na tua pessoa, por assim dizer, uma camada de dentro que quer romper a de fora. E que tens tu nesse teu ar de Santantoninho da Grota? Tabaco no umbigo; os cueiros que fedem ainda; pronto! Pois tudo isso vai ser lançado às urtigas por um pimpão que aí está dentro. Esse pimpão é o homem[…]não passas, por ora, de um trampolim onde pulam desejos pueris e de adulto. Falta-te o eu. Em suma, falta-te o nervo.” (V.P., p. 96)

Para além de ser este o processo natural de desenvolvimento do adolescente, Bastos depara-se – para azar do seu grupo de revolucionários anárquicos laicos “Os Vingadores” – com um adolescente como Venâncio: idealista em pleno, evadindo-se frequentemente para quimeras e utopias – e daí a frequência de versos e escritos que tão bem cabe no seu temperamento artístico… e no do adolescente que foi Nemésio (lembremos que Nemésio, aos 15 anos publicou Canto Matinal).

Qual acaba por ser o verdadeiro papel de Venâncio no grupo de revoltosos? O de um indeciso, sem grande força de vontade, que recusa até um assalto à padaria por achar tratar-se de um “meio violento”. Venâncio é, pois, apesar dos seus devaneios e vontades, um adolescente de personalidade marcadamente passiva característica por excelência de todas as outras personificações nemesianas presentes noutras obras. (Veja-se João Garcia, de Mau Tempo no Canal, cujo feitio “paralítico” e indeciso o impede de ir visitar a mãe e de se aproximar definitivamente de Margarida.)

Este modus operandi, que se traduz num carácter “frouxo”, em que falta ardência, coragem, numa palavra, acção, acaba por ser a marca típica do anti-herói nemesiano. Tudo isto pode sumular-se por um relativo fracasso da afirmação do “eu”.

Quando se descobre que Bastos é o autor da revolução, Venâncio nem tão pouco é capaz de defender o amigo; amedronta-se cobardemente, não sem antes se debater na sua dialéctica de indeciso - pois, como ele próprio afirma, é a perspectiva do ter de optar irrevogavelmente que o martiriza e perturba:

“A minha noção de solidariedade e um vago horror a tomar uma atitude franca engalfinharam-se então, como dois garotos bulhentos, rua do Frango acima. Devia manifestar-me ou não publicamente[…]?Aí, na ponte pênsil, entre os dois caminhos, é que engatava o busílis. Mas a perspectiva de a trocar por um deles horrorizava-me quase. O bom, o ideal, seria continuar na irresolução, de bruços, vendo as duas paisagens…”

É esta situação de indecisão, de verdadeira paralisia de carácter, que leva Venâncio a encolher os ombros e a optar por uma solução “cobardemente intermédia”: visitar o amigo no Hospital, falar-lhe como camarada mas negar qualquer implicação revolucionária caso alguém lho pergunte. Tal opção constitui o âmago definidor das opções futuras de Venâncio, e é tanto mais importante quanto Nemésio nos chama a atenção para ela, através do título da própria obra: Varanda de Pilatos – a varanda de onde Pilatos, procurador romano, “lavou as mãos” da crucificação de Cristo (judeu que, segundo as leis romanas não tinha cometido quaisquer crimes) mas de onde também declarou não se opor ao seu castigo; simplesmente, o chicotearia e o deixaria às mãos justiceiras do seu próprio povo.

Deixando agora de lado esta perspectiva tão pouca elogiosa do carácter de Venâncio – da qual Nemésio tinha plena consciência e para a qual chamou intensamente a atenção na Dedicatória da obra, chamando-lhe “joguete que passa como uma enguia por entre todas as malhas da teia” – e voltemo-nos para o idealismo romântico: a acentuada tendência para a evasão física e espiritual (já espelhada nos poemas ingénuos de Venâncio sobre o amor) acaba por o conduzir a uma concepção distorcida da entidade feminina, podendo-se mesmo afirmar a uma mitificação da mesma. Disto mesmo é exemplo a relação de Venâncio com a sua namorada Elisa.

Venâncio sonha com uma Elisa que pouco ou nada tem a ver com a Elisa real, achando-a “muito terna e meiga”, nunca sendo capaz de a arrancar do seu “pedestal pueril”, mesmo quando ela lhe confessa abertamente as suas “infidelidades”. Ele mesmo diz ao leitor (pois que todo o romance se desenrola em primeira pessoa) sentir por Elisa “o alto sentimento que perfumava os cavaleiros, vindo de meigas donas”. (V.P., p.73). Embora saibamos que a imaginação e a idealização têm um papel de vulto a desempenhar nos amores adolescentes, o sentimento parece-nos excessivamente Romântico.

Devido a este mitificar de um ser que logo passa a assumir contornos puros e mesmo traços virginais inquebrantáveis, Venâncio tem de se dividir entre este amor casto por Elisa (que não permite, na sua noção cavalheiresca e ideal, contacto físico) e o seu erotismo nascente de homem a despontar. Venâncio opta por concentrar todo o seu erotismo em Fernanda, uma rapariga consideravelmente mais velha do que ele. Esta bipolaridade não é rara, precisamente em casos de mitificação do amor, em que a atracção sexual, não podendo ter lugar ali, concentra-se num elemento que pareça ser mais forte na perspeciva adolescente, no caso em alguém mais velho e, portanto, com maior domínio:

“Que desejo – pergunto hoje a mim mesmo - me despertava essa donzela então? Ela era uma senhora, talvez com mais de vinte anos; eu era um garoto com pouco mais de treze.” (V.P., p.43).

A personagem Fernanda Cabanas, tão desejada pelo adolescente do romance, é, mais uma vez, decalcada de uma figura que Nemésio conheceu na vida real: “uma moça de vinte anos, visita da casa [das tias]” (Vitorino Nemésio, Notas Autobiográficas), de quem ainda guardava recordações, não só abstractas como materiais, em 1971 quando escreve a David Mourão-Ferreira sobre as lembranças que estiveram na base de Varanda de Pilatos: “minha mãe foi da Praia a Angra às festas a casa da tia Inácia, [..]a Tia (esquece-me o deguisement) da Varanda de Pilatos (o romance não presta mas a recordação é boa); ainda vive em Lisboa, mais velha do que eu uns dez anos, quem copiei ou encarnei em Fernanda, e eu guardo na carteira uma carta de jogar/miniatura com naipes de flores que ela me deu”.

Atentemos na importância que teve na vida deste rapaz liceal esta musa mais velha – poucos anos antes de falecer, já idoso, Nemésio guardava ainda na carteira uma cartinha de jogar que ela lhe ofertara, provavelmente sem segundas intenções!...

Comuns na adolescência são estes amores secretos (“o adolescente ama o segredo” diz-nos Maurice Debesse) e romanceados por alguém de idade superior à sua, sendo que este amor corresponde também à procura do ideal. A introspecção, a tendência para uma atitude reflexiva como expressão da consciência individual acentua-se de modo particular neste período da vida, especialmente no adolescente intelectual, que acabará por recorrer ao seu refúgio interior sempre que se desiludir com a realidade crua. Deste modo, cria-se um distanciamento entre a vivência real e a idealizada, que nasceu do romanesco fabulado pelo mundo interior.

Estes amores que vivem apenas na mente – mas que não podemos denominar platónicos, pois que pressupõem estímulos físicos fortes – são, também, alimentados pela excitação da dificuldade, pela necessidade do adolescente se ultrapassar, pelo próprio fascínio do impossível; tudo isto enfim, condensado numa mulher que é, à vista do jovem, madura.

A admiração ilimitada por Fernanda Cabanas constitui, segundo José Martins Garcia (um dos maiores estudiosos de Vitorino Nemésio, falecido há poucos anos), um dos “pecados” de Venâncio – recordemos que os dois pecados que o jovem comete são, no entender deste estudioso e primeiro biógrafo nemesiano, “açorianidade e erotismo”.

A açorianidade do jovem está patente na sua própria mentalidade e condição, essa condição cujos traços principais se podem resumir em “solidão, cárcere, infinito e fuga” (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, à Luz do Verbo): solidão na ilha, vendo-a como prisão, mar como infinito e fuga da ilha… o mar é a ideia que leva à ansia de partida e é o mar que o leva a partir no fim do romance rumo a Lisboa. Uma partida que já se adivinhava pois que desde sempre espreitara o Garajau, que “insinuava [nele] a sugestão da distância e o amor à voz dos ventos” (V.P., p. 119). De resto, Venâncio “adora[…]os navios”, tal como Nemésio. Atentemos no seguinte poema nemesiano a esse respeito:





“Quando eu era pequeno, vinha o navio de sal,

era um acontecimento!

E meu tio António Machado ia sempre ao areal,

Com seu óculo de alcance desencanudado

E, como trazia o sal, que é o sabor das panelas,

Era esperado como se fosse um ausente.”

(Vitorio Nemésio, O Bicho Harmonioso)

Esta imagem do navio, como meio de sobrevivência da própria comunidade ilhoa, paralelamente como modo de apartamento da ilha (mas também de regresso possível), como forma de substancialização do “sonho e destino islenhos” ou seja, a fatalidade da emigração), é uma constante em vários poemas de Nemésio.

O fascínio pelos navios é a vontade encapuçada de partir, de cortar as “amarras que prendem o açoriano ao cárcere ilhéu” (Margarida Maia Gouveia, A Viagem em Vitorino Nemésio), à circularidade da insula mater, quebrada apenas pelo mar, mar que depressa leva o ilhéu a prefigurar o mundo que se encontra do outro lado.

Em Varanda de Pilatos, é Tibério, o pai de Venâncio, quem parte primeiro para a capital, deixando uma porta aberta para que o adolescente o siga. Diz-nos Venâncio sobre a fuga do pai:

“Meu pai era um forçado entre simplórios e medíocres. Nascera sob um signo que não tinha ali cumprimento ou, se o tinha, precisava de meios necessariamente insensatos” (V.P.,p.116) . Soberanamente dotado para a música e melómano declarado, mas por má fortuna nascido numa vila onde só lhe resta dirigir a tuna, Tibério vive amargurado e em constante renúncia à sua condição interior, assobiando árias, num “não- viver quietista”, do qual o filho compartilha o sentimento profundo: “Eu não vivia, meu pai não vivia: adiávamos de instante para instante a ocasião de renascer”(V.P. ,p. 126).

Esta é mais uma experiência certamente decalcada da vida de Vitorino Nemésio, pois é certo que seu pai empreendeu uma fuga para a capital quando Nemésio contava oito anos de idade. Sobre este facto (marcante dados os seus poucos anos e a admiração incondicional e afecto profundo que o ligavam à figura paterna), o autor escreveu em “Retrato do pai”: “ O desfecho dessa crise de 1909 foi uma espécie de fuga de meu pai para Lisboa. Fechou-se uma tarde comigo, lá para o fim da casa(...) e, completamente transtornado, passando facilmente do berro desabrido à lágrima e aos mimos, ensinou-me em duas horas um stabat mater quase lúgubre. Nunca mais me esqueceu! […] eu a tremer de medo e ao mesmo tempo conquistado por aquele encanto dramático das frases latinas, a música muito triste, meu pai todo transtornado cobrindo-me alternadamente de berros e de beijos. Era a sua despedida. Nem que tivesse a consciência de me sagrar para um destino que lhe escapara a ele.”(Vitorino Nemésio, “Retrato do Pai”) Parece, assim, evidente, que a partida do pai de Venâncio em Varanda de Pilatos é um artifício romanesco para ficcionalizar o que, de facto, aconteceu a Vitorino Nemésio, que deste modo transferiu um acontecimento da sua infância para a cronologia do adolescente.

O pai de Venâncio, Tibério é, assim, um alter ego do pai de Nemésio, também ele músico amador e alma liberal. A ligação de Nemésio ao pai foi talvez a relação mais profunda e marcante da sua vida; percorre toda a sua literatura - na poesia, são notáveis as referências ao pai.

O pai de Nemésio constituia “a grande saudade da sua meninice. Todas as coisas que vi e senti vão ter a ele como um rio.” (“Vitorino Nemésio, ilhéu do mundo”, in Jornal Expresso, 1/12/ 2001) Encheu, contudo, a adolescência de Nemésio de “melancolia e temor de “melancolia e temor”, provavelmente porque, tal como Nemésio confessou em “Retrato do Pai”, era alcoólico: “A raras pessoas tenho contado isto e nunca o escrevi [itálico nosso]: meu Pai era alcoólico. Essas crises de vagabundagem poética eram provocadas ou então agravadas pelo álcool. Mas meu Pai não era um alcoólico inveterado. Bastava um nada para o toldar. Então os seus nervos abalavam-se todos. Não dormia. Às duas ou três horas da manhã levantava-se e saía exaltado. Andava, andava até ao alvorecer. Ia longe. Creio que preferia os lugares escusos ou altos, onde pudesse estar mais só com seu fadário e consigo: ver nascer o sol Ponta da Mámerenda; ir amanhecer ao Cabo da Praia ou às Fontinhas.” (Vitorino Nemésio, “Retrato do pai”)

Na transposição ficcional que encontramos em Varanda de Pilatos, o alcoolismo foi notoriamente suprimido e sublimado artisticamente por uma alma musical incompreendida pela sociedade e pela família, cujo único escape é a arte. Sem dúvida, muito mais poético e atraente, e também menos doloroso para o autor, se levarmos em conta que o pai era a figura de culto de Nemésio, inspiração e ídolo, e é natural que ele não se permitisse revelar os aspectos menos positivos da sua personalidade. Ademais, o pai falecera em 1923, poucos anos antes da publicação de Varanda de Pilatos.



E é exactamente com o fim da adolescência de Venâncio e sua passagem para o início da idade adulta que Nemésio fecha a sua obra, levando Venâncio a partir para Lisboa, a terra da promissão, onde se passarão os grandes eventos das suas vidas, uma alteração de lugar – e que corresponde à autonomização do sujeito, aqui propiciamente apoiada por uma terra que lhe oferece horizontes mais largos. Foi assim de facto na vida de Nemésio, que na capital iniciou a sua vida profissional e que, a partir daqui, só voltaria à terra-mãe em férias. Isto leva-nos a considerar a questão do já chamado “eterno-retorno” em Nemésio, visto a ilha, microcosmos essencial e origem mítico- material, desempenhar para sempre um papel de suma importância na vitalidade nemesiana.

Fácil é concluir que Varanda de Pilatos é um romance claramente pessoal, com muito de autobiográfico, mascarado em hábil disfarce, nem sempre tão velado como o autor, a posteriori, desejaria. A profusão de tias representadas na obra (tia Perpétua, tia Delgada, tia Rita, tia Custódia, tia Isménia, a velhinha) valeram a Nemésio um comentário incisivo de Aquilino Ribeiro quando lhe mostrou o manuscrito da obra: “Parecem-me tias de mais…”; ao que Nemésio terá respondido que, na realidade, tivera muitas, razão por que a ficção que retratava a época liceal continha tias em abundância.



Por todas estas questões de proximidade entre o real e o fictivo, no prefácio a Varanda de Pilatos, José Martins Garcia coloca algumas hipóteses pertinentes para a classificação deste romance invulgar: estaremos, talvez, perante um “romance lírico”, dada a exposição do eu íntimo do autor e a narração de primeira pessoa; distorcendo habilmente algumas noções teóricas, podemos cair num conjunto de termos, mais ou menos entrecruzantes “um documento da realidade insular, o testemunho de uma crise, um quase-poema de saudade, uma confissão, etc”; ou,ainda, se desejarmos ser mais técnicos e enveredar pelo caminho da psicologia aplicada ao romance “uma artimanha, um déguisement, um roman à clé, uma vingança, um produto de certo complexo de ressentimento (cf.«Retrato do Pai:« Um freudiano qualquer chamaria a isto um complexo de ressentimento» - Isto...« a côdea do lodo em que a minha vida assenta».( José Martins Garcia, prefácio a Varanda de Pilatos)



Para terminar, fundamentalmente gostaria que esta minha conversa convosco fosse uma porta para terem vontade de ler Vitorino Nemésio. Claro que Nemésio tem um percurso de vida e de obras riquissimo, livros de poemas onde pulsa a açorianidade, onde está presente a questão da sua fé (“senhor aqui me tens, aflito e retirado, como quem põe à porta o saco para o pão…”), o seu conflito com o Tempo (“tempo que levas meu pai morto”) – isto para citar as questões mais importantes - , os artigos onde inventou o proprio conceito de Açorianiedade, as fabulosas crónicas de viagem, como aquelas que fez aos Açores (Corsário das Ilhas) ou ao Brasil, algo sobre o qual ouviremos falar amanhã. Aqui, debrucei-me apenas sobre os anos de ligaçao física de Nemésio aos Açores, muito presentes nesta obra ficcional.

Não me quero despedir sem antes fazer minhas as palavras de Nemésio, que escreveu numa obra chamada O Segredo de Ouro Preto (1954) – que é, como sabem, sobre a sua vivência aqui no Brasil, ele que foi professor a Bahia que lhe lembrava as suas ilhas e que também viajou por outros ligares deste país enorme - : “ em qualquer português vive facilmente a pena de não ter achado o Brasil…”. Eu penso verdadeiramente que essa emoção, 56 anos depois, é verdadeira para mim também. Achar o Brasil, e achar dentro do Brasil a minha terra nesta Casa dos Açores do Rio, é uma enorme emoção.

Friday, November 26, 2010

"Efeminizem-se!"



Numa das revistas Time de Novembro, Nancy Gibbs escreveu um provocatório artigo chamado “Woman Up”. Parêntesis sobre a senhora para quem não sabe: Nancy Gibbs faz as crónicas de última página da Time - para além de se dedicar à escrita – e estudou na Yale Política, Filosofia e Economia (não há como os EUA para ter duplas e triplas licenciaturas, algumas cuja interdisciplinaridade nos parece duvidosa - questão cultural que não cabe aqui e fica para outras calendas).


Gibbs começa por dizer que as mulheres que actualmente fazem política nos EUA utilizam uma retórica machista, talvez sem elas próprias se darem conta. Oferece exemplos concretos: afirmações de Sarah Palin ao dizer que o Presidente Obama “não tem tomates para lidar com a imigração ilegal” ou que “os jornalistas são impotentes e flácidos”, agindo cobardemente com ela; afirmações de Christine O’Donnel, candidata republicana ao Senado, que afirmou que o seu oponente masculino tinha uma atitude “que não era de homem”, aconselhando-o “a vestir as calças como um homenzinho”; e ainda de Sharron Angle, membro da Assembleia do Nevada reconhecida por andar de arma no carro e levantar pesos, que também aconselhou o seu rival político “a fazer-se um homem!” O artigo segue com mais exemplos explícitos que me escuso a traduzir não vá alguma criança apanhar este jornal…


Gibbs aponta algumas explicações para este fenómeno, “uma maneira de se expressar muito mais Lorena Bobbit do que Margaret Thatcher”. De onde eu depreendo que hoje em dia se faz política com recurso à faca e ao golpe dado enquanto o outro dorme do que apelando às velhas tácticas de guerra, já tão antigas quanto o famoso e sempre actual livro do estratega chinês Sun Tzu… Mas adiante.


Segundo Gibbs, talvez as mulheres na política necessitem de mostrar que são muito duronas, daí a sua masculinidade inconsciente. Ou seja, apesar de vestidas e maquilhadas como Barbies, têm uma conversa de carroceiro: não há pior combinação. A razão por detrás desta atitude é que os seus congéneres homens se tentam aproveitar da fragilidade das saias e dos batôns, portanto há que ripostar com palavrões e insultos, provando “we mean business”. Não surpreende, pois é sabido que a maior parte dos homens no poder acham que mulheres são quotas ou mercadoria. Porém, tal como Gibbs, não sei se a “mercadoria” está a agir da melhor forma na batalha para ser reconhecida.


Certo é que os homens também atacam as mulheres de maneira muito baixa, nomeadamente neste ramo. Hillary Clinton deve ter sido das senhoras que mais sofreu, desde ter o seu retrato em urinóis até posters com a frase “Passa a ferro a roupa dele, Hillary!”, insinuando que era essa a sua (única?) utilidade. Um comentador da Fox dizia que a Sra Clinton era uma figura tão castradora que quando ela falava ele cruzava sempre as pernas. Por seu lado, Palin teve uma boneca insuflável feita em sua honra… Portanto, ripostar na mesma moeda é o remédio?


Segundo as sondagens eleitorais, parece que não. Nem os homens machistas nem as mulheres masculinizadas parecem estar a ganhar terreno junto dos eleitores. Quem anda a marcar pontos é o homem cujo lado feminino está mais salientado. Explico melhor: os eleitores andam a inclinar-se para os homens que não apresentam atributos másculos, mas sim suavidade, doçura, uma tendência para a verbalização calma, para o serviço compassivo, para a preocupação com a sua família e com o bem estar comunitário. A ideia do macho musculado que mostra indiferença e maus tratos já não convence ninguém, segundo Gibbs (e as sondagens). Se calhar, a resposta não é as pessoas masculinizarem-se, mas sim “efeminizarem-se”, à falta de melhor termo. Por enquanto, os homens só têm conseguido fazê-lo a nível da aparência, com a metrossexualidade a ganhar um estupendo terreno: é vê-los na manicure, no cabeleireiro, na esteticista, a pintarem cabelos, a fazerem depilação e unhas. Mas a nível de comportamentos, estamos muito longe de uma realidade consequente. Isto a julgar por  comentários como aqueles que sinto enquanto mãe de um rapazinho que, aos dois anos, já ouve por parte de alguns conversas deste tipo “Um rapaz não chora, isso é coisa de menina!”, que me parece ser um discurso bem mais castrador do que qualquer conversa da Sra Clinton. Enquanto um homem for proibido de chorar, uma mulher achará que tem de se armar em Rambo. E, como todos sabemos, o Rambo não era um tipo lá muito inteligente…

Monday, November 15, 2010

121 Poemas Escolhidos - Emanuel Félix



Difícil é condensar a poesia e a vida do terceirense Emanuel Félix (1936-2004) em poucas palavras.Para os que gostam da compartimentação em escolas, dizia-se dele que foi o introdutor do concretismo poético em Portugal, etiqueta que o próprio rejeitava. Emanuel Félix era especialista em restauro de obras de arte, o que o fez viver em vários países ao longo da vida. Essa pluralidade de actividades artísticas e de lugares não o impediu de escrever sempre nem de regressar à Terceira, onde criou o Centro de Estudo, Conservação e Restauro de Obras de Arte dos Açores. Para quem dá importância a títulos, fica a nota que também fazia parte do Conselho de Cooperação Cultural do Conselho da Europa, destinado ao estudo das políticas culturais para o desenvolvimento das regiões europeias. Nada disto diz da sua vasta obra literária, sobretudo poética, traduzida já em várias línguas e analisada por estudiosos além-mar. Desde os poemas quase pictóricos - uns valendo-lhe o epíteto de concretista, outros mais surreais -  ao seu fascínio pelo bestiário, selvagem e caseiro, sobretudo o amor pelos gatos; desde o ludus que apontava para outras culturas (vejam-se os poemas orientais) ao ludus intertextual com outros poetas (como o jogo nemesiano de “Five o’clock Tear”); da intimidade epistolar dos poemas bilhetes para a mulher ou do poema carta para a filha à lembrança da primeira infância com “As Raparigas  Lá de Casa”; das considerações sobre a morte, e.g. “Os Mortos e as Sementes” às que exploram a condição açoriana – “Poema sobre os Náufragos Tranquilos”. Na impossibilidade de ler todos os volumes, estes Poemas Escolhidos são um bom ponto de partida se é que ainda há quem ignore que Emanuel Félix está entre os nossos maiores poetas. 


Friday, November 12, 2010

Mitos urbanos modernos sobre nossos irmãos



Há poucas semanas, fui convidada a fazer uma palestra sobre Nemésio no Rio de Janeiro. Como nunca lá tinha ido, logo várias pessoas bem intencionadas me deram imensos conselhos sobre os perigos que eu, mulher só e jovem, iria enfrentar numa cidade tão perigosa – de rapto, violação a morte lenta, profetizaram-me de tudo, e, apesar de eu dizer que já tinha vivido sozinha em cidades grandes e de má reputação, replicaram-me sempre: “Nenhuma tão má quanto o Rio”. Dada a minha completa ignorância, calei-me (opção inteligente quando se é ignorante!).


Uma das coisas mais divertidas que me aconteceram no Rio foi o desfazer de vários mitos modernos – coisa que me acontece com frequência, dando cabo dos pré-conceitos que me foram incutidos, neste caso em relação aos brasileiros, seu temperamento e modo de vida. Faço aqui um parêntesis para que não me julguem uma tontinha que, por ter estado uns dias numa cidade, já julga todo um povo de um enorme país (cujas diferenças culturais internas são abissais) a partir do que viu e de conversas e experiências que teve. Naturalmente que estou a juntar isto com outros momentos e pessoas que conheci ao longo da vida. Além disso, espero que leiam o que se segue com a bonomia de quem lê uma opinião pessoal, tão só, que não pretende ser mais do que isso.


Primeiro, o mito moderno português em relação à brasileira. Isto toca-me particularmente, pois a ama do meu filho é brasileira (paulista, imigrante aqui) e tem mais sucesso em ensiná-lo a falar do que nós, pais, porque passa muito tempo com ele e porque a sua melodia fonética é – embora me custe – mais fácil e apelativa do que as nossas para um bebé que está a aprender sons. Ora, todos sabemos que uma grande percentagem de homens portugueses vai passar férias ao Brasil em busca da sensualidade das brasileiras, com a ideia cinematográfica de que a mulher brasileira é uma morena (e há quem diga que preferem as loiras!) insaciável e contorcionista, sempre rodando a anca ao som de uma música bem disposta cujo único intuito é provocador. Por isso, não faltou quem me perguntasse se eu não tinha medo de ter “brasileiras em casa”, como se esta nacionalidade, de repente e por si só, incendiasse uma espécie de descontrole nas hormonas masculinas e, consequentemente, no lar. De onde vem esta ideia, que ataca mulheres ciumentas e homens em polvorosa? Das novelas. De facto, a novela brasileira (em Portugal, desde os anos 70), apresenta, grosso modo, uma brasileira interesseira e extraordinariamente sensual. Mas não há nada que minta mais sobre o Brasil do que as novelas - e este é o segundo mito, de onde se decalcaram as novelas portuguesas - , onde toda a gente vive em frente à praia, coberto de jóias, com criadas que usam uniforme (meu Deus, quem tem isso?); ou, por oposição, vivem no sertão, tocando viola todo o dia e trocando olhares langorosos. Não quero com isto tirar à mulher brasileira a sua capacidade natural de seduzir… como a têm as mulheres de outros lugares. Na minha opinião, a brasileira apresenta até duas vantagens sobre as outras: primeiro, é uma mulher descomplexada e natural (a portuguesa, por ex., preocupa-se demais se está gorda ou magra, se é velha ou nova…); segundo, é alegre por natureza.


Terceiro, a ideia de que o brasileiro vive de esquemas e vigarices. Neste ponto da nossa História, eu diria: o português também. Claro que isto são generalizações. Mas a verdade é que nenhum dos dois povos se pode orgulhar actualmente de grande lisura e de falta de chico-espertice, à escala populacional de cada um (factor que conta… e muito).


Se temos diferenças? Óbvio, e isso dá mais cor e beleza ao mundo. O português vive muito no passado e nas hipóteses do futuro – aliás, está expresso na utilização dos seus inúmeros tempos verbais passados e hipotéticos. Tem saudades do que fez e do que poderia ter feito e nem existe. O brasileiro, ao contrário, vive sempre no presente. Não sabe o que será amanhã o seu destino, mas confia – contra todas as expectativas – que será bom. E, mesmo que não seja, ele tem o dia de hoje pelo qual está infinitamente grato. È esse amor ao momento, apesar dos pesares, que (me) encanta. Além disso, ainda hoje, como dizia Nemésio “vive em todo o português a pena de não ter descoberto o Brasil”. Talvez isso explique a secreta paixão que existe pelo outro lado do mar.


Ah! Já me esquecia: no Rio, não me aconteceu nenhuma daquelas profecias. Ou tive sorte ou os ladrões tinham telemóveis melhores que o meu… 


Friday, October 29, 2010

O desafio do risco



Um dos paradoxos do mundo actual (provavelmente de sempre) é que toda a gente se diz muito moderna, avant-garde e inovadora, mas quase todos são extraordinariamente resistentes a toda e qualquer mudança. Explicando melhor: é tido como de bom tom, politicamente correcto, sociavelmente bem visto e, para além disso, atraente e sexy dizer-se que se é um tipo corajoso, que gosta de assumir riscos e que abraça ideias novas e diferentes. Ninguém, nem mesmo os próprios, aprecia um tradicional cinzentão - é por saberem isso que os conservadores se esforçam ao máximo por apresentar um ar juvenil e moderninho (se não me acreditam, perguntem aos conselheiros de imagem e aos senhores que escolhem os slogans das campanhas políticas, onde o que mais se vê são “ventos”, “mudança”, “liberdade”, “escolha” e outras palavras de frescura). Porém, apesar da sua apregoada vontade e capacidade para o novo, a maior parte das pessoas, bem no fundo, morre de medo de uma mudança – qualquer que seja – na vida. Este receio parece-me natural e intrínseco ao ser humano. Afinal, por mais voltas que demos à pirâmide das necessidades básicas humanas, a segurança aparece como um factor importante e procurado desde os primeiros momentos da vida. A mudança, em si mesma, aparece como uma ameaça à segurança e é isso que a faz tão assustadora. Como vivemos num tempo continuo (ou assim o entendemos dentro das nossas capacidades interpretativas), a mudança é inevitável no decurso da existência, quer queiramos quer não; portanto, para minimizar o ataque à sua segurança, a maior parte das pessoas escolhe fazer mudanças muito pequenas ou dentro de limites conhecidos. Raros são os radicais que transtornam a sua vida toda, num acto de coragem. Claro que nem todos têm oportunidade de o fazer, por questões externas ao indivíduo (económicas, profissionais, familiares). Mas mesmo quando esses factores podem conjugar-se, são poucos aqueles que decidem arriscar.


De um ponto de vista puramente racional, este medo seria muito mais facilmente ultrapassado se nos consciencializássemos que já mudámos por diversas vezes na vida e que continuaremos a mudar. A maior mudança e, simultaneamente, o maior risco desta vida é o de crescer. Dito assim, parece uma verdade taxativa e sem interesse, mas quanto a mim, conheço várias pessoas que se recusam a dar este passo ou, se quiserem, a assumir este risco. A altura crucial em que nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, assumimos as consequências dos nossos actos e enfrentamos o desconhecido com coragem, não é igual para todos. Não é invulgar encontrarmos pais que não conseguem fazer nada disto na sua vida (muito menos orientar os filhos, que tiveram geralmente por necessidade de auto-compensação e dos quais se desligam quando percebem, com amargura, que os filhos não são extensões deles mas sim seres humanos com personalidade e vida autónomas); do mesmo modo, também é possível encontrarmos adolescentes cuja maturidade a este respeito é já bastante elevada, provavelmente porque tiveram de enfrentar momentos perante os quais não se retraíram e “deram o salto” mental.


Se encararmos a mudança como parte do nosso percurso de vida, isso pode trazer-nos uma certa segurança que advém do hábito – como dizia Camões, o mundo “toma sempre novas qualidades”, logo a única segurança é… não haver segurança nenhuma, o que, paradoxalmente, pode dar o conforto de estarmos todos no mesmo barco. De qualquer forma, o conforto aparente não diminui o risco da mudança.


Na maior parte das pessoas, convivem lado a lado o gosto pelas novas situações e a ânsia de se agarrarem ao que já conhecem. Geralmente, arriscar a fazer as coisas de forma diferente e, logo, assumir a oportunidade para o desenvolvimento numa nova perspectiva de vida e, assim, para o amadurecer, é feito por vários saltos no nosso percurso – embora haja momentos de salto abissal, de profundas mudanças de situação e, obviamente, de paradigma de vida. As pessoas que vêem o mundo como os seus ancestrais o viam – de acordo com as mesmas ideias sem jamais as terem indagado, vivendo para a sua aprovação, até mesmo no caso em que estes estão mortos e enterrados – nunca deram salto algum. Pertencem a um mundo que já foi. Não cresceram nem fizeram o seu destino por suas mãos.


Ter medo da mudança é ter medo da vida. Como se sabe, ter medo da vida não é viver.

Entrevista a Sara Porto, autora do livro "Finalmente Árvore"

Carla Cook – Mais do que o contar duma história, este livro é um projecto. Como te ocorreu trabalhar com as pessoas do Moviment’Arte da APADIF?
Sara Porto- Eu já tinha a história escrita há algum tempo. Quando vim para cá, no ano passado, cruzei-me com o prof. Vitor Rui Dores. Tinha tido um bebé e ele disse-me “já plantaste uma árvore, já tiveste um filho; falta escrever um livro”, e achei graça a isto! Entretanto, houve uma passagem de modelos na qual participaram as pessoas da APADIF. Vi esta notícia na TV e apercebi-me da alegria deles ao passar modelos, da importância que era para eles fazer algo que os punha par a par com as outras pessoas na sociedade. Sempre tinha pensado que a ilustração desta história não devia ser feita por ilustradores profissionais; queria algo mais simples. Então, lembrei-me deles. Uma das utentes é minha prima, tem Síndrome de Down, A mãe dela pertence à Direcção da APADIF e pôs-me em contacto com a Marta Faria, psicóloga que desenvolve um trabalho muito especial com eles. Após ler a história, a Marta começou também a sonhar com esta ideia e foi imprescindível em todo este projecto. Fui lá falar-lhes, o prof. Vitor leu-lhes a história, e começaram os desenhos. Notei sempre a grande alegria deles em fazer um livro, um livro a sério  – isto teve muita importância para eles.

CC- Os autores dos desenhos estão referidos apenas pelos primeiros nomes. Ao certo, quem são? De que faixa etária falamos? O que os liga?
SP- Eles são quase como uma família - muito unidos, passam muito tempo juntos em actividades, entendem-se muito bem, incluindo algumas coisas que só eles sentem. Estamos a falar de um grupo de idades que varia desde adolescentes a pessoas com mais de cinquenta anos. Mas todos eles são muito simples e inocentes e isso vê-se nos desenhos, que parecem ter sido feitos por crianças. Provavelmente, nós teríamos problemas se nos dissessem para desenharmos para um livro, mas eles não, começaram logo; é como se o ego deles não interferisse.

CC- Como surgiu a ideia do livro estar também escrito em Braille? Essa parte foi concretizada nos Açores?
SP- Não, foi no Centro Prof. Albuquerque e Castro, no Porto, onde fazem trabalhos em Braille profissionalmente, também para jornais. A ideia foi da Noémia Pinto, da Direcção da APADIF. Há pelo menos 2 livros em Braille para crianças que chegaram à Associação e a nossa ideia inicial era seguir o mesmo modelo e ter Braille a contornar os desenhos, mas isso encarecia muito o livro. Muita gente sabe que Braille existe mas não tem consciência de como é. A ideia é mostrar que devia haver tantos livros em Braille quanto possível, apesar de felizmente não haver muitas pessoas cegas aqui, mas as que existem deviam ter oportunidade de ler.



CC- Este é o teu primeiro livro, uma história infantil que abraça a igualdade de oportunidades. Tens projectos diferentes para o futuro na área da escrita?
SP- Este livro teve até o apoio da Direcção Regional da Igualdade de Oportunidades. Mas sim, já tenho outra história escrita e estou a escrever mais uma, ambas para crianças. A história que está pronta é a pensar um bocadinho neste grupo:  eu queria escrever mais livros com as mesmas personagens, há até uma personagem que é cega. O terceiro livro já é diferente: está relacionado com a natureza, uma área que gosto muito.

CC- Queres terminar falando da mensagem deste Finalmente Árvore?
SP- O livro fala por si. Trabalhar com estas pessoas permite-lhes que se sociabilizem e se exprimam criativamente, ao contrário do que lhes foi incutido, até inconscientemente, que estavam limitados… É uma descoberta para eles e uma oportunidade para as pessoas os olharem olhos nos olhos, como eles gostam.

Friday, October 15, 2010

Já não gosto de chocolates - Álamo Oliveira



Esta é uma história contemporânea (publicada em 1999), vivida pelo velho Joe Sylvia, “tão perto da morte que a pode cumprimentar de beijo” lá da cadeira de rodas do asilo californiano onde vive quase voluntariamente. Emigrante açoriano em Tulare, Joe ali criou 4 filhos, mas é a enfermeira mexicana Rosemary que o apoia diariamente nos seus últimos tempos e é junto a esta amizade curiosa e maternal que Joe recorda a vida: o seu amor forte e constante à mulher; a perda de fé dela perante uma doença fatal; a homossexualidade, a beleza de um amor proibido e o terror da SIDA vividos pelo filho John; os vícios degradantes da filha Maggie; os outros filhos que vivem para trabalhar e a nora fútil e alpinista social. 

A obra não esquece as diferenças entre os Açores deixados por Joe para ir para a América e os Açores pós-revolução de Abril, “governados por comunistas”, onde se pode votar. São uns Açores estranhos para Joe que na América nunca votou nem sequer sentiu essa necessidade, vivendo numa comunidade sobre si centrada. A terra americana é metamorfoseada em chocolates, a única riqueza americana que Joe (então José Silva) cobiçava avidamente quando vivia na sua ilha, e curiosamente o presente que os filhos lhe levam quando o vão visitar ao lar, cumprindo o seu dever. Mas agora Joe deita as caixas de chocolates - prova do “desamor mal assumido” da sua prole - no lixo, depois de ter fracassado em transmitir aos filhos uma cultura que, fatalmente, já não era a deles por oposição a um novo mundo gigantesco.


 Realce-se também, na obra, a preocupação com a marginalização (do neto deficiente, dos pobres “tratados como animais imprestáveis” em contexto pseudo-democrático), a aceitação por parte do velho Joe do amante de John, que o visita no asilo, a nota de humor irónico que há sempre ao falar da nora cuja maior glória é sentar-se junto ao Presidente do Governo dos Açores numa festarola comunitária, as recordações da ternurenta Rosemary, única a aperceber-se que Joe tinha perdido o gosto pelos sabores antigos.


Um romance muito comovente e magistralmente escrito que aborda corajosamente a perspectiva da terceira idade. Traduzido e publicado também em inglês e japonês. 


Utopia



Nesta época, o assunto é a crise. Aqueles que como eu nasceram num tempo em que havia um sketch humorístico de um casal de bêbedos que diziam “isto é que vai uma crise”, perguntam: qual é a novidade? Não me recordo de ter vivido em dia em que nós, como povo, não vivêssemos em assumida desgraça, profetizando que amanhã seria pior mas bebendo para ganhar alento. Foi mesmo pior. Imagino que já terão ouvido muitos experts que sabem como resolver a crise. Eu não sei. Mas sei, com aquele fundo de alma que caracteriza todos os portugueses, que Portugal tem uma arma secreta: o salvador da pátria. Ok, dito assim parece título duma novela brasileira – há mesmo uma que se chama assim, na qual um analfabeto de uma cidadezeca acaba por se tornar num poderoso político, sendo levado a concorrer às eleições para encobrir escândalos amorosos (ditos “políticos”, porque é mais luxuoso e porque assim ele ganha largos votos); melhor do que este enredo só mesmo o daquela novela em que o prefeito da cidade matava alguém para poder inaugurar a sua obra municipal que calhava ser um cemitério!


Voltando à vaca fria (e magra): temos um salvador da pátria. Portugal tem sempre um D. Sebastião escondido à espera de aparecer, por quem o povo espera. Claro que às vezes o D. Sebastião é um tiro no pé, salvando da bancarrota e instaurando o servilismo, mas Portugal, passados uns anos, até pensa que não foi assim tão mau. O que queremos mesmo é quem nos resgate, ainda que nos faça passar vida de cordeiro aprisionado. Como dizia Eça, é uma nação talhada para a conquista ou para a ditadura. Como povo, sabemos queixar-nos mas lutar é-nos difícil. Manifestações em Portugal são coisas raras – as pessoas temem: temem o que dirão os vizinhos, o que farão os patrões, o que será da sua vida lá na rua e na repartição. É por isso que é tão fácil ser ditador em Portugal, venha de que quadrante vier; gente fácil de domar esta.


De facto, qual é o fundo da nossa crise? Na minha geração, a crise é também já não sabermos o que seja meritocracia. Essa ideia de que “pelo teu mérito ascenderás” é para nós uma palavra oca, uma coisa tão vaga e distante que nos merece um riso de escárnio descrente como quem acaba de ouvir falar de uma utopia. Os trintinhos mais ou menos inteligentes (sim, excluam os que não pensam ou pensam por cabeça alheia) pensavam que por terem uma cabeça autónoma e um grau académico razoável, teriam uma vida decente. Erro. Hoje, temos uma data de jovens doutorados a viver de recibos ou de contratos miseráveis… quanto à cabeça autónoma, todos sabemos o perigo que é sequer mostrar que se pensa (como diz certo cartaz “quem não trabalha, não erra; quem não erra, é promovido”). Para além disso, cada vez se descredibiliza mais a educação – para que todos possam ter um grau que passa a significar zero, por ser tão fácil de atingir – e se descredibilizam igualmente os poderes: quem hoje em dia acredita na justiça ou na governação? Quem sequer acredita na comunicação social? Quem não conhece, por ex, um antigo colega de escola que nunca foi capaz de fazer contas mas hoje aparece como um super economista que dá bitaites sobre a solução da crise ou uma colega que continua a não saber onde fica a Argentina mas é analista política internacional? Quem não conhece chefias muito incompetentes permitindo-se ser arrogantes dentro da sua ignorância? São estes cérebros que nos vão tirar do corte (da crisis, portanto)?


Não sou uma pessoa dura em relação aos políticos. Creio que o facto de estarem (demasiado) expostos não faz com que sejam tratados com a necessária distância que promove a igualdade de justiça na sanção. Há demasiada inveja e/ou temor (ainda que a culpa possa ser dos próprios). Porém, existe um problema que grassa em todos os quadrantes, não só políticos como sociais (salvo honrosas excepções) – a falta de ética: as pessoas deixaram de se sentir responsavelmente livres; vivem de modo infantil, provisório e só para si, desconfiadas dos semelhantes e trocistas dos dirigentes; frustres porque não são reconhecidas, amargas por não reconhecerem mérito; vivendo sem se melhorarem nem a si nem à sociedade. A ética não precisa de esperar pela política, mas a política sem ética é vazia, porque um bom sistema é aquele que promove as liberdades e os méritos. É esse o sistema que não promove crises.


A nossa crise económica nasceu de uma crise de valores. E dessa, todos nós, culturalmente e por falta de fibra, não estamos à altura de sair tão depressa.


Friday, October 1, 2010

O hábito faz a sobrevivência



O meu fisioterapeuta tem-me ensinado algumas coisas. Parêntesis para dizer que devia ser feito um estudo à ligação que se desenvolve com um fisioterapeuta ou massagista quando temos um problema de mobilidade (e o meu é apenas temporário e não impeditivo, imagino os realmente graves!). Poucas relações misturam tanta ambiguidade de raiva e gratidão. Mas adiante. Eu desconhecia, até agora, algo chamado trigger points. Parece que há uns pontinhos-gatilho nos nossos músculos que se irritam e são extremamente dolorosos para nós quando estimulados. Perdoem a minha definição leiga. Quem não entendeu pressione muito fortemente com as pontas dos dedos a zona do pescoço e das costas e, se for stressado (portanto, um humano average, funcionário público ou, em alternativa, desempregado), encontrará trigger points. O que há de mais curioso acerca dos trigger points é que, se continuarem a pressionar com a mesma força durante 30 segundos, a dor que ainda há pouco era insuportável… desaparece! Como se explica isto? perguntei, ingenuamente. Claro que devia ter adivinhado: o ser humano habitua-se à dor e anestesia-se a si mesmo, para melhor aprender a viver com ela. Somos geniais na arte da sobrevivência.


Se somos capazes de anestesiar uma dor física para melhor a suportar, também não ficamos atrás com o anestesiar de torturas psicológicas. Disso é bem revelador a Síndrome de Estocolmo, que, apesar de ter sido um termo cunhado para reféns (no célebre assalto ao banco sueco) e posteriormente também para vítimas de rapto e de violência doméstica ou prisioneiros de qualquer espécie, pode servir para mais situações de abuso. De facto, pessoas que vivem longo tempo numa situação abusiva arranjam sempre mecanismos de defesa por uma questão óbvia de necessidade. Começam, então, a achar que qualquer não-abuso (i.e. qualquer acto normal, como deixá-las sair de casa ou permitir-lhes o acesso a um telefone - reparem nos verbos condicionantes e propositados) por parte do abusador é um acto de bondade deste ao invés da expressão da liberdade natural e individual dos abusados.


Se um abusador é sempre terrível, a vítima responde com ódio e em breve sairá da trama. Porquê? Sobrevivência. Mas a grande maioria dos abusadores é esperto e joga de outro modo. De vez em quando, oferece simpatia e, em casos extremos, o abusado sente mesmo a falta de abuso ocasional como uma delicadeza per se. Dá-se um desfasamento dos contextos reais em que vivem os restantes seres, pois de outro modo o abusado não poderia continuar a manter a sua sanidade – há que lembrar que estas pessoas vivem em ambientes loucos. Para nos mantermos sãos quando tudo à nossa volta é irreal e vivemos num ambiente de enorme e constante tensão emocional e física, temos de nos desvincular durante algum tempo da perspectiva normal, pois o valor mais alto a preservar é o da vida. Deste modo, o abusado acaba por se ver envolto numa trama na qual percepciona as próprias saídas como perigosas e capazes de o magoarem, porque a sua única relação com o mundo do qual está isolado depende do opressor. O isolamento do abusado é necessário para que o abusador lhe confira não só a sua perspectiva dos acontecimentos (o que torna o abusado dependente para as necessidades básicas e até certo ponto identificado com o abusador nos mais íntimos detalhes) mas também para reforçar o poder absoluto do abusador, que assim se torna cada vez mais megalómano e perigoso. Afinal, todo o abusador é um ditador, mais ou menos consumado.


A Síndrome de Estocolmo é a “gratidão primitiva pelo presente da vida” (Frank Ochberg), como se cada minuto que um abusador nos deixa viver fosse precioso, pois, em boa verdade, o abusado crê que o abusador tem a vida dele nas mãos e fica-lhe grato por esse respirar, ainda que em condições sub-humanas. Também os bebés formam laços emocionais com qualquer ser humano mais próximo, tentando que este lhes dê o que necessitam - não é só um mecanismo identificativo, é o click da sobrevivência a funcionar.


Resumindo: o instinto de sobrevivência é o instinto-mor de todo o animal, incluindo o humano; quer queiramos quer não, o homem habitua-se a tudo, mesmo ao mal, minimizando-o como pode, até do ponto de vista da sua natureza, para sobreviver. E é por isso que a gente responde ao “tudo bem?” com “não venha a pior!”, ou seja, não está nada bem mas o pessoal até aguenta e só deseja que não piore porque a este bicho ruim a gente até já se habituou… 


Wednesday, September 29, 2010

Contrabando Original - José Martins Garcia

Romance de 1988, Contrabando Original centra-se em Miguel, rapaz que cresce numa comunidade ilhoa, hipócrita e podre, que ele resume como “bando de abutres”, sedentos de sangue da dor alheia, recriminadores do prazer e ávidos a pedir, de mão estendida. A opinião pública revela-se fundamental para esta vida teimosamente concêntrica, cujos membros vêem a sua reputação eleita ou destruída ao sabor de uma instituição popular imemorial: o boato.


Na quietude vil onde tudo é murmurado, insere-se a família de Miguel que “cheira a naufrágio” e mora numa casa fendida a meio por um terramoto, essa fatalidade insular. A vida corre assim, por entre os rituais vazios, expressão máxima da imobilidade da Ilha e do “dever ser”, mas também por entre o quebrar de normas pela calada, sobretudo o incesto, esse “baptismo às avessas”, uma restituição maldita à infância que não houve.


O percurso de Miguel após emigrar é a tentativa de deixar a Ilha para trás: então, dispersa a sua identidade em estilhaços, desdobrando-se em rebelde, actor e cônsul, comprovando a desintegração do imigrante.


Numa linguagem muito directa, quase chocante de tão incisiva e irreverente, o picoense Martins Garcia, crítico sem receio, colocou o dedo na ferida neste Contrabando Original, que é, afinal, a história do tráfico fracassado de um ser que a si mesmo se trafica. 


Friday, September 17, 2010

Europeu, mas pouco

Quando Portugal se juntou à então Comunidade Europeia, eu estava na Primária. Decorámos muita coisa relativa aos 12 países: de repente, o país descobriu uma nova consciência europeia que ia além do Festival Eurovisão da Canção. Mas éramos só 12, atenção. Os restantes, não eram bem europeus, i.e. não eram “da nossa comunidade”. Foi uma coisa que me custou muito a entender: então havia europeus mais europeus que outros? Sobretudo porque os franceses apareciam então como as mentes criadoras da CE enquanto os ingleses, embora lá estivessem, tinham um figurino à parte. Parêntesis para dizer que tenho elementos de outros países na minha família e a coisa gerava algumas conversações, nem todas pacíficas. Quando Portugal se juntou, já havia Parlamento Europeu, já tinham sido abertas as fronteiras do chamado Espaço Schengen (uma coisa muito importante na minha vida) que permitia a livre circulação dos “nossos” sem passaporte e, nesse mesmo ano, passou a haver a bandeira da CE e o European Act, portanto passou a haver um símbolo de identidade e uma compartimentação legal.


A União Europeia, mal ou bem, foi crescendo, baseada naqueles princípios iniciais que apelavam à descentralização e ao contrário do(s) nacionalismo(s), ou não fossem alguns dos fundadores revoltosos contra o fascismo da II Grande Guerra: “Não haverá paz na Europa se os estados se reconstituírem na base da soberania nacional” (Jean Monnet); “A UE significa estar consciente de pertencer a uma família cultural e ter vontade de servir essa comunidade em espírito mútuo sem motivos escondidos de hegemonia nem a exploração egoísta de outros” (Robert Schumann).

Em 2006, foi o Ano Europeu da Mobilidade dos Trabalhadores (eu também não vivia no país do meu passaporte). O Comissário Europeu da Igualdade e Trabalho disse na época que “não havia uma cultura real de mobilidade na Europa” porque “o trabalho tinha-se tornado móvel, mas os trabalhadores não […] devido a incertezas e medos”, uma situação que a Europa queria melhorar, pois “todos deviam aproveitar a oportunidade de experienciar o gosto da sua herança europeia” (Vladimir Spidla).

Em 2010, será só a mim que me parece que a política Sarkozy - cujas variadas medidas de expulsão de imigrantes (por serem ciganos, por não terem meios duradouros de subsistência, por agredirem a polícia, etc) ou de retirar a nacionalidade francesa são bem conhecidas - completamente contraditória a todo este movimento? Não será, exactamente, um retrocesso aos nacionalismos exarcebados que motivaram guerras na Europa ainda bem frescas na nossa memória? Essas mesmas guerras cujas feridas o nascimento da UE procurava ajudar a cicatrizar…

Naturalmente que o caso Sarkozy é um paradigma não só de crueldade mas também de ridículo, se atentarmos na sua história pessoal: filho de húngaro, neto de grego, ex-mulher descendente de moldavos e espanhóis e actual primeira dama italiana que apenas adquiriu a nacionalidade francesa pelo casamento com o Presidente. Toda a sua questão contra os não-franceses (ou os não puros-sangue, se é que isso existe) é um problema que quase apostaria ter uma raiz pessoal, como a questão hitleriana – o Führer sempre se envergonhou das suas origens que não eram minimamente “puras”…

Com cada ditador, o mundo – o único que temos - dá passos atrás, caminhando de costas para a visão, o enriquecimento, a abertura. Fernand Iaciu é o violinista principal da orquestra de Lille, França. É romeno. Em 82, pediu asilo político e ficou: “Deixei a Roménia com o violino e uma mala, vim para o desconhecido […] Mas o que vale a pena na orquestra é que somos muitos de diferentes países e todos trazemos algo de diferente à música por isso mesmo.” Nem todos tocamos violino, mas todos temos algo a dar ao mundo onde escolhemos viver.

Monday, September 13, 2010

“Gato que brincas na rua […] invejo a sorte que é tua”

Ailurofilia, palavra feia para bom sentimento, significa amor aos gatos (de aílouros, “gato” em grego). Muitos escritores têm uma verdadeira paixão por “felinos domésticos”, paradoxo resolvido por Victor Hugo que dizia que Deus fez o gato para dar ao Homem o prazer de acariciar o tigre. Não se trata, porém, só de prazer mas de fascínio, o que torna a ligação insubstituível.


Mark Twain, “o primeiro escritor verdadeiramente americano”, estava convencido que só podia encontrar conforto numa casa onde houvesse um gato feliz. Admirava nos gatos a ânsia de liberdade, a inteligência maliciosa e “essa digna reserva distante com que olham o homem que os maltratou”.


O instável e perturbado Ernest Hemingway, prémio Nobel suicida, dedicava aos gatos toda a admiração que a sua personalidade narcisista e bipolar era capaz. Nas fotos familiares de Hemingway, estão sempre presentes. Hoje, a sua casa-museu em Key-West – onde viveu com a 2ª das suas 4 mulheres – é também a casa de 60 gatos peculiares com 6 dedos nas patas,  tal como tinha o gato oferecido a Hemingway por um capitão de navios. Alguns foram retirados da rua e são mantidos em sua memória.


Émile Zola, o naturalista que desejava retratar impiedosamente as misérias humanas, “convulsões fatais do Novo Mundo” na sua saga Rougon-Macquart, comovia-se até às lágrimas perante gatos. Um dos seus contos mais interessantes é contado na primeira pessoa por um destes felinos: n’ “O Paraíso dos gatos” , um angorá vive principescamente em casa de uma prepotente dona, dormindo em almofadas e comendo carne. Finalmente, decide aventurar-se na liberdade dos telhados, onde passa por muitas desventuras que o fazem escolher regressar à vida plácida anterior, embora saiba que será espancado a chicote como castigo pela dona  antes de regressar às comodidades anteriores: “Enquanto ela me batia, eu pensava, deleitado, na carne que, depois, ela me ia dar.” Seria o angorá de Zola masoquista? Não mais do que todos os humanos que prescindem conscientemente da liberdade em favor de estabilidade, comida e tecto.  Afinal, o paraíso é diferente dependendo das necessidades de cada gato…


Ambas as escritoras Patricia Highsmith e Colette – diferentes tanto no estilo e temas como na época e local onde nasceram - escreveram sobre originais triângulos amorosos entre uma mulher, um homem e um gato, em que a mulher se divide em atenções perante esses dois seres machos que, embora de espécies diferentes, lutam como rivais pelo seu carinho. Todos conhecemos histórias de animais ciumentos de humanos, mas é sempre pouco correcto dizer que existem homens ciumentos até dos nossos animais de estimação. Pois eles andam aí!


Outro prémio Nobel, o poeta T.S. Elliot,  escreveu “Old Possum’s Book of Practical Cats” , sendo Old Possum a alcunha que lhe tinha dado o também escritor Ezra Pound. O livro é um verdadeiro tratado psico-sociológico felino, apresentando-nos várias personagens, que, curiosamente acabaram por ser muito mais conhecidas pela sua adaptação musical: CATS é, desde 1981, cartaz na Broadway e no West End.


A lista é muito extensa. Sem querer entrar em endeusamentos arriscando parecer que sou uma adoradora da deusa egípcia Bastet, a verdade é que é inegável a influência que o Gato tem tido enquanto inspirador literário. Não que isso interesse ao Gato, claro. Ele está acima de todas essas filosofias mundanas… 

A Casa Fechada - Vitorino Nemésio

A Casa Fechada é o único livro de novelas de Nemésio, obra que apresenta a sensualidade como pulsão instintiva, o destino como força inescapável, a viagem (sonhada ou real) como elemento central, o abraço entre a vida e a morte. A sua ousadia, de fino instinto psicológico, foi  muito mal recebida pela crítica aquando da sua publicação, sendo, ainda hoje, um dos livros menos analisados e conhecidos do autor, o que contribui para um enigma desde já condensado no título.


O Tubarão descreve a hesitante iniciação erótica de uma rapariga na praia, a mesma praia que serve de cenário para a morte do bicho predador “de cheiro acre, que nada tem de perfumado, mas que se lhe afigura convidativo.”


Negócio de Pomba fala-nos de um  retornado do Brasil, desenquadrado e atormentado pelo estático sedentarismo da sua ilha e por uma sexualidade amordaçada em medos antigos.


A Casa Fechada conta-nos a passagem do segundo para o terceiro casamento de Luís, pai de duas crianças, filhos da primeira união. “Nesta casa, os mortos mandam mais que nós” diz a segunda mulher, cuja relação com os meninos é agreste. E também ela mandará, em breve… Um conto profundamente conhecedor dos desejos da mente humana, no que ela tem de mais negro.


 Um dos livros mais transgressores de Nemésio, A Casa Fechada foi editado em 1937, ainda antes da consagração com Mau Tempo no Canal.