... "And now for something completely different" Monty Python

Wednesday, November 19, 2008

Os Novos Pedintes

Qual é a grande característica da arte em Portugal nestes dias que vivemos? É ter a mão estendida. Não há artista, por pouco talento real que tenha que não haja aprendido este gesto de esticar o antebraço mais o braço e abrir a mão – e a boquinha -, proclamando que não estreia a sua produção / publica a sua obra (não raro “prima”) / sai da cepa torta porque não tem o apoio do Estado ou de um privado. Oh, quanto talento tragicamente escondido e perfidamente abafado temos entre nós pela malvada avareza governativa. Dói-me ver estes Fernandos, múltiplas Pessoas, estas Florbelas espancando-se, febris, estes Rodins partindo pedra inglória, estas Margot Fonteyn sem pontas pedinchando à beira das instituições e não raro dentro das próprias.


Até há pouco tempo, algumas artes estavam livres da esmola subsidiária. Quero dizer, dava-se dinheiro aos cineastas, por exemplo, para fazerem aqueles filmes espectaculares na lentidão e na diégese que ninguém percebia, excepto os próprios realizadores (se bem que tenho muita desconfiança acerca da relevância dos planos totalmente a branco e totalmente a negro e, sobretudo, do custo dos mesmos…); davam-se uns trocos aos compositores para algumas obras encomendadas, geralmente muito pouco melódicas e pobremente harmónicas, cuja função era a celebração de um evento nacionalista. Mas os escritores, por exemplo, sempre eram poupadinhos ao mecenato.


Hoje em dia, qualquer tipo que escreva umas balelas não só se considera escritor como se acha com talento suficiente para publicar – fora do blog que, certamente, já criou! – e ainda acha que para publicar merece que lho paguem. O pseudo-escritor português e/ou residente em Portugal (tomado como exemplo do pseudo-artista) tem uma árdua vida: escreve muito, mas são sobretudo cartas (de bajulação, de pedido, de amizade “pessoal” como se outro tipo de amizade houvesse…, de intervenção na vida da sua comunidade como crítico, de ódio a outros escritores mas na base da crítica puríssima e não raro “pessoalmente amiga” às obras destes), ou convites porque almoça e janta com quem é devido almoçar e jantar, ou ofícios porque concorre a todo o subsídio e concurso ao qual pode concorrer – é um especialista da chamada “maminha”.
Quando, finalmente, consegue alguma coisa, agradece? Nem por isso. O pseudo-artista é um “cospe na sopa” por natureza. Gosta de se lamentar que é um incompreendido, que caso lhe tivessem dado o devido valor a tempo ou caso ele vivesse noutro país (porque raio não emigram alguns é um mistério para mim…), poderia ser um Saramago ou mais ainda.


Bom, ainda bem que há anos atrás os nossos escritores não se deixaram deter por problemas destes! Imagine-se o que era Fernando Pessoa batendo o pé na casa de comércio onde trabalhava escrevinhando correspondência e dizendo: “Vocês nem sequer me dão condições salariais para acabar de produzir a Mensagem! Vão arrepender-se, cambada de vermes, pois eu serei lembrado pelo Harold Bloom n’O Canône Literário! You know not what tomorrow will bring! O futuro é meu! Ah ah ah!”


Sejamos pragmáticos: é impossível patrocinar tanta arte de bolso. Por mais rico que fosse um Estado ou uma entidade, não podia ser nunca a Nssa Sra do Abono das Artes.  Até porque a maior parte destes senhores podia aproveitar melhor o tempo na produção artística original do que na caça de beneficência. Todo o artista, e, para ser coerente, todo o escritor que sinta sê-lo, há-de sê-lo sempre, não importa em que situação se veja. Nunca se ouviu falar de um escritor que tenha deixado de escrever por ficar sem meios. Os meios interessam muito pouco e a própria publicação é totalmente uma ideia secundária para quem escreve por impulso interno, por febre ou por talento. A publicação aparecerá, cedo ou tarde e que importa esse quando?


Quanto aos incentivos do Estado, são muito mais vantajosos quando aplicados na outra face da moeda, isto é: não falta gente a publicar neste país, o que pode faltar, por comparação, é gente a ler o que se publica. Por falta de interesse, de conhecimento ou de dinheiro. Portanto, em vez de um apoio dado ao José que quer publicar o livro que escreveu para a Maria no aniversário de casamento deles e que consta de cinco poemas de três linhas cada um, é sempre mais útil um apoio que vise o estímulo ou o alcance de uma obra já disponível por parte das pessoas que não o podem fazer ou que querem aprender a fazê-lo. Porque se ajudarmos o público a lá chegar ou a entusiasmar-se por isso, também se abre a porta a todos os desgraçadinhos, coitadinhos cujos braços já doem de pedir dinheirinho… é que quanto mais público, mais artistas!

Friday, October 3, 2008

A Figura que é do Público

Uma revista canadiana, La Voix du Succès, tem uma rubrica completamente inusitada onde analisam psicologicamente uma figura pública e lhe dão, ademais, conselhos sobre como harmonizar o seu espírito intimamente e a sua vida, de acordo com as perturbações que o psicólogo de serviço crê ter-lhe encontrado.
Não se pense que a figura pública responde a questões ou que são retiradas informações de entrevistas que esta tenha dado ou de atitudes que tenha demonstrado. O psicólogo simplesmente interpreta o que conhece da personalidade em questão (conhecimento igual ao de qualquer espectador de TV ou leitor de jornal) mas pondo em acção a sua teoria académica e experiência profissional. O consentimento do analisado não é para ali chamado, o que é muito curioso num país com leis tão rigorosas em relação ao assédio (por exemplo). Porque não também em relação à privacidade?

Folheando um número antigo - de 2005/2006, e escolhi este por ser da época em que eu habitava no país - encontrei uma análise à vida da sra Michaëlle Jean, que tinha acabado de assumir o cargo de Governadora-Geral do canadá (não é coisa pouca...), sendo antes uma conhecida jornalista. Quando digo "à vida", faço-o no sentido literal, pois não só interessa a sua nomeação e mudança de estatuto de figura pública - ela já o era antes, bem entendido - como também o seu casamento com um cineasta, a sua maternidade mais ou menos recente, o facto de ser jovem e até a culpa máxima de ser bonita e elegante. Ranjam os dentes, Grrrrr. Haviam de lhe encontrar uma perturbação qualquer, à falta de um podrezinho demonstrado em público.
"Gostaria de realçar que não vou falar do indivíduo Michaëlle Jean, mas sim da personagem pública e sua função oficial. Ao tê-la aceite, ela tornou-se objecto de fascínio." Mas, mais à frente, salta logo é sobre a vida pessoal da dita, a "vida de casal" onde, segundo ele, "as coisas vão confundir-se, porque não mais haverá intimidade e [...] a sua função constrange a liberdade do par. Os papéis da relação são mal definidos (aqui apetece perguntar se, como homem, repugna ao senhor psicólogo que a Senhora Governadora tenha mais destaque que o marido?!) e, no casal, um realiza-se através do outro" (bom, em assuntos íntimos esta frase não me parece má, mas suspeito que não é de intimidade que aqui se trata, mas sim de um deles gozar do estatuto de figura pública só porque é par do outro, coisa que aqueles espíritos que não têm brilho por si próprios acabam sempre por fazer, sejam homens ou mulheres. Pois temos muita pena deles.).

Tenho a dizer que não li nada na análise de uma página que dissesse respeito à figura pública ou ao seu desempenho profissional, anterior ou actual. A senhora é julgada por viajar muito e, assim, "prejudicar a rotina de segurança do quotidiano da sua jovem filha" (há que dar uma medalha ao marido cineasta, decero sempre disponível dentro da sua esfera artística boémia). Interroga-se o psicólogo se a Madame Jean "saberá o que acarretam as responsabilidades do seu cargo e também as responsabilidades de mãe, dado que são incompatíveis. Poderá ela assumir tudo?" Interrogo-me se não haverá uma empregada lá em casa, ou uma ama contratada, que fique com a criança a maior parte do tempo, em vez do marido herói e socialmente deprimido. Além de que o senhor psicólogo certamente terá em conta que a Madame Jean pensou em tudo isto e muito mais antes dele e só ela sabe as linhas com que se vai cosendo e amargurando.


Quando questionado sobre a encarnação do sucesso que é esta figura pública, o senhor psicólogo responde que ela é "a projecção do sucesso", mas não mais pois é impossível conciliar tudo como Mme. Jean dá a impressão de fazer. Aqui, confesso que concordo, porque nalgum momento há que escolher e estar hiper realizado em tudo soa um bocadinho a falso...

A última questão: qual o conselho do psicólogo para uma maior estabilidade na vida da Senhora Governadora? Ele recomenda que Mme. preserve a sua vida íntima para que "a sua criança" - algo sempre susceptível de trazer uma lágrima aos leitores e leitoras mais sensíveis! - e ela própria encontrem "a harmonia possível". Subitamente, o marido já não interessa (deve ser naturalmente harmónico...); é de ressalvar o advérbio "possível", claramente indicativo de que "muita" harmonia não será, com certeza...

Ora, como é possível a Madame seguir este bom conselho vindo de quem escarafuncha a sua vida em detalhe, sem saber nada de concreto ou realista sobre a mesma?

Claro que se tudo isto se passasse numa terra geograficamente pequena como os Açores não seria necessária uma revista Voz do Sucesso. O "boca a boca" (não confundir com a respiração de emergência!) funciona muito melhor e rapidamente. Também não seriam necessários jornalista nem psicólogo encartados. Temos vários, sentados nos cafés ou de passagem pelas esquinas que, mesmo sem diploma, não se coíbem de exercer a experiência, afiando a língua.

Ainda mais curioso do que esta experiência é o facto de, com tanta assumida invasão do território privado e confusão deste com o domínio público, haver tanta gente ansiosa por se tornar figura pública. Sobretudo nesta época, nota-se uma verdadeira oferta de (quase) anónimos desejosos e frementes de serem do povo. Realmente, há senhores e senhoras cheios de despojamento e de coragem, não há?...



Monday, September 8, 2008

Geografia dos Sorrisos e Anatomia das Vítimas


Com certeza que já viram as famosas estatísticas (da World Values Survey, disponível online) que revelam onde, neste planeta, é que as pessoas se consideram mais felizes. Estas partiram de uma pergunta simples, que se pode traduzir assim: "Tomando tudo em conta, diria que é muito feliz, feliz, não muito feliz ou infeliz?" As estatísticas da felicidade, por país, foram medidas pelo número de pessoas que se classificou como "muito feliz" ou "feliz".
Espantosamente, Portugal ficou em 31º lugar. Mais abaixo, explico porque usei aqui o advérbio "espantosamente".

Os três primeiros lugares da tabela são ocupados pela Islândia, Suécia e Dinamarca. Admitamos, desde já, que os países nórdicos têm pouco de comum entre si, tanto em costumes como (ou ainda menos...) em sentimento de união, e que a Islândia não será "irmãzinha" da Suécia, por exemplo.

Surpreende-me que o povo sueco esteja em segundo lugar na lista dos mais felizes. Afinal, é um dos povos europeus com maior taxa de suicídio (estatísticas da World Health Organization, disponíveis também). Podemos discutir que estão apenas a exercer a sua liberdade, é certo. No entanto, folheando uma revista (umazinha só!, o Courrier International de Agosto) encontrei as seguintes notícias sobre a Suécia:

1) O Instituto Internacional de Defesa Sueco vai passar a ter livre acesso e a poder interceptar quaisquer e-mails, sms e chamadas telefónicas que os suecos recebam vindas do estrangeiro. Isto porque nunca se sabe quem é que recebe o que eles denominam "mensagens cifradas" de "forças negativas". Quem decide quais são não está especificado e quem descodifica as supostas cifras também não. Em Psicologia Aplicada não é a isto que se chama "paranóia"?...

2) Numa escola em Lund, os convites da festa de aniversário de um aluno de 8 anos foram confiscados pelo professor, porque ele não tinha convidado dois dos seus coleguinhas. A escola não tolera a discriminação: se há uma festa, todos os rapazes ou todas as meninas (gira, a separação!) têm de ser convidados. Como o pai deste menino não achou graça, levou o caso ao Parlamento sueco.
A relevância dos assuntos discutidos no Parlamento só têm comparação com a preocupação dada à vida íntima de cada cidadão expressa no ponto 1.

3) Os suecos costumam ir tomar a vodka que fabricam à Dinamarca, porque a política de consumo de álcool na Suécia é muito restrita (ok,"muito" depende do ponto de vista: nos bares é preciso ter 20 anos para consumir álcool com mais de 3.5% vol.). isto não faz com que deixem de beber, mas dificulta o trânsito marítimo seguro no estreito entre os dois países, sobretudo à noite. Mas quem quer saber dos acidentes marítimos extra-territoriais dos cidadãos quando nas estradas tudo corre bem? A imagem de um país está salvaguardada.

Bom, talvez o conceito de "felicidade" na Suécia seja um pouco diverso, não é?...

Por curiosidade, refiro que o 50º lugar da tabela da felicidade era da Bulgária. mas num país onde abanar a cabeça para os lados significa "sim" e e abaná-la para cima e para baixo significa "não" (ao contrário da maior parte dos países deste mundo), as pessoas devem andar verdadeiramente confundidas.

Mas voltemos a Portugal e ao advérbio que utilizei. Custa-me interiorizar que tanto habitante de Portugal se tenha considerado feliz quando o que vejo é que há um grande número de pessoas com tendência para a vitimização (estatísticas de Carla Cook, não disponíveis porque ninguém tem acesso à mente da mesma). Pessoas que, ao falarem de si, agem sempre como se o desenrolar dos acontecimentos da vida fossem independentes delas próprias e da sua vontade, quanto mais da sua acção.
Antigamente, havia a noção fatalista do destino; hoje, está na moda a noção enjoadinha - ainda por cima, falha de sentimento e sobre a qual ninguém escreverá romances trágicos - da vítima. A vítima é aquele pobre ser a quem tudo de mal acontece sem que ele tenha culpa de nada, já se vê, porque é uma pessoa impecável e sabe Deus como é que os outros (ou seja, o restante Mundo) lhes estão sempre a passar incríveis rasteiras impiedosamente. Claro que é muito mais fácil adoptar esta atitude passiva e queixinhas perante a própria existência, porque assim se descarta de todas as responsabilidades acerca do que faz - a Culpa é sempre das outras pessoas (de toda a gente, menos do ser a quem se lamenta no momento).

É espantoso como a malta que se vitimiza obtém sucesso. É a senhora que faz beicinho e suspira "que não pode mais de calor e vai desmaiar" e passa à nossa frente e à frente de mais dez na fila, apesar de estarmos todos à espera há mais de três horas, alguns de nós terem crianças ao colo e outros serem seniores; é o colega que "tem e sempre teve dificuldades na vida" com eterna baixa, quando somos nós que estamos doentes e o vemos a passear as suas dificuldades na praia enquanto vamos a caminho do médico, atafulhados em papéis do serviço que devia ser ele a fazer; é a amiga que nos acorda às três da manhã porque se vai suicidar se não a formos já buscar porque "está perdendo a cabeça por este homem" que a deixou e nós vamos a correr, em pijama, aflitíssimas, para a encontrar perfeitamente bem, arqueando a sobrancelha e dizendo "olha, vieste depressa!".

Não há paciência. Apetece oferecer uma viagem low-cost a esta gente. Podia ser para a Suécia, já agora.


Monday, July 28, 2008

O Problema do Verão

O problema do Verão são as férias. As férias (tal qual como o Natal no Inverno) obrigam as famílias a passarem tempo juntas. Durante o chamado “ano lectivo” - que se prolongou imenso nos últimos anos para gáudio dos pais e desespero dos professores - as famílias podem fugir umas às outras com elegância e, sobretudo, com desculpas socialmente aceitáveis e necessariamente produtivas. Mas no Natal e naquele fatídico mês estival que os empregos chamam ironicamente de “descanso”, há que fazer qualquer coisa em conjunto, nem que seja pela primeira razão apontada (a social, pois claro!).


Não é por acaso, senhoras e senhores, que o maior índice de divórcios é em Janeiro e em Setembro. Ou seja, é quando as pessoas se dão conta (e outras, mais honestas ou experientes, admitem) que não se suportam. No resto do ano, é mais ou menos fácil segurar uma relação que se vai aguentando, ponta de conveniência aqui, falso jantar com amigos acolá. Agora nestas épocas, há que enfrentar o seio familiar.


Os adolescentes safam-se como podem: acampar com amigos, concertos de Verão, saídas à noite, etc. Poucas coisas haverá de tão aborrecidinhas para um teen como ter de passar as férias familiares com o resto da tropa caseira. Os pais que só têm filhos adolescentes tremem mais de medo do que os restantes, porque vão ter de estar sozinhos. A quantidade de casais que já não sabem estar sozinhos é enorme, dado que a maior parte confia nos filhotes para fazer conversa entre ambos, melhor dizendo entre os três, os quatro e por aí fora.


Mas há ainda uma hipótese salvadora, pais em aflição! Quando tiverem de falar só os dois, nesse estranho e revolucionário momento em que olham um para o outro e pensam como foram aí parar há dezassete anos atrás, podem falar exactamente sobre os filhotes desertores. Afinal, é um tópico seguríssimo e dá para horas. Quanto mais problemático o filho, mais tempo de conversação.


As famílias que têm mesmo de partir para férias carregadas com as criancinhas pequenas escolhem, regra geral, a casa dos avós como destino. Pais em vias de fazer as primeiras férias, segui este conselho dos mais experientes e toca de fazer o mesmo: a casa dos avós é como uma segunda habitação. Em primeiro lugar, é muito difícil haver lugar a discussões porque “não queres que a minha mãe ouça, pois não?”. Também é verdade que nem sempre é fácil haver lugar a grandes tropelias (“mas onde é que elas já vão…”, pensará a maior parte de vocês!) com a mamã a bater à porta para saber se querem um chazinho. De qualquer modo, as mulheres sentem-se mais descansadas porque mais livres das tarefas domésticas, junto da mamã. Os homens, como sempre, estão na maior onde houver um sofá e um jornal onde enterrar a cabeça para fingir que não estão a ouvir.


Há umas férias delicadas quando os avós, na melhor das intenções, se oferecem para ficar com os netos “para que o casal possa gozar umas férias a sós”. Às vezes, é mesmo impossível recusar, sobretudo quando os bons dos avós pagam as passagens ao casal para que vão passear em segunda lua-de-mel a um sítio exótico. Casais, a coisa melhor a fazer é ir, senão os avós desconfiam imediatamente! Lembrem-se que a idade traz muita manha e eles próprios já passaram por isso tudo que estão vocês a passar agora. Enganar os vossos pais só porque vocês já são adultos casados não é nada, nada fácil… Na maior parte das vezes, eles usam esse truque quando começam a ver a vossa vida a dois na curva perigosa. Sim, os nossos pais são tudo menos inocentes.


Nessa segunda lua-de-mel (sem doçura nenhuma e sem olhares para o astro nocturno, como previsto…), há que ter muitíssimo bom humor para aguentar aqueles hábitos dos quais se fugiu o ano inteiro, com estratégias tais como refeições nunca tomadas em conjunto, insónias, trabalho extra e paracetamol para as dores de cabeça que “sempre se teve”. Quando a paciência chega ao fim após horas a discutir em cima de um mapa o sentido a tomar para chegar à Ponte de não sei onde e ao Museu de não sei quê, vão para o primeiro café que encontram, por acaso muito semelhante ao de lá do bairro mas cinco vezes mais caro. É aí que a mulher, muito infeliz, desata a choramingar porque ele jamais a compreendeu (sendo “jamais” os últimos dez anos). O homem, muito mais comedido em público, pensa consigo próprio que terá ele feito para merecer esta criatura. Não raro discutem mesmo a sério, com todas as palavras que tinham arrumadas e guardadinhas no resto desse ano onde se viram o menos possível, já que estão livres da presença conciliadora das crianças e dos laços constrangedores da sociedade onde vivem habitualmente.


No fim dessa encantadora viagem, voltam a casa com a mala cheia de presentes para os filhos e um para os avós. Mandaram os postais da praxe aos amigos. “Não te esqueceste de ninguém?” pergunta ela, preocupada se terão esquecido de referir a felicidade matrimonial de mais um bem passado Verão a algum conhecido. Mas não, foi tudo tratado. Até ao próximo ano, se se conseguir chegar lá. Uf!


Tuesday, July 15, 2008

Os Heróis Precisam dos Gregos

“It was one of the few moments in my life that I was
 fully aware of being on the brink of a great experience.
And not only aware but grateful, grateful for being alive,
grateful for having eyes, for being sound in wind and limb,
for having rolled in the gutter[…], for having done everything
that I did do since at last it culminated in this
moment of bliss.”
Henry Miller, The Colossus of Maroussi












Se eu fosse uma mulher generosa a dar conselhos, e além disso sapiente, acreditando que a minha (breve) experiência de vida vos serviria de alguma coisa, poderia dar-vos uma recomendação de destino de férias e de leitura. Porém, jamais as ofereço, porque há uma zona no meu cérebro que, quando ouve uma bem intencionada recomendação, relembra imediatamente óleo de fígado na sopa. Para além desta memória de prenda envenenada, estou sinceramente convicta que ainda me falta ver muito Mundo – no sentido mais lato possível da palavra - para começar a aconselhar.




Decidi, simplesmente, falar-vos de um livro pouco conhecido, embora o seu autor o seja sobejamente. De facto, já todos ouviram falar de Henry Miller (1891-1980), quanto mais não seja pelo facto do seu livro O Trópico de Câncer ter levado a uma série de processos em tribunal em ‘61 que questionaram as leis da pornografia nos EUA. As suas obras ousadas do ponto de vista da sexualidade (algumas autobiográficas, como a trilogia na qual descreve a sua vida após o divórcio da primeira mulher) tornaram Miller famoso, ofuscando os seus outros livros – a correspondência com outros autores onde se dedica à reflexão filosófica e à crítica social, as novelas surrealistas, os ensaios de crítica literária, as short-stories ou a vasta literatura de viagens que produziu.




De entre os últimos, destaco a mais interessante e inesperada viagem – Miller nunca teria embarcado se não tivesse ouvido a descrição da Grécia feita pela sua companheira de casa, que lhe pintou “a world of light such as I had never dreamed of and never hoped to see”. Desta ideia e de uma mitificação toda feita da combinação artística entre o sonho e o real, a História e o Mito criada em Miller pelas cartas constantes recebidas de Corfu, onde morava o seu amigo Lawrence Durrel (também ele escritor), nasceu o desejo inadiável de partir para as Ilhas Gregas.




A viagem aconteceu em 39-40 e o relato vívido, cativante, verdadeiro de um país e de um povo que tão pouco mudou no seu essencial arquetípico e personalístico e tanto mudou no acessório fácil que o turista distraído apreende ao primeiro olhar chama-se The Colossus of Maroussi.




Durrel acompanha Miller da capital em diante, dando-lhe ainda a conhecer várias outras fascinantes personagens. Miller torna-se um admirador dos gregos, que, segundo ele, preservam as qualidades humanas que parecem ter sido esquecidas no resto do Mundo: a paixão pela vida, a generosidade, o quase total desprezo pelo material, o conforto na vida simples e também a confusão agradável do caos e a assumpção de um não resolvido espírito contraditório. Esta gente agrada-lhe tanto mais quanto representa a antítese ao seu próprio povo – os americanos absurdamente capitalistas – se bem que Miller faça também comparações com os ingleses (dominadores na época da ilha de Corfu não tendo os nativos em grande consideração), cuja aristocracia falha por ser demasiado forçada, e os franceses (pois era em Paris que Miller habitava), cujo requinte era totalmente desprovido de um afecto espontâneo e natural.




A admiração de Miller encontra valor simbólico no poeta grego Katsambalis, o Colosso que figura no título. Katsambalis é um encantador pela palavra, pelo seu sentido de aventura interior maior que a vida, por fazer crer que o génio (ao invés da mediocridade) é a norma: “The task of genius, and man is nothing if not genius, is to keep the miracle alive, to live always in the miracle, to make the miracle more and more miraculous.” Da vida, Katsambalis tira mais vida, como quando imita um galo a cantar de madrugada em plena Acrópole e lhe respondem vários galos, despontando, assim, a manhã.




Miller guarda também da Grécia a incomparável paisagem semelhante a uma tela (importante para quem, como ele, pintava), as limpas e modestíssimas pousadas, o humor de se encontrar num barco repleto de gente, animais e carga dentro do mesmo espaço ou de enfrentar o perigo e o enjoo de uma vez só, ambos profunda e teimosamente. Também não esquece a língua grega, que é “para poetas, não para mercadores”, flexível, amante, uma língua para homens que precisam de se inventar em heróis.




The Colossus of Maroussi não é um elogio gratuito à Grécia. Fala também da sua rudeza ocasional, da sua falta de meios na província, da sua loucura intempestiva. Mas é, sem dúvida, o relato mais verídico de um périplo pela Grécia. Todos os que lá foram com olhos de ver (logo, fora dos sítios de boom turístico) ou lá viveram sabem que é um lugar onde o vento, a água, a terra e o fogo são eles mesmos, em estado puro. Só isso, combinado com o aroma ancestral da História e a carga do Mito, fazem da Grécia sem rival.



Nota: A foto que publiquei a acompanhar o artigo foi uma foto diferente, da Ilha de Mykonos. Esta é da ilha de Syros. Uma espreitadela à foto original aqui: ...



Friday, July 4, 2008

Um Certo Ar de Português

Quando era miúda, sofria de um terrível problema: não parecia portuguesa. Tão pouco parecia outra coisa, a julgar pelo que as vizinhas diziam à minha avó: "A sua neta parece estrangeira... Mas não sei bem definir de onde" ao que a minha avó, sempre mordazmente sarcástica, respondia que "de outro planeta" era a hipótese mais provável.

Depois, mais crescidinha - se bem que não muito, admito - tive várias vezes discussões sobre o que fisicamente define o povo português. Há até uma canção, desse género a que o povo português tão carinhosa e sinceramente apelida de pimba, que se chama "A bela portuguesa". Por mais voltas que dê ao miolo, não faço ideia do que seja uma bela portuguesa. Consigo, sem dificuldade, imaginar uma bela angolana, uma bela brasileira, uma bela dinamarquesa, uma bela nipónica mas criar um estereótipo de bela portuguesa é-me impossível.

Que têm os portugueses de tão diferente dos gregos, por exemplo?

  A minha tia, que é loiríssima, alva de neve e com olhos aquáticos, podia ser norueguesa e, se tivesse sardas e fosse um bocado mais dura de rosto e bem mais de formas, seria bretã francesa. O meu primo tem claramente a cor de pele e as feições reservadas e profundas do Médio Oriente (tal como uma boa parte dos portugueses, aliás...) e é costume olharem para ele de lado nos aeroportos dos Estados Unidos. Tenho outro primo que é mulato. A minha irmã tem os olhos rasgadíssimos como as orientais mas a figurinha um pouco esquiva de uma cigana húngara na juventude... E por aí fora.


Entre as personalidades públicas portuguesas, também há algumas que, definitivamente, não têm ar de portugueses, começando pelo Primeiro Ministro que é o político com menos cara de português que alguma vez tivemos. Tanto Durão Barroso como António Guterres eram infinitamente mais portugueses. Consigo imaginá-los saindo da praia, abrindo os porta-bagagens do carro, onde estão lancheiras de vime de onde retiram rissóis de bacalhau (e respectivos palitos para o after-meal) que distribuem pela família. Consigo pensar neles a distribuir amigáveis piparotes pela criançada e a discutir com as bem-amadas mulheres nos passeios dominicais de carro. Consigo vê-los de bandeirinha futebolística em riste. Têm, enfim, um certo ar de português.

Foi o rosto do Primeiro Ministro actual que me levou a equacionar o problema sobre outra luz. Porque é que o PM não parece português? Tendo em conta que o símbolo do Homem Tuga é o Zé Povinho, não se pode dizer que o Engº Sócrates possa ser considerado um seu descendente simbólico...  Atenção que não estou a falar das roupagens, nem pensar, até pelos anteriores exemplos dados. O que distingue o PM, para além de um bom aspecto congénito que, quer se goste dele ou não, é inegável e desconfio que foi o que lhe deu metade dos votos, é o seu ar ad aeternum optimista. Quando se pensa no português, pensa-se em alguém cinzentão, saudoso, e, sobretudo, aflito. Quando perguntaram a um empresário muito viajado com negócios em Portugal (vide aquelas revistas de avião) o que caracterizava os portugueses, ele respondeu "um certo olhar triste", o que, embora poético, não deixa de apontar para o eterno fado nostálgico da melancolia.

Outro homem que não tem ar de ser português é o Miguel Sousa Tavares. Primeiro, tem tão bom aspecto que não tem medo nenhum de ser negligée e daquele olhar "estou-me nas tintas para vocês todos e ficando de saúde" ao contrário daquela absurda necessidade de aprovação submissa tão cauda da UE; depois, porque tem uma herança genética materna que arrasa qualquer um, abençoada sejas Sophia. Como corolário, escreve umas opiniões que demonstram que também não tem medo de dizer o que pensa (vide crónicas do Expresso). Só Deus sabe como foi casado tanto tempo com uma senhora moralmente tão conservadora e exteriormente tão pãozinho sem sal como a Laurinda Alves, mas, enfim, errar é humano, arrepender-se e arrepiar caminho também.

Voltando à vaca fria - aproveito para dizer que ainda ninguém me soube explicar esta expressão! - é muito complexo caracterizar fisicamente um português. Naqueles postalinhos da Unicef, onde há crianças de mão dada a dar a volta ao Globo, facilmente se percebe que a criança alta e de socas de madeira é a holandesa, que o miúdo de pele café com leite e de sombrero é o mexicano, mas o português é quem? Mesmo os judeus, tradicionalmente apátridas, arranjaram maneira de se distinguir, sobretudo se forem ortodoxos. Os portugueses devem ser o único povo que bem podia ser outra coisa qualquer. Embora Gabriel garcia Márquez fale de "pestanas portuguesas" que suspeito serem aquelas longas... longas...

E, no entanto, quando estamos noutro país, qualquer português reconhece outro só de olhar para ele. Ou não é? Mas eu diria que isso não advém tanto de características morfológicas, nas quais está mais que provado que somos um imenso caldinho de raças (uns mais que outros, conforme elas estão mais ou menos geracionalmente longe) e ainda bem que assim é!, mas da tal expressão no olhar. Subjectivo? Claro que sim. Outra coisa não se esperaria de gente multiracial.

Nos anos 50, um dos nossos antropólogos - Jorge Dias - debruçou-se sobre as " Características do Ser Português", um texto que, apesar de polémico e discutível nunca foi, até hoje, rebatido nem actualizado por outro estudioso. São uma data de páginas interessantíssimas, todas elas sobre o fundo temperamental, o que, enfim, constitui a persona portuguesa. Nem uma só palavra sobre características físicas. Como as podia ele fraccionar de modo comum?

Décadas antes, outro estudioso - Filinto de Figueiredo - compilou as "Características da Literatura Portuguesa". Mas que me conste, ninguém achou, ainda, um denominador comum para o look português. Não vale dizer que as senhoras têm anca larga e os senhores têm bigode farto, porque o último foi mais apanágio de uma geração que outra coisa e a primeira pode acontecer em todo o mundo (ide à Martinica, ide e espantai-vos!).

Portanto, não me parece grave dizerem-me que não pareço portuguesa. Na verdade, ninguém descobriu ainda o que isso é!


A Fada do Lar Moderninho



Ninguém tem dúvidas que nos últimos 50 anos, aconteceram grandes revoluções no mercado laboral e enormes mudanças sociais que transformaram completamente o papel da mulher. Não é preciso vir um sociólogo prová-lo; basta comparar aquilo que faço hoje e o que é esperado de mim com o que fazia a minha avó e o que era esperado dela. Na realidade, por cá, a geração que fez a grande reviravolta neste aspecto foi a geração da minha mãe. Internacionalmente, como aqui, as coisas continuam a abanar - diria até “a luta continua” - e a prová-lo está o novo anúncio da Mercedes Benz, onde o mecânico é uma mulher, de ar competente e simpático (não, não é uma modelo siliconizada, a testar o carro fantástico do marido rico; é mesmo a prova de uma carreira igualitária onde não há medo de sujar as mãos).


No entanto, no que respeita à partilha de tarefas caseiras e dos cuidados com os filhos parecemos ter ainda muito caminho para percorrer… Também não é preciso um estudo para o comprovar, embora já se tenham dedicado a isso: “O que mudou na vida dos casais de hoje”, in New York Times, 15.06.08, cuja conclusão, após várias estatísticas no terreno, consultas a empregadores, conselheiros e académicos é que “as mentalidades continuam muito parecidas ao que eram há meio século, no que respeita ao papel da mulher em casa e na família”. Por outras palavras, as mulheres mudaram a vida laboral mas não a gestão da vida doméstica.


Segundo o artigo, “os índices de partilha dos trabalhos domésticos entre o homem e a mulher quase não se alteraram nos últimos 90 anos”. Parece exagero, mas não é, se pensarmos que, regra geral, as mulheres hoje trabalham a tempo inteiro mas também cuidam da casa, refeições e filhotes. Os homens ajudam à segunda parte. Esta diferença verbal é que exprime toda uma diversidade de base de pensamento, tão profunda e arreigada que não cabe na minha opinião(zinha).


No entanto, há aspectos engraçados neste estudo que valem a pena salientar. Por exemplo, as mulheres que trabalham fora de casa dedicam cerca de 28 horas/semana às tarefas do lar (como cozinhar, tratar da roupa, limpar) e os respectivos cônjuges masculinos “apenas” 16 – eu, por mim, já acho muito, onde raio acharam elas estes pares?! Logo se vê que foi no estrangeiro. Curiosamente, embora as mulheres se sintam injustiçadas com esta divisão, também se sentem “gratas” pelo empenho dos parceiros, pois é claro que eles fazem mais do que os seus pais  - e os paizinhos delas – faziam.


Para além deste compensador e freudiano aspecto, as mulheres parece que têm padrões mais elevados que os homens no que diz respeito às tarefas do lar e ao cuidado dos filhos. Ou seja, acham sinceramente que os homens não têm jeitinho nenhum. Parece que sofrem de Parkinson quando lavam a loiça tal é a quantidade de coisas que deixam cair; a imundície que deixam acumular nos cantos da casa faz com que seja vergonhoso até o carteiro espreitar à porta; ao vestirem os filhos, misturam camisolas de pijama com calças de linho e jamais penteiam os cabelos das raparigas.


Homens, sei que esta táctica – a do simpático e bem intencionado elefante, de pata grossa e desajeitada, que até gostava de fazer melhor mas não pode, coitado, porque não está na sua natureza  -  resulta. As mulheres, que se sentem sempre socialmente julgadas pelo estado do seu lar e pela aparência das crias, correm logo a dizer “deixa-me ser eu a fazer, eu acabo isso mais depressa” ou “eu estou mais habituada, fazes para a próxima” enquanto os homens, rindo-se por dentro do ovo mal estrelado que até sabem fazer muitíssimo bem mas do qual se sabem livrar ainda melhor, lá vão preguiçar. De facto, a melhor arma de resistência masculina ao trabalho doméstico é serem empatas: fazer enternecedoramente mal qualquer serviço, aparentemente de forma ingénua e desejosa de ajudar. Por seu lado, a mulher, que tem mais do que fazer do que andar a ensinar-lhe o elementar da vassoura e do forno, acaba por preferir dar conta do recado.


Os homens de tal forma aperfeiçoaram esta figura aparentemente inapta mas cheia de boa vontade que as mulheres, esfalfadas após cozinharem e limparem a cozinha, vão dar-lhes um beijinho porque eles, caso pudessem e soubessem, teriam feito o mesmo por elas. É de mestre!... E seria, também, muito divertido, caso eu não fosse mulher e não estivesse perfeitamente consciente que qualquer homem é perfeitamente capaz de cozinhar tão bem como eu. Muitos, melhor. Simplesmente os homens adquiriram o hábito de cozinhar para um público, como as visitas (em casos mais graves de necessidade de apreciação, tornam-se cozinheiros profissionais); de modo que uma mulher, querendo que ele cozinhe, tem de se fazer muito exigente, que remédio.


Outro factor interessante a apontar é o facto das mulheres adquirirem uma certa satisfação por serem consideradas “encarregadas da educação dos filhos” e, no fundo, cabeças do casal em tudo o que diga respeito aos assuntos dentro de portas. Ou seja, a velha máxima de que ele manda fora do lar e ela dentro do mesmo funciona, triste e saudosamente ainda, dentro da cabeça das pessoas. Talvez por isso seja mais difícil ver um homem abdicar do seu emprego para ficar com um bebé, por exemplo, e é seguramente por isso que quase todas as mulheres entrevistadas – mesmo aquelas cujo emprego é mais rentável do que o do companheiro (e não são poucas) – consideram que é mais importante que ele se satisfaça profissionalmente do que elas, porque elas têm interesses familiares compensadores (e eles não??!! Mas não são da mesma família?! Dá ideia que estas senhoras se têm em muito má conta…).


Claro que a explicação vai mais fundo e não cabe aqui. De qualquer modo, o facto das mulheres ficarem felizes por serem “presidentes” dos círculos familiares é, também, uma conspiração social. Desde as empregadas domésticas (outra tolice social, pois a casa mais limpa e arranjada que conheço tem um empregado doméstico homem e não uma senhora) às amas e aos professores, todos esperam que seja a mamã a organizar as coisas, do mesmo modo que os mestres de obras esperam que seja o papá a pagar as contas. Quando o caso é diferente, toda a gente fica a ruminar em quem é que naquela casa usa as calças e quem usa os soutiens (sendo provável desde a moda de 1960 que ambos usem as primeiras e nenhum os segundos).


Entretanto, segundo o estudo que li “a distribuição de tarefas acompanha as linhas tradicionais de género”, o que equivale a dizer que os casais de gays ou de lésbicas (como aliás é mencionado no mesmo) têm maior equilíbrio na divisão do trabalho intra-muros: dividem tarefas sem grande dificuldade, tratam dos filhotes em pé igualitário (não querendo isso dizer que não haja definição de papéis, embora eu não saiba bem como se processa) e não têm problemas em momentos de sacrifícios profissionais em relação à família. Ou seja, a aparente solução, e porque a mudança de mentalidades é algo muitíssimo complexo e demorado, é uma rapariga ser mais feliz tornando-se mesmo Maria Rapaz. O que podia até ter alguma graça, não fosse – como diz um grande amigo meu - isso ser quase irrelevante hoje em dia, pois todos sabemos que uma Maria Rapaz passa sem graça nem reconhecimento no meio de tanto Rapaz Maria, o que destrói a originalidade e gozo da ideia.


Então, que fazer? Pessoalmente, parece-me haver duas boas políticas para pôr um homem a colaborar: ou não travar a natural tendência para a javardice de um companheiro, deixando mesmo a casa atingir um nível de sujidade considerável com pêlos de cão e restos de unhas até que ele a limpe com esmero, recusar-se a qualquer tipo de inutilidades (engomar, por exemplo, é uma absurda perda de tempo, porque ninguém “olha para a tua camisa, achas que te dão essa importância toda?”), jamais lavar alimentos de modo a que haja terra, lagartas e sangue seco de cortes nas saladas… hum…
… Ou ser a perfeita fada, com a casa-museu onde ele não pode espirrar sem ir limpar o vidro dos respingos, onde não se comem alimentos que cheirem mal tipo queijo da ilha e o bacalhau é sempre espiritual, onde as cortinas combinam com o edredon cor-de-rosa e os pratinhos têm um bordadinho que combina com o forro da cadeirinha e o azul da base dos copinhos. Levezinhos.


Qualquer uma destas situações acende um debate fantástico sobre as responsabilidades de cada um e “a impossibilidade de viver numa casa assim!” Depois, sempre é mais fácil para uma senhora, habilidosa e conhecedora das manhas dessa criatura preguiçosa tão bem habituada pela sua mãe, levá-lo a conhecer mais de perto o Soflan e o Sonasol.


Thursday, June 19, 2008

Os Livros que a Minha Tia Jamais Entenderia

Não sou um escritor de ficção didáctica.[...]
Para mim, um escrito ficcional existe apenas na medida em que provoca
- e digo-o francamente - bem-estar estético, ou seja, o sentimento de estar, 
de algum modo, ligado com outros estados do ser onde a Arte (e também a 
Curiosidade, a Ternura, a Delicadeza, o Êxtase) é a norma. 
Não há muitas obras assim. 

Vladimir Nabokov


Recentemente, estive em várias apresentações de livros e em todas, felizmente, estava presente o autor. Parêntesis para dizer quão triste é uma apresentação de livro póstumo, até porque ficamos todos seriamente a remoer se o autor queria mesmo que a obra se publicasse, embora ninguém tenha coragem sequer de o murmurar. Sim, porque a ideia de que a família conhece os desejos e desígnios do mesmo é muito discutível - todos nós sabemos como funcionam as dinâmicas familiares e a de alguém famoso não tem por que ser diferente... Adiante.

O ponto é que em toda a apresentação de uma obra está sempre aquele que vai dissertar um bocadinho sobre ela. Eu própria já estive nessa situação (como autora e também como apresentadora de uma autor) e sei como é complexo falar sobre a obra de alguém que está ali ao nosso lado e que, depois, vai usar da palavra. Em boa verdade, o perigo não é assim tão grande, pois seria preciso uma fera em estado de sobreexcitação para contestar publicamente o que se acaba de dizer (pois mesmo que esteja redondamente errado, é sempre fatalmente lisonjeiro) sobre a sua pessoa e ademais publicação.

No entanto, é muito curioso ver o que diz quem apresenta o livro, sobretudo a dois níveis. Primeiro, a ideia tão frequentemente transmitida do "propósito do autor" ou, um pouco mais corriqueiro e grave, "a mensagem que o autor nos quer dizer". De facto, a mensagem - se é que ela existe de modo tão concreto e para-literário - só o autor a pode saber e revelar. Toda e qualquer outra ideia que seja quem for retire do livro é apenas e tão só a sua interpretação do mesmo, por mais literato que esse alguém seja.

Ora, como sabemos, as interpretações são como as sentenças - cada qual tem a sua. Não é por isso de estranhar que sejamos confrontados com um certo ar de surpresa resignada dos autores dos livros (que poderíamos traduzir por "hã?!?!") pois realmente rara será a vez que um escritor terá pensado na suposta mensagem que o comentador ali afirma como propósito mais que certo da obra. Já dizia Nabokov, quando o instigavam a comentar a origem e desenvolvimento das suas obras: "Por acaso, pertenço àquele tipo de autores que, ao começar a trabalhar num livro, não tenho outro propósito que não seja o de me livrar dele!"

Geralmente, estas interpretações são férteis em termos fora do uso comum, o que me leva ao segundo nível de comentários das obras, mais teórico e menos subjectivo, que é moda dos comentadores mais directamente ligados à Literatura. Os Teóricos Literários levam-se muito a sério, mais do que à própria Literatura e têm até muita dificuldade em inserir nesta última algo que não se enquadre dentro dos padrões habituais. Assim, a primeira coisa a fazer quando reconhecem um autor é inseri-lo numa escola, verificar em que género literário está aquilo em que escreve, as categorias da narrativa e do discurso e fazer com que as excentricidades criativas do autor sejam correctamente apadrinhadas dentro do cânone. Caso contrário, é a morte do artista.


Não há, porém, maior tédio, do que ver um destes senhores a apresentar uma obra...logo temos "a prólepse que nos leva a uma maior compreensão da diégese"; "o narrador empírico e omnisciente que se confunde com o autor, embora, naturalmente, não devamos esquecer a célebre distinção de ambos"; "a intratextualidade das personagens redondas"... entre outras preciosidades. Após 10 páginas disto, raro é o elemento do público que consegue aguentar as pestanas. Porém, todos, sem excepção, batem palmas, com receio de que o ouvinte do lado, os julguem menos cultos. alguns chegam a comentar a "essência" desta abordagem. Mas o facto é que apenas 1 em 100 terá entendido alguma coisa! E o mais engraçado é que o autor de uma obra ficcional está-se literalmente nas tintas para a Teoria da Literatura e acha risível todos estes termos nos quais, realmente, nunca pensa quando está a escrever. Ou acham que um tipo se senta a escrever pensando: "Agora o que se me dava aqui fazer era uma rememoriação analéptica, para que a história ganhasse mais volume! Ao trabalho!"

Ultimamente, também os jornalistas gostam de fazer umas reportagens a atirar para o incompreensível: com palavras muito caras, mas sem sumo nenhum após a sua desconstrução. A isto, um amigo meu chama "reportagens que a [sua] tia não entende", sendo esta tia, obviamente, uma personificação do povo. Pois, estas apresentações de livros a minha tia jamais entenderia...



Wednesday, April 23, 2008

Os Amigos e as Amigas

Na nossa cultura (está bem, pronto, em todas as culturas), é muito complicado uma mulher e um homem serem só amigos. Quero dizer, serem só amigos, realmente amigos, amigos a sério. Isto sem que o resto do mundo pisque o olho uns aos outros quando os vê a tomar café todos os dias e não dou duas semanas para que não esteja aí feito um grande rumor sobre o bebé que já vem a caminho.

E então? Podia fazer aqui um texto acerca de como as pessoas são mesquinhas, como pensam sempre no mais óbvio (sendo óbvio diferente de verdadeiro) e não dão importância aos sentimentos elevados - a amizade a sério, e não há amizades que não sejam a sério, é uma espécie de amor sem componente sexual -, em como é sufocante estar sempre a reboque do que pensa o pai, o vizinho, o barman, o outro amigo que temos e a senhora que vende fruta. mas, realmente, o problema está na cabeça de cada um.

Grande parte dos meus amigos são homens. É de notar que a maior parte das mulheres diz o mesmo. Entre a maior parte das mulheres - ressalvo a maior parte, porque tenho aí umas sete amigas por quem saltaria para o meio da fogueira - há uma espécie de agressividade latente. Enquanto os homens se cumprimentam com genuíno entusiasmo com grunhidos monossilábicos como "Uôp!", mesmo que não se tenham em grande conta, as mulheres cumprimentam-se com um sorriso mas fazendo "Grrrr" entredentes. Há um rotweiller em portência em muitos espíritos femininos. No geral, as mulheres não gostam umas das outras e isto, muito simplesmente, porque ninguém em seu perfeito juízo gosta dos seus directos rivais. As mulheres têm-se nessa conta. Dizem á boca cheia das outras mulheres que elas são interesseiras, cheias de esquemas e más peças, no geral. Isto vindo de quem tem conhecimento de causa em termos de género não abona muito a nosso favor, convenhamos...

Na verdade, qual é o problema subjacente? É a questão da lealdade. Vamos deitar uma olhadela às variantes possíveis.

Na amizade homem-homem podem faltar muitas coisas, mas lealdade e cerveja nunca faltam. Por exemplo, à mente de um homem jamais, em caso algum, vem a ideia que o seu amigo do peito possa deitar o olho (e muito menos estender a mão e, de caminho, apertar o resto do corpo) à namorada dele. Já na amizade mulher-mulher, uma delas admite sem custo que a sua amiga da alma possa fazê-lo ao namorado dela porque "conhece a psicologia e sabe do que a casa gasta". Perguntando a esta mulher o porquê, ela não dirá que é desconfiança, não! Dirá uma desculpa sem sal: que a carne dos homens é fraca (coitados... e pensar que gostamos deles... será do acompanhamento? enfim, adiante) e que as mulheres (grupo do qual ela se exclui automática e airosamente, desprezando essas criaturas ignóbeis e amorais) levam qualquer um à perdição. Os homens, pelo contrário, acham que as namoradas dos amigos são, automaticamente, intocáveis (desconfio que assexuadas) mesmo que antes lhes achassem piada. E isto porque, no modo de pensar masculino, aquela mulher passa a ser parte do amigo deles, da mesma maneira que as outras manias que ele tem, como ter peixinhos de aquário, discos de jazz ou velejar aos fins de semana. E, para estes senhores, a posse não é uma coisa desprestigiante.

É também (mas não só) por esta razão que os homens gostam de apresentar a namorada aos amigos; automaticamente, está a dizer à malta que aquela ali é a rapariga dele e os restantes machos ficam inibidos de lhe sequer pensar em lhe tocar - ou, se pensam, ficam-se mesmo só por aí segundo o código da lealdade. Os homens, nestas coisas da amizade, são seres mais simples. Eu, aliás, acho que são seres bem mais simples que as mulheres em quase tudo, sem que daí advenha vantagem nem desvantagem para os ditos nem para nós.

As mulheres têm, à partida, uma enorme desvantagem: regra geral, têm uma língua de serpente ao falarem umas das outras. Por pior que um homem fale de uma mulher, raramente alcançará tanta mestria como uma mulher a destilar veneno sobre outra, Mais de metade das vezes, os homens (por descaso ao pormenor, dado que o que lhes interessa é a imagem de conjunto) não reparam nos detalhes em que o espírito feminino repara. As mulheres, porém, revistam tudo umas sobre as outras, nem que tenham apenas olhado pelo cantinho do olho. E depois rotulam. Também o fazem em relação aos homens, mas com eles são mais meiguinhas na apreciação, porque "é homem, coitadinho, não tem culpa de ser assim..." Na verdade, as mulheres acham que governam tudo e que dão aos homens a ilusória sensação de que o comando e as ideias são deles. Eh eh eh. Há nisto alguma verdade, porquanto todos sabemos que a escolha final depende sempre de uma mulher desde que um homem não abuse da força.

Mas voltemos à vaca fria (expressão que continuo a não perceber e agradeço que ma expliquem; se alguém souber é favor mandar esclarecimento, por favor): a amizade entre um homem e uma mulher. Será que é tão difícil apenas e só porque a comunidade acha que não é lá muito "normal" que sejam "só" amigos? Na verdade, não é só por causa disso. Os homens também estão convencidos que, sendo eles homens, têm obrigação de, pelo menos, tentarem ser mais qualquer coisa do que só amiguinhos para café e cinema e passeios de barco. Por outras palavras, é preciso passarem à verdadeira acção. Por seu lado, as mulheres, quando verdadeira e realmente, só querem ser amigas deles (o que não é sempre linear, ah pois não, e aumenta a confusão!) ficam muito escandalizadas quando eles lhes propõem outra perspectiva.

... E será assim tão criticável? Vamos a ver: na verdade, senhoras, é perfeitamente possível grandes e profundas amizades onde não haja sombra de atracção. Mas também existem aquelas onde ela está presente. No último caso, há duas hipóteses: podem resolver o assunto e ficarem grandes amigos depois (se bem que também há a possibilidade de não se poderem ver se a coisa correr mal ou de se quererem ver a toda a hora caso corra mesmo bem) ou ignorarem o facto de que sempre que falam nos respectivos amores ficam os dois terrivelmente ciumentos e empatas.

Claro que é simpático viver uma amizade onde uma pessoa não tem de se preocupar com nada destas chatices sentimentais e pode estar ali como está com os seus irmãos, na pura. Mas se se souber gerir, elegantemente, os vários suores e palpitações que advêm de se estar atraído(a) por um amigo(a) não é de todo mau; é diferente. O que importa, na minha perspectiva -que é, nem mais nem menos, do que aquela de quem não percebe nada disto! - é que a amizade nunca se perca. Porque, afinal, todos os amantes são também amigos. Ou deveriam ser.






Thursday, April 17, 2008

Ódios de Estimação

Quando era muito mais jovem (e posso dizê-lo plenamente porque sou trintinha e, portanto, faz todo o sentido dizer estas frases sobre a adolescência suspirando com fingido pesar) fazíamos umas listas muito engraçadas sobre os nossos amores de estimação. As listas tinham coisas tão díspares e essenciais à vida como "caminhar à chuva", "enroscar-me no sofá quando chego a casa", "morangos", "o rapaz da terceira casa a contar da esquerda quem sobe a rua", ou "gupis". Até que um dia, uma de nós se lembrou de fazer a lista dos ódios de estimação e a vida não mais foi igual. Chegámos à conclusão que o ódio também era essencial. De facto, para algumas de nós era fonte sustentável de vida, uma espécie de versão repugnante da paixão. Iargh. Horrível, não é? Mas lá que era assim, era.

Explico melhor: há aqueles para quem um odiozinho por outro alguém é profundamente acarinhado, muitas vezes por pormenores irrelevantes - a maneira como ele descasca a fruta (para já, porque é que tira a casca da maçã quando seria muito mais normal e saudável comê-la, esse snob de treta!), os foulards pirosérrimos que usa (giros caso fossem usados por outra pessoa, claro está), a maneira como ajeita "aquele" cabelo, os trejeitos que faz e as piadas que conta. Meu Deus, como é possível que mais ninguém repare nestes atentados sociais?

As pessoas que alimentam odiozinhos não procuram fugir deles. Antes fazem de tudo para encontrar o seu desamor, para poderem fazer aquela catarse e despachar-se dos seus maus fígados num indivíduo que escolheram a dedo. Adoram dar de caras com ele (casualmente, já se vê...) para poderem coleccionar mais umas quantas razões, inteiramente justificáveis, para melhor e mais largamente o odiar.

O mais curioso é que quando lhes perguntamos porque é que não gostam de determinada pessoa (construção verbal muito suave a que logo retorquem "Não gosto?! Eu não posso com esse gajo!"), não conseguem encontrar uma razão plausível. Até admitem que ele possa ser "um bom tipo, faz algumas coisa generosas, mas eu cá tenho-he um pó!", o que é ainda mais extraordinário. A quantidade de pessoas que odiava a Madre Teresa de Calcutá, por exemplo, é flagrante. Até houve um senhor que se deu ao trabalho de escrever um livro com todos os pequeninos podres que encontrou sobre ela, a que chamou, muito sugestivamente, "The Missionary Position".

Conclui-se que os odiozinhos não são, de modo algum, baseados na racionalidade ou naquilo que nos fizeram. O odiado não tem culpa alguma no cartório na maior parte dos casos. Os ódios garndes - logo, não estimáveis, mas sim aqueles que nascem das entranhas, vulgarmente confundidos com medo - não são para aqui chamados porque, obviamente, advém de causa justa (o que é sempre difícil de determinar, mas existe na cabeça de quem o sente, pelo menos).

É muito curioso ver que os odiozinhos de estimação ocupam imenso do tempo livre de quem os tem. Aliás, estou convencida que quanto menos tempo há para as paixões, mais há para os ódios, mas esta teoria é inteiramente pessoal e subjectiva, porque na minha lista de ódios só havia "ganchos no talho com carne de porco pendurada", "todas as formas de hipocrisia" e "ser obrigada a dizer que estou a divertir-me quando não estou e que gosto quando não gosto". Pensei incluir o professor de Filosofia mas depois achei que não, porque era muito claro que ele me odiava a mim e a quase toda a gente, sendo certo que todos o odiavam. Não fazia sentido. Outra coisa importante sobre os odiozinhos é esta: é quase impossível nutri-los por alguém que sente algo do género por nós. Um odiozinho não é uma retribuição. É algo inato, que nasce da embirração pura. Muito naturalmente, diga-se.

Para que servem os odiozinhos, para além da óbvia função de fazerem quem os destila catalizar os seus maus sentimentos todos para uma criatura única? Bom, do ponto de vista orgânico causam a quem odeia uma data de problemas  porque lhe sobem a tensão arterial, a angústia e, em casos mais graves, conduzem a uma tal revolução que quase estamos perante uma pré-paranóia. Socialmente, também servem para que o odiado seja valorizado. Afinal, está-se a atribuir-lhe suficiente importância para lhe dedicar tanta energia e tempo (não interessa se positivo ou negativo). De facto, o contrário de uma paixão seria a indiferença e não o ódio, como todos sabemos. Mas essa história é outra...

Resumindo: um odiozinho de estimação poderá até nascer, mas o melhor é dar cabo dele pela raiz. Bom mesmo é gastar o nosso tempo, que é tão pouco, com a primeira lista.


Tuesday, February 12, 2008

O Amor Totalitário

Visto que chegámos outra vez àquela época do ano lamechas dos coraçõezinhos nas montras comerciais, vamos lá falar desse fogo que arde e que se vê - o ciúme.
De entrada, digo já que não sou ciumenta para além do que se crê normal num ser humano que ama, ou seja, obviamente que acho que todos os outros seres humanos só podem estar secretamente apaixonados por aquele de quem eu gosto e a partir daí observo-os atentamente e com total desconfiança. E ele, o meu amor? Pois ele, naturalmente, que é incapaz de desejar outra mulher que não eu e é por saber que ele nem levanta os olhos para mais nenhuma das presentes nem imagina coisa alguma com as ausentes que eu o trago completamente debaixo de mira. Sem que ele perceba, claro está.
É muito importante, aliás, que ele não perceba nem sonhe. Se desse por isso, era capaz de lhe dar uma ânsiazita de evasão. Cruzes credo! Eu quero é que ele fique aqui amarrado de tal forma que só eu saiba desfazer o nó.


Afinal o que é o ciúme? O ciúme é aquele medo enorme e incontrolável de que a outra pessoa nos fuja. Uns ciúmes moderados, assim uma pontinha, como quem polvilha de especiarias um prato, até podem ser considerados uma coisa bonita, um picantezinho extra.  Algum de vocês imagina relação mais aborrecida que aquela em que sabemos que o nosso amor está completamente apanhado e não foge? Só se for aquela em que  sabemos que estamos completamente enfadados dele, porque já não há mais nada a descobrir. De qualquer modo, não exageremos. A pior coisa que se pode fazer neste mundo de afectos será instaurar o regime fascista do controlo absoluto.


Então, como é que se pode fazer uma elegante gestão da liberdade desse ser amado a quem apetece envolver entre os nossos dedinhos? Boa pergunta. É tanto mais boa pergunta quanto eu nunca, jamais, em caso algum suportaria que alguém me limitasse coisa alguma. Recorrendo aos sábios conselhos da minha avó, dir-vos-ei que todo o controlo deve ser como o dos Serviços Secretos.


O ciúme pressupõe a presumível existência - na grande maioria das vezes, apenas fantasiada pela imaginação delirante e ciumenta - de casos de infidelidade. Porém, caros amigos ciumentos, nunca houve tão pouco motivo para preocupações como hoje em dia.


Como diz um grande amigo meu, já não há boas infidelidades porque já ninguém perde a cabeça. Daquelas à Eça de Queiroz em que as mulheres arriscavam o casamento e os homens a posição social (o contrário jamais se verificava e dois séculos depois ainda é assim a regra geral), nas quais havia um sentido trágico e delirante, tipo ópera La Traviata . Hoje não. Alguém seria capaz de hoje arrumar a sua mala de roupinhas e fugir com o amante, sabendo que nunca mais seria olhada de frente na rua quando antes servia chá com bolinhos à alta sociedade? Nem pensar. Isso era no século XIX. Hoje somos pessoas sérias. Quando há demasiada paixão no ar, tomamos Xanax para acalmar. Jamais rolarão pescoços. Estão presos pelas gravatas deles e pelos colares de ouro delas.


Resumindo: hoje, apesar de toda a gente dizer que a sociedade livre oferece mil e um perigos e blablabla, é só conversa. Entenda-se o “só conversa” literalmente. Descansai as vossas almas, amiguinhos do ciúme de faca e alguidar de sangue. Nunca há-de a conversa chegar a vias de facto, porque hoje as pessoas não estão para adultérios. O pessoal respeita muito o mandamento sexto da Nova Lei de Deus, que é como quem diz “Não darás motivos para que fale de ti a tua vizinha”.  Se bem que o castigo não seja perder o Paraíso (porque no Inferno já nos encarregaríamos de o fazer cozer em fogo brando e continuado), aproxima-se muito do bom e velho antigo apedrejamento em via pública. Seria preciso muita ópera e sentimento para levar avante um amor anti-social. Convenhamos que com coraçõezinhos “I love you” não vamos lá.


Então, para terminar, e recorrendo de novo à minha sábia avó, um conselho de pacote para a brigada do ciúme: é preciso fazer o outro ter pena. “Tu nunca gostaste de mim”; “Eu sou tão infeliz e desesperado(a) sem ti”; “Eu que sempre me dediquei ao nosso amor”; “Sabes que o facto de ter estado com outra (o) não significa nada, porque só me lembrava da tua cara...”; “Eu sou capaz até de perder a vida se me deixares”. A culpa move montanhas nesses espíritos sensíveis que um dia gostaram de nós. Os infelizes.


E, para não desmoralizar o outro lado, outro conselho de pacote, recorrendo ao meu sábio avô, para a brigada dos infiéis: existe sempre a filosofia do compensa. Ou seja, se estou a ser infiel a quem estou legalmente ligado, por outro lado estou a  ser fiel a quem estou afectivamente ligado (se, dramaticamente, não calhar serem a mesma pessoa,...). Pois, vendo bem, compensa. Faz-me feliz. Que se lixe.


Finalmente, a pedra de toque inventada pelas espertalhonas das mulheres: há uma ideia muito em voga nas cabeças masculinas (tradicionalmente ciumentas e infiéis, embora nem sempre acompanhadas pelo resto do corpo) que é a de que os homens continuam a trair muito mais do que as mulheres, enquanto essas cândidas e sofridas criaturas ficam em casa carpindo as misérias de estarem a ser traídas. Isso é que era, senhores. Se os homens traem e as amantíssimas e sofredoras mulheres se retraem, com quem, ao certo, é que os homens se divertem?

Friday, January 25, 2008

“Ai, Paciência, Meu Deus!”





N.B.: Este texto foi revisto e alterado para ser publicado na edição do dia 29 de Abril de 2011 no jornal Açoriano Oriental.





Estava eu a conversar com uma rapariga da Lituânia que tem uma paixão desmedida por Portugal e vai daí ela perguntou-me porque raio num país como este, bem fornecido de sol, de temperaturas amenas, de bonitas paisagens, de gente (mais ou menos) calma  e sem fomes nem misérias de maior na sua generalidade, os portugueses estavam sempre a suspirar e a dizer “Ai, paciência!”.


Eu cá nunca me tinha dado conta que recomendávamos tanta paciência uns aos outros e, ademais, éramos tão plenos de suspiros! Mas é bem verdade. A mais comum das exclamações é mesmo capaz de ser esta, exceptuando outras que, embora não seja de bom tom eu escrever no jornal são, paradoxalmente, as mais ouvidas na rua e das primeiras que qualquer estrangeiro aprende se quiser sobreviver em 70% dos ambientes de trabalho lusos.


Atacando o assunto: porque precisa o português de tanta paciência, sincopadamente suspirada? Eu também não sei!
Confesso, porém, que este hábito já vem de trás... Já a minha bisavó era amiga deste dito. Daqui concluo que o tão apregoado pessimismo português (repare-se que muito  pessoal até diz “festa de fim de ano” e nunca “festa de princípio de ano” semanticamente tomando uns copitos pelo ano que passou e não pelo que há-de vir!)  nem é bem pessimismo – é uma espécie de amortização da queda. Afinal, o português até quem consciência que vive no “melhor dos mundos possíveis”, como apregoava Leibniz. Simplesmente, de vez em quando lá aparece uma pedrinha no caminho – nada que um espírito navegante e conquistador como o nosso não resolva com meia dúzia de suspiros e caldos de paciência.


Outra coisa que muito gostamos de fazer é chamar por Deus. Mas na base da confiança! Raros povos alcançaram um tu-cá-tu-lá com o divino como nós. Enquanto que, por exemplo, os espanhóis têm tanto respeitinho a Deus que, só de pensarem nele intensamente, há centenas de espanhóis que sofrem de stigmatae (vulgo, estigmas, aquelas feridas sanguinolentas e absolutamente inexplicáveis), os portugueses são tratados por Deus na pura, que é como quem diz, na maior descontracção. Os irlandeses, coitados, passam agruras do demo por quererem praticar a sua religião. Os portugueses estão sempre na boa e contam-se pelos dedos os fiéis. Há pessoal nas Filipinas que se esfola todo para demonstrar a Deus que sofre por Ele, tal como Ele. O português não está nem aí para demonstrações de nenhuma espécie. O português acha que se alguém tem de demonstrar alguma coisa é Deus, não é ele. Mas, verdade seja dita, não se chateia se a demonstração levar anos ou mesmo não acontecer porque temos tempo... e sol e temperaturas amenas (vide primeiro parágrafo). Em suma: somos um convite à lazeira.


Assim, apesar de não darem troco nenhum a Deus, não é raro ouvir os portugueses chamar pela mãezinha d’Ele: “Oh Virgem Maria!”, ou outros de Sua proximidade “Ai santa Bárbara! Que escuridão”, etc, revelando uma clara familiaridade com as entidades celestiais. Eis a minha exclamação favorita: “Oh Jesus Cristo! Anda cá abaixo ver isto!” que, não só rima, como é uma espécie de invocação imperativa que sujeita o pobre Jesus  a ser humano e a passar por aquelas desgraceiras todas outra vez.


Mesmo os ateus e os não-católicos (como eu) se saem às vezes com frases destas. Aqui, não é preciso uma epifania para entender o porquê: é que ninguém tem bem a certeza (excepção honrosa feita ao meu irmão) de haver ou não Reinos que não sejam deste Mundo – perdão, João de Melo. Assim, o português arranjou um truque fixe que é o de tratar Deus como um amigalhaço, na onda cool e tal, porque, assim, se Ele não existir não fez figura de parvo a dedicar-se-Lhe e se Ele existir, o tuga já fez o seu papel. Tudo salvaguardado.


Os próprios ateus (com raríssimas excepções) costumam dizer que “não acreditam em Deus mas numa entidade superior que nos criou” o que é a mesma coisa que um oriental dizer que não acredita no Buda mas admite a existência de um manda-chuva gordo e careca, sentado à chinês...


Senhores, resolvam-se. No sítio. Senão, é preciso vir Jesus cá abaixo ver isto. Até que se resolvam, a gente vai ter muita, muita paciência... (suspiro!).