... "And now for something completely different" Monty Python

Sunday, December 25, 2011

Traição de Harold Pinter



Peça de teatro de 1978, Traição entrou para a história da exigente e completa dramaturgia inglesa como um dos trabalhos mais profundos e bem conseguidos sobre a complexidade das emoções humanas. Os actores têm um trabalho árduo em palco pois, em vez de envelhecer ao longo da peça, rejuvenescem em corpo e alma – a história é contada em analepse, encontrando-se os amantes (Emma e Jerry) dois anos depois de terem terminado uma relação extra-marital que durou sete anos. 

Emma é casada com Robert e Jerry (casado com Judith) é amigo íntimo do seu marido. Resumida assim, a história parece banal, um mexerico de aldeia de quem não tem o que fazer. Mas a mestria de Pinter está em colocar os personagens perante uma traição constante e contínua, de todos entre todos e, em última análise, de traição a si próprios, de tal modo que não sabemos a que traição o título se refere. 

Traem-se os esposos, traem-se os amigos, traem-se os amantes: a certa altura, Emma conta ao marido que está com Jerry mas não conta a Jerry que o marido sabe… e a amizade dos dois homens permanece, durante anos, em desequilíbrio de forças mas não pela razão original. Traem-se ainda os amores pois é muito claro que a perspectiva homem/mulher sobre a relação amorosa e suas expectativas é completamente diversa, bem como o remorso e as memórias que ambos guardam seja do adultério seja do casamento. Emma precisa dos dois homens, os dois homens precisam dela e precisam um do outro. É talvez por se darem conta desta ácida fatalidade que passam de jovens amorosos e alegres a cépticos magoados (ou antes o contrário na estranha cronologia da peça).


Harold Pinter nunca escondeu que Traição se baseava na sua própria experiência de vida - durante sete anos, manteve uma sólida relação com outra pessoa que não a sua amarga primeira mulher. Mais tarde, já noutra relação, Pinter diria: “Hoje, tenho uma vida feliz. Mas não se faz teatro sobre vidas felizes. O teatro é sobre conflito e perturbação. Vivo a felicidade, não a revelo.”


Pinter ganhou o Nobel da Literatura em 2005 “pelas suas dramaturgias que descobrem o precipício debaixo da conversa quotidiana e deixam a força entrar nos quartos fechados da opressão.” 

Friday, December 23, 2011

Regis olim urbe David



Não gosto de escrever sobre o Natal. Sabe-me a hipocrisia, coisa na qual sou francamente má, porque gosto da transparência nas relações. Não sendo eu cristã, do ponto de vista religioso e muito menos eclesiástico, não posso discursar sobre a celebração do nascimento de um Salvador, a não ser teoricamente. Fui uma vez na vida à Missa do Galo, já adulta, para acompanhar um namorado e a família deste. Achei lindíssimo o presépio vivo, o cordeirinho dentro da Igreja, a luminosidade, os cânticos, o cheiro do incenso (não havia mirra embora, infelizmente e mau grado os votos, existisse ouro com fartura no altar).

A espiritualidade, quanto a mim, não é uma coisa sobre a qual se teorize nem tão pouco sobre a qual se deva falar muito. Pertence ao foro íntimo das pessoas. Aquilo em que se acredita, e aquilo pelo qual se luta pertencem tanto à intimidade de cada um como as sensações que cada qual tem. É por isso que não compreendo muito bem o escaparate de montra que se faz da fé das pessoas, em multidões de procissão, em adorações conjuntas, em confessionários de um ser humano para outro; em publicidade, enfim.

Parece-me que a fé é algo que se guarda no nosso interior, e do qual só se fala com Aquele que partilha desse íntimo (se é que ela existe e se é que é partilhada). A fé, mutatis mutandis e sem qualquer intenção de chocar quem me lê, tem essa qualidade de reserva com a qual só me ocorre que se possa também adjectivar o erotismo. Não são coisas que se possam banalizar, e trazê-las à praça pública é torná-las fúteis, sem significado íntimo.

Do mesmo modo, penso sempre que quem faz proselitismo da sua crença não pode saber o que é ter fé. Parece-me esse acto tão obsceno como forçar alguém a ser meu amigo. Simplesmente, não acontece à força. Posso mandar dezenas de e-mails e mensagens por dia, convidar para café, fazer sorrisos doces… A amizade não nasce da insistência, da perseguição do “olha para mim” (eu diria até que antes pelo contrário). 

Com a fé, passa-se algo semelhante. É por isso que não percebo qual a lógica de ter pessoas pela rua a distribuir Bíblias. Só um desesperado da vida se converterá a uma fé imposta. E quem, em seu perfeito juízo e coração em bom estado, desejaria saber que conquistou um ser pelo simples facto de ele estar consumido de angústia? 

Não gosto, portanto, de escrever sobre o Natal, sobre as crenças, sobre a fé. Talvez daqui a uns anos, quando for mais crescida. Por enquanto, nesta fase da vida, parece-me que a mensagem do Natal é seguir a nossa estrela – parecendo que não, ela até indica bem o caminho.

Friday, December 9, 2011

As pessoas solidárias



Fiquei sinceramente triste esta semana quando vi anunciada uma festa solidária de uma escola açoriana promovida pelo corpo docente e encarregados de educação. Era uma coisa em grande, segundo me explicaram: jantarada com acepipes, actuações voluntárias de grupos que iam presentear a sua música e dança, venda de doces e outros artigos que permitissem angariar donativos. No fim desta festa, com a presença da comunidade escolar e suas abnegadas famílias, a cereja no topo do bolo: entregam-se cabazes de Natal a determinados alunos, previamente identificados como sendo os mais carenciados da escola. Foi este final, que tanto entusiasmava os organizadores do espectáculo, que me entristeceu para lá do que posso exprimir.

Será que ninguém, de entre aqueles pedagogos e pais, imagina o quanto é difícil para uma criança ou adolescente ser apontado a dedo perante os professores, os colegas (quantas vezes cruéis e sem a diplomacia de relações sociais que chega bem mais tarde na vida), as famílias dos colegas, ser chamado à frente da comunidade escolar inteira para publicamente envergar o título de “mais carenciado” e aceitar um donativo de todos esses que o olham no momento? A quem é que esta humilhação pública aproveita: ao que, envergonhadamente, recebe ou aos que, arrogantemente, dão?

Não é exagero o adjectivo “arrogante”. Tenho visto nas redes sociais as fotos das mamãs que confeccionaram doces com os seus pimpolhos, assumidamente “doces para os colegas pobrezinhos”. Não se lembraram, talvez, de que os “pobrezinhos” assim chamados serão da mesma forma nomeados por parte dos seus filhos em plena sala de aula – local onde a igualdade devia imperar em questões de tratamento e oportunidade.

Não pude deixar de relembrar certo episódio que presenciei numa escola onde estive. Nesse tempo, andava uma professora a vender rifas para obter um par de sapatos para um aluno que ela apontara em plena aula como tendo os sapatos rotos e precisando muito da nossa ajuda. Claro que o rapaz ficou envergonhadíssimo. Vendo a necessidade dele bem como a sua atrapalhação, outra professora fez o que sempre faz quem realmente quer ajudar: deu-lhe uns sapatos, em privado, e recomendou-lhe que não dissesse a ninguém que fora ela; simplesmente os assumisse como prenda dos seus pais. Ora, a primeira docente não descansou enquanto não arrancou do rapaz em lágrimas onde tinha ele arranjado sapatos novos “para mais sabendo do esforço que estou fazendo para te arranjar uns!” A segunda professora, pouco satisfeita assim que soube, disse à primeira: “Quantos pares de sapatos têm os teus filhos?” ao que ela respondeu “Ah, muitos, graças a Deus!” “Pois então”, respondeu a segunda, “ qual é o problema deste pequeno ter estes sapatos e mais os que lhe hás-de arranjar?”

Voltando à festa solidária, ridículo e vexatório ainda é o facto de estar publicitado que estas senhoras organizadoras da festa vão “voluntariamente fazer a distribuição do excedente dos buffets de Natal das festas da cidade pelas famílias carenciadas”. Reparem no bonito gesto cristão destas damas que publicamente assumem que vão dar as sobras dos jantares importantes às famílias mais pobres! Quão gratas devem ficar estas famílias de segunda! Afinal, em vez de pedir para “embrulhar para levar para o cão”, estas senhoras terão a caridade de se lembrar deles no fim do jantar. É muita solidariedade, de facto.

Para quem gosta de ler a banda desenhada Mafalda, do Quino, há lá uma tira que se aplica perfeitamente. Mafalda, com os seus ideais de igualdade social, está a conversar com a sua amiga Susaninha, rapariga mais dada à vida jet-set, e fica encantada quando, finalmente, ouve Susaninha dizer “Quando for adulta e rica, darei jantares chiquíssimos com lagosta, caviar, champagne… Tudo para ajudar os pobres!” Mafalda pergunta: “E vais convidar os pobres todos da cidade?” Susaninha não tem dúvidas: “Claro que não! Com o dinheiro desses jantares, comprarei sopa, couves, repolhos e essas porcarias todas que os pobres comem para lhes dar!”

Sunday, November 27, 2011

Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago


Deste livro disse o autor ser um romance terrível que sofrera muito a escrever: “é brutal, violento e foi uma das experiências mais dolorosas da minha vida”. Saramago descreveu-o como uma constante aflição e tortura, onde “se mostra que não somos bons e é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.” 

A obra é uma parábola onde todos vão sendo acometidos por uma treva branca que os deixa cegos, embora, como alguns reconheçam “cegos já éramos antes de cegar”. Todos, menos a mulher do oftalmologista, que finge ser cega para acompanhar o marido na reclusão a que, a princípio, votam os cegos quando ainda são minoritários na comunidade. É por ela que nos damos conta do feroz mundo de luta humana, onde o egoísmo é uma constante, exarcebado aqui pela ausência de restrições que - tristemente nos damos conta - não serem uma obrigação da ética íntima de cada ser mas apenas e só uma questão de receio de punição social que se torna inexistente dada a cegueira. Assim, sucedem-se os casos animalescos de brutalidade, de luta pela comida, de desprezo total pelo asseio, e, finalmente, de invasão da liberdade alheia e de descaso pela dor de outrem como são as violações e os homicídios.

Para retirar ainda mais da humanidade das personagens, nenhuma delas tem nome, sendo apenas referida por uma característica acessória, e.g.: a mulher do médico, a rapariga dos óculos escuros, o ladrão, o rapazinho estrábico.

Saramago ganhou o Nobel em 1998, três anos depois da publicação deste romance, pela sua “imaginação, compaixão e ironia, que continuamente nos permitem apreender uma realidade indefinível.”

Saturday, November 26, 2011

INSULAmento - Condição do ser-se Ilha


A seguinte comunicação foi proferida no X Aniversário de ADIASPORA.COM em Londres. Está aqui publicado, visto que A Diáspora, enquanto orgão de divulgação, publica na íntegra as comunicações dos seus encontros.

Informações sobre o aniversário e ciclo de conferências podem ser encontrados aqui:

http://www.adiaspora.com/X_Aniversario_2011/index3.html
http://www.adiaspora.com/X_Aniversario_2011/discurso_carla_cook.html




Muito boa tarde a todos os presentes. Peço licença para saltar os cumprimentos protocolares, mas há uma lista grande de personalidades ilustres na sala e eu receio não ter presente os nomes e cargos de todos, pelo que iria decerto esquecer alguém involuntariamente se fosse tentar nomeá-los. Por esta razão, cumprimento numa só linha todos os presentes com o mesmo respeito e a mesma fraternidade.

Não posso, porém, deixar de nomear os aniversariantes. É, para mim, um grande prazer voltar a estar presente num aniversário de Adiaspora.com. A primeira vez que o fiz leccionava, precisamente, numa universidade do Canadá (morava no mesmo país que é a casa deste portal de divulgação da lusitanidade) e foi aí que me dei conta da existência do portal que eu, até à data, não sabia que existia.

Há tantas coisas, como todos nós aqui presentes sabemos, das quais só nos apercebemos melhor e mais profundamente quando emigramos. Na época, eu vivia numa cidade canadiana onde praticamente não moravam portugueses e, em Toronto (repleta de portugueses, como sabemos), conhecer A Adiaspora.com foi importante, aproximou-me de um grupo de pessoas alegres, que preservavam a cultura portuguesa com paixão sem deixarem de se integrar na sociedade do país onde estavam com firmeza. E isso fez o frio do Canadá menos frio.

Fico feliz por verificar que, cinco anos depois, Adiaspora.com continua a unir pessoas em torno da língua e da cultura portuguesas, com a mesma alegria e a mesma determinação que sempre lhes conheci.

Pediram-me para me debruçar hoje sobre um tema que aproximasse a Inglaterra dos Açores. Embora a Inglaterra também me seja um país familiar, eu não sou especialista em História – a minha área é a Cultura - pelo que em vez de fazer aproximações de carácter historicista entre o Reino Unido e a Região Autónoma dos Açores, optei por vos falar um pouco de algo que, efectivamente, é comum à essência de um e de outro, determinando, por isso, todo o seu quadro de acção e sendo o pilar-base da sua cultura. Refiro-me, é claro, ao facto de tanto a Grã-Bretanha ser uma ilha como os Açores serem ilhas, mutatis mutandis, isto é, com as devidas distâncias e cuidados que devemos ter ao falar de uma ilha que é a maior da Europa e a nona maior do mundo, sendo a terceira a nível de população, e um arquipélago que é frequentemente esquecido em muitos mapas dada a sua pouca área e cuja ilha mais pequena - o Corvo - tem 400 habitantes concentrados em 17 km2 de superfície total.

A diferença entre a realidade destes 400 habitantes versus 60 milhões de pessoas na Grã-Bretanha é, pois, abissal embora o ponto de partida de realidade insular seja comum.

Como verificam, esta linha de pensamento de cariz geográfico tem um âmbito de exploração muito factual e, a meu ver, restrito, dado que eu poderia passar aqui uma hora a fazer aproximações várias e outras tantas distinções entre a Grã-Bretanha e os Açores, mas todas essas aproximações e distinções de índole puramente territorial, demográfico ou matemático são coisas que fazem parte do nosso próprio saber enciclopédico, sendo apenas a base constituinte das diferenças e aproximações posteriores de matriz cultural que derivam da condicionante geográfica de ser ilha e de ser ilhéu. São essas matrizes culturais que aqui nos interessam muito mais. Aqui, tentarei mostrar que o ser-se ilha condiciona toda uma forma de ser, de estar, de agir e de pensar, e até de ser encarado pelos demais que não são ilhas.

Nestes breves minutos, vou restringir o meu pensamento por questões metodológicas,“fechando” naturalmente o âmbito para rigorosamente cair mais a fundo na Grã-Bretanha e nos Açores, mas a verdade é que poderíamos levar esta questão da Ilha como fundamento isolador e de diferença a um leque muito mais vasto: basta pensarmos que os cabo-verdianos e os são-tomenses, povos linguisticamente irmãos dos portugueses, têm uma perspectiva muito particular de si próprios enquanto africanos porque são povos insulares e arquipelágicos, contrariamente aos africanos continentais.

Já aconteceu estar em encontros dos países lusófonos, e verificar que as pessoas vindas de ilhas (Açores, Madeira, São Tomé e Cabo Verde) acabam sempre por se juntar, por oposição às que vivem numa plataforma continental - isso acontece porque estão unidas por aspectos inequívocos de semelhança, nomeadamente a ligação profunda e, mais do que profunda, necessária ao mar, que, se por um lado é o que as separa do resto do mundo e as isola, por outro é também a ponte que faz a sua comunicação com o resto do mundo: o mar é a sua fonte de subsistência, de prazer, a sua auto-estrada, o seu oxigénio na verdade. Esse sentimento que as une é aquilo a que, em 1936, o conhecido escritor e ensaísta Vitorino Nemésio chamou o “sentimento de solidão atlântica”.

Vamos penetrar mais fundo na exploração deste sentimento de solidão atlântica que compartilhamos aqui também na Grã-Bretanha, embora noutro prisma. À primeira vista, poderíamos pensar que não. Afinal, é uma ilha-potência, uma ilha-força maior no quadro da Europa que hoje vivemos, e até no mapa actual do nosso mundo. Ao pensarmos nos países economicamente fortes da União Europeia neste momento - que são, por inerência, também os decision-makers dos caminhos que tomamos - só nos ocorrem 3 nomes: a Alemanha, a França e o Reino Unido (que é, na sua maioria, constituído pela Grã-Bretanha, acrescentando-se depois o bocadinho correspondente à Irlanda do Norte, embora seja uma porção bastante limitada do território em termos percentuais e, ademais, também é um pedacinho de outra ilha, portanto… junta-se ao clube).

Ora, estes gigantes económicos europeus – e até mundiais (já que o Reino Unido é a sexta economia mais forte do mundo, segundo dados da Central Intelligence Agency referentes ao ano de 2010) –, estes pesos pesados da economia da Europa não são encarados da mesma forma pelos demais povos e países. Todos colocamos a França e a Alemanha num lado da balança e o Reino Unido no outro… E isto porquê? Porque desde o primeiro momento em que se pensou na criação de uma federação de estados unidos da Europa, o Reino Unido, embora querendo estar presente activamente e salientando ser totalmente a favor de uma União Europeia, diferenciou-se desde o primeiro instante dos restantes países que a constituem, nunca partilhando por inteiro dos acordos de total indiferenciação de países-membros que constituem o caroço das linhas de acção da UE.

Refiro-me, concretamente, a dois exemplos por serem os mais mediáticos – o Reino Unido nunca aceitou a moeda única, optando sempre por preservar a boa e velha libra que aliás provou ser uma moeda bastante forte; o Reino Unido também nunca aceitou fazer parte do Espaço Schengen, isto é, fazer parte do sistema de passaportes unificado da Europa, porque quis continuar a manter - e cito de um comunicado de 1999 - “as suas fronteiras bem delimitadas e controladas, com verificação de passaportes” para os seus vizinhos europeus e política necessária de vistos para entrada no país para os que viessem de mais longe (há aqui uma excepção, que é a excepção feita ao acordo que o Reino Unido mantém até hoje com a Irlanda e que se denomina Common Travel Area).

Ora, se pensarmos que há mais países na União Europeia resistentes ao euro - como a Dinamarca - , já em relação a Schengen, o Reino Unido e a Irlanda foram os únicos países a rejeitar a proposta de não abrir as suas fronteiras aos seus vizinhos. E a“desculpa”, ou melhor dizendo a razão, é a mesma que davam para o euro ou que sempre evocam quando acham que algo é ameaçador da sua forma de ser e de estar como povo: dizem à Europa “Nós somos diferentes. Vocês são o continente; nós somos o Reino Unido, isto é, implicitamente, somos uma ilha, temos de proteger a nossa especificidade, temos de preservar a nossa cultura particular da grande massa que está do outro lado oceânico.”

Esta convicção que foi dita de forma ainda mais forte quando recusaram Schengen porque acharam que tinham de proteger as suas fronteiras limitativas insulares (abrindo uma porta de confiança apenas à Irlanda, ilha como eles e sua vizinha) é uma frase muitíssimo interessante pela própria diferenciação que carrega não só da percepção NÓS (Reino Unido) versus VOCÊS (Europa), mas, indo mais longe, ao radical que está na base da diferença dessa percepção que tem por base: NÓS (ilha) versus VOCÊS (continente europeu).

A este propósito, permitam-me que vos conte uma pequeníssima história que se passou comigo. A certa altura da minha vida, estava a estudar em Inglaterra, numa cidadezinha da costa do Sul. Encontrava-me num café com um colega de curso que era francês. Dado que falo francês razoavelmente bem, a dona do café, que nos escutava, perguntou-me se eu era do Continente: “Are you from the Continent?” Mais tarde, estranhei ela não dizer mainland que era a palavra, a meu ver, mais correcta e usual mas, na associação rápida e talvez provinciana da minha cabeça de açoriana só me ocorreu que ela falava do “Continente” que é a palavra, como sabem, pela qual os açorianos designam habitualmente Portugal Continental. Pelo que lhe respondi “No, I’m not from the continent, I’m from the Azores!” Claro que a senhora nem tão pouco sabia o que eram os Açores e de modo algum viu a relação entre o “continent” dela e as minhas ilhas! Só mais tarde, percebi que para os ingleses, “continent” é uma forma de dizer “Europa”como para os açorianos “continente” é uma forma de referir “Portugal”, muito embora os ingleses façam efectivamente parte da Europa e os açorianos façam parte de Portugal… mas demarcam-se eles próprios do território, que já de si os demarcou por um acaso geográfico de distância inegável que eles assumem e acentuam ainda mais com a utilização deste vocábulo “continente” para referir a realidade da plataforma da qual, apesar de tudo, fazem parte. Ora, isto tem tanto mais graça quanto é uma referência comum aos ingleses e aos açorianos, salvas as devidas distâncias.

Aliás, os Açores também têm um estatuto diferente dentro da União Europeia, um estatuto que partilham com outras ilhas e que lhes advém precisamente do facto de serem ilhas que se encontram em território considerado fora da União, pertencendo, no entanto, a países da UE. Como sabem, a Madeira, os Açores, as Canárias, e territórios franceses como a Martinica, Reunião, Guadalupe e a Guiana Francesa são considerados regiões ultra-periféricas da Europa (“outermost regions” em inglês). O tratado da União que lhes atribui esse estatuto especial diz claramente que isso se aplica pela sua “insularidade” e claro que acrescenta outros factores, todos eles advindos desse primeiro factor, como sejam a sua “natureza remota, topografia e clima difíceis e particulares, dependência económica de alguns produtos, seu tamanho reduzido, a permanência e combinação de todos estes conjuntos factores [que agora citei] que largamente restringem o desenvolvimento destas ilhas”. Quase que diríamos, depois de ler estas linhas, que, mau grado pertencerem legalmente à União Europeia, estas ilhas estão quase que perdidas no mapa…

Claro que é fundamental aqui, mais uma vez, a diferença de tamanho geográfico e, posteriormente, de autonomia económica entre as nossas ilhas açorianas e esta grande ilha que é a Grã-Bretanha – naturalmente que essas diferenças condicionam a sua resposta e forma de estar na União Europeia, que é, curiosamente, sua vizinha mas também sua casa.

Como estamos a ver, a condição de se Ser Ilha é, por si só, um factor de isolamento em relação às plataformas continentais.

A etimologia explica-nos muitas coisas. Aqui, socorri-me dela para fazer o trocadilho do título desta breve conversa convosco por me parecer sumamente interessante que a própria origem da palavra “ISOLAMENTO” viesse exactamente da palavra “ILHA”. Utilizei INSULA que é a palavra latina para ilha, por nos ser talvez mais familiar do que ISOLA, embora ISOLA seja a actual palavra italiana que precisamente significa ILHA por derivação do Latim INSULA - daí o “Isolamento”, que é a junção de ISOLA (Ilha) e do sufixo latino mentum que se usa em substantivos derivados de verbos para especificar o resultado de uma acção. Assim, e sem querer maçar os presentes com lições de gramática mas tão só exemplificar que as palavras contêm significados que não podem ser desprezados - até porque a língua é sempre a manifestação de uma realidade cultural que lhe está subjacente - vemos que esta palavra ISOLAMENTO significa nada mais nada menos que o “ser-se ilha”. Nós é que, posteriormente, lhe atribuímos significados extra, tais como solidão, reclusão, e eventualmente sentimentos depressivos ou de ostracismo. Mas todos eles são já uma marca a posteriori, serão, por assim dizer, efeitos do ser-se ilha ou do que nós entendemos que a realidade “ilha” traz em si.

A propósito desta nossa concepção posterior do que significa “isolamento”, gostava de vos falar um pouco de um ensaio de Nemésio acerca de um poeta açoriano chamado Roberto de Mesquita, poeta de que quase ninguém fala mas que, no entanto, foi provavelmente quem melhor encarnou a representação de ser ilhéu. Desde já, pelo seu percurso de vida - nasceu em 1871 em Santa Cruz das Flores, um local bastante isolado. Só saíu das ilhas dos Açores para uma única viagem em toda a sua vida, indo ao Continente, (em 1904), para visitar o irmão, que lá era professor. Teve, aliás, uma vida plena de vicissitudes cujas penosas circunstâncias mais acentuaram o seu carácter melancólico e reservado, contribuindo para que o isolamento geográfico fosse também mais marcado devido ao seu ensimesmamento pessoal. Na sua produção poética, vamos notar o pessimismo reflexivo, um sentimento de abandono, a animização da Natureza, o spleen envolto em mágoa e, sobretudo, “o isolamento ilhéu” que, como disse Nemésio, era, na sua poesia “a mensagem […] de valor principal.”

Nemésio considerava os escritos de Mesquita “o melhor exemplo do perfil difuso (…) da Açorianidade”. Este adjectivo é importante, como as brumas e os nevoeiros que circundam todas as ilhas deste mundo, incluindo aquela onde hoje nos encontramos (se os Açores têm as brumas, Londres tem o famoso nevoeiro e isto é, sem dúvida, a matriz caracteriológica do clima de uma ilha!). Mas do clima e sua importância, já falaremos…

Roberto de Mesquita tinha certos traços simbolistas porque lia Baudelaire e Verlaine (famosos na época) mas distinguia-se deles pelo seu “sentimento de solidão atlântica”que é, afinal, a condição humana de todos nós os que aqui nos encontramos, ilhéus no meio do grande mar.

Quando Nemésio se debruçou sobre a poesia de Mesquita, tinha há muito pouco tempo cunhado o célebre conceito de Açorianidade - fê-lo quase involuntariamente num artigo publicado na Revista Ínsula em 1932 onde fala exactamente da consciência de ser ilhéu e, mais concretamente, de ser ilhéu nos Açores. Nesse mesmo texto, ele diz-nos:

Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água.

Nós, ilhéus isolados, não nascemos apenas junto do mar, o que prefiguraria liberdade e câmbio. Nós nascemos, como disse Nemésio no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes.

E isso faz toda a diferença.

É o isolamento, a solidão que define a condição de ser ilhéu; nesta e por esta circunstância, todo o íntimo, toda a cultura do ilhéu se torna ilha, à semelhança do exterior que o rodeia.

Estarmos insulados faz-nos tão diferentes porque acabamos não só por ESTAR insulados mas por SER insulados.

E é por isso que o ser-se ilhéu adquire uma geografia muito mais ampla: o ilhéu leva a Ilha para onde quer que vá, torna-se “homem que transporta um centro” e em função dele se vai completando. Leva a Ilha consigo dentro dele quando emigra, como bem sabemos – ela torna-se um arquétipo mítico da Ilha Perdida que já só dentro dele existe, porque é impossível voltar ao lugar de onde se partiu. Passa a ser, efectivamente, uma Ilha Perdida, que só existe dentro do próprio – “começamos”, como também dizia o poeta “a ser estrangeiros onde nascemos” (tema que já nos dava outra palestra!).

Voltando um pouco atrás – ao Ser Ilha e à notória influência dos elementos naturais e climatéricos na psique e no estado de espírito dos ilhéus. Na nossa Literatura, a ambiência natural aparece como parte intrínseca do sujeito, quase deixando de haver distinção entre a objectividade da Natureza e a subjectividade de quem escreve. O clima como definidor da anima é uma noção tão verdadeira quanto terrível pois o clima açoriano é de mormaço, de humidade abafada, de “totalidade saturada do ar” (Martins Garcia) que é também o que se sente noutras ilhas e até mesmo aqui.

Esse tipo de clima, de nevoeiros baixos é propenso à reflexão profunda, a uma certa melancolia do espírito e à “ilimitação parada “ de “ilhas acobardadas em neblina”, como se lê no Mau Tempo no Canal.

Não é por acaso que refiro este livro – refiro-o primeiro por ser um livro extraordinário para avaliar da cobardia e dos repentes de coragem, conforme a montanha do Pico tem nuvens ou não, de tal modo as personagens se deixam influenciar pelo clima que as circunda; refiro-o, também, porque a este sentimento provocado pelo clima deu Nemésio um nome inglês na obra - chamou-lhe Azorean Torpor, a modorra açoreana, o torpor açoriano. Talvez porque uma das personagens do trio central de Mau Tempo no Canal é, como sabem, Roberto Clark, que emigrou em pequenino para Londres e volta agora ao Faial para “salvar” a família Clark Dulmo, eles próprios meio-ingleses, meio faialenses. Roberto Clark, a mais perfeita “junção de um gentleman londrino com um homem do Pico”, discorre longamente na obra sobre o Azorean Torpor e sobre o modo de ser dos ilheús.

Para além disso, este mesmo livro define muito bem a “clausura insular”, a noção de ilha como prisão, conceito facilmente compreensível para qualquer não-ilhéu. O que já é mais difícil de explicar é porque é que os ilhéus são paradoxais na sua visão da Ilha, encarando-a como prisão mas vendo-a também como miragem de total liberdade, de lugar onde o puro e o natural estão mais presentes.

Assim, é curioso que a Ideia de Ilha acabe por ser antagónica mas coexistente, sendo a“Ilha considerada como escravizante e redutora” quando os ilhéus lá habitam mas“sedutora e maternal” quando dela se encontram apartados.

É por isso que ser Ilhéu é também e, forçosamente, viajar. A visão atlântica impele-nos, chama-nos para além, mas também aqui residem elementos contraditórios, pois embora a vontade de seguir em frente pelo espelho marítimo seja grande pois o mar é sempre uma voz que chama quem vive nele (o que no caso das ilhas pequenas, como os Açores, se verifica com a emigração e no caso das grandes, como a Grã Bretanha, com a saga das Descobertas…), há igualmente um certo gosto em deixar-se ficar no seu canto conhecido, no encanto dos cheiros da terra de sempre… e é isso que impele, decerto, o ilhéu a voltar à Ilha.

Vão desculpar-me ter feito aqui esta brevíssima incursão literária, mas conhecer uma cultura é, em grande parte, mergulhar nas suas histórias, já que a Literatura mais não é que o reflexo de uma Cultura, como todas as formas de arte. Não temos, porém, muito mais tempo e creio até que já me excedi nos minutos que me foram destinados.

Gostava de fechar esta minha exposição com uma frase de Nemésio sobre “O Açoriano e os Açores” que é, para mim, o resumo daquilo que representa nascer ou viver em ilhas:“As ilhas são o efémero, o contingente; só o mar é eterno e necessário.”

Estamos, portanto, todos nós, ilhéus, como que plantados na vastidão do mar e um pouco à sua mercê. Damo-nos conta - muito mais do que os povos continentais poderão alguma vez fazê-lo - da vastidão, da profundidade, do que está para além e nos ultrapassa, que é o Mar, face à nossa pequenez, à nossa circularidade, ao nosso insulamento. Este sentimento de autognose dos ilhéus e a sua íntima comunhão com o mar que tão bem Nemésio caracterizou de “necessário” – como todo o ilhéu poderá confirmar! – é o que aproxima as ilhas, todas as ilhas, umas das outras. Todos nós nesta sala – madeirenses, são-tomenses, açorianos, britânicos – não foi por acaso que nos juntámos num aniversário que tem por tema “Insularidades”… Isto acontece por sermos ilhas e porque o mar é o nosso oxigénio.

Espero ter contribuído com estas minhas reflexões para a celebração do espírito Insular, tal como me foi proposto. Muito obrigada pelo vosso tempo e pela vossa atenção. E, mais uma vez, parabéns ao Adiaspora.com.


Friday, November 25, 2011

A epidemia da doença mental


Li no jornal o caso de uma menina de 12 anos que tinha sido adoptada e foi devolvida porque os (então) pais adoptivos, moradores em Lisboa, dizem que ela “sofre de esquizofrenia grave”. Não faço julgamentos sobre a vida íntima, mas há mesmo que levantar a voz neste caso. O casal teve a menina em sua casa menos de um mês, altura em que percebeu que ela “fazia teatrinhos e falava com amigos imaginários, era demasiado tranquila e isolada e tinha dificuldade em criar laços emocionais”. Finalmente, decidiram-se a falar mais intimamente com ela e foi quando, dizem eles, a menina confessou que “falava com a irmã gémea que morreu mas que continuava dentro dela e ouvia vozes dentro de si”. O casal, a beirar o meio século e com idade para ter juízo, diz que percebeu “num fim de semana” que havia ali um quadro de esquizofrenia, contactou a instituição onde a menina vivera seis anos e foi informado de que “ela não tinha nenhum quadro clínico, mas tomava um psicotrópico, que é dado a casos de esquizofrenia ou de dupla personalidade.” 

É só a mim que isto me parece um caso de Polícia e não de Psiquiatria? E, caso seja de Psiquiatria, o paciente não é, de certeza, a menina de 12 anos!...
Não vos parece normal o isolamento inicial de uma menina que chega a uma casa estranha, habitada por estranhos? Não seria invulgar que ela criasse laços emocionais em tão pouco tempo? Não é saudável uma criança brincar aos teatrinhos? Não é comum às crianças e aos adultos terem saudades dos entes importantes da sua vida que já partiram e sentirem-nos como se continuassem presentes dentro de si? No caso concreto, isso será tanto mais exacerbado quanto essa pessoa importante e falecida é provavelmente o ideal de família e estabilidade desta criança e, portanto, bem se pode compreender o que essa perda representou. “Anormal” e, seguramente, sem sentimentos, seria o ser humano que não se sentisse perdido e só.

O que me parece invulgar aqui são outras duas coisas. Primeiro, estes “pais” que não viram nenhuma destas evidências e que, pelo contrário, esperavam uma menina perfeita e pronta-a-usar, que respondesse com um abraço quando se carregasse no botão dessa “função”. Depois, a leveza e irresponsabilidade com que eles diagnosticam um problema severo em dois dias (já não se entrevistam os proponentes a adopções?). Segundo, a instituição que administra, com a mesma displicência, psicotrópicos a crianças.

Não é por acaso que a esquizofrenia é detectada no início da juventude (isto é, depois de terminada a adolescência). É precisamente porque, antes disso, as respostas emotivas bizarras, os pensamentos desorganizados, as alucinações, as falsas crenças e a falta de distinção entre o real e o imaginário que caracteriza a doença não podem ser facilmente destrinçados da vida usual de um adolescente com hormonas saltitantes e muito menos da de uma criança, em cujo mundo a fantasia desempenha um papel preponderante na aprendizagem e quantas vezes de saudável escape (ao contrário do que devia acontecer na vida adulta). Só depois da passagem para esse mundo cognitivo e emocional adulto se podem determinar que certos processos de pensamento desintegrado ou de descontexto emocional são esquizofrénicos. Antes, poderão ser simples brincadeiras, fases de crescimento, etc, etc.

Para além disso, o uso de psicotrópicos em quem quer que seja tem efeitos severos. São drogas fortes que actuam no sistema nervoso central, elas próprias alterando o comportamento, o humor e a cognição, quantas vezes de forma negativa. Todo o psicotrópico cria dependência. Como diz um psiquiatra que é tio de um bom amigo meu: “Se fores são mas tomares estes remédios, deixas de o ser em pouco tempo.” Posso imaginar o efeito pernicioso e devastador que estas drogas têm numa criança. Dá-las a uma menina pequena devia ser considerado crime, porque o é, de facto. Uma instituição que o faz não devia continuar a ter menores ao seu cuidado. Está a criar doentes que não existiam e a contribuir para a taxa de perturbados na sociedade.

A terminar, aponto outra situação: uma educadora de infância aconselhou os pais de um menino de 4 anos a darem-lhe calmantes porque ele “era hiperactivo” e, segundo a experiência dela, beneficiaria disso...

As pessoas parecem estar esquecidas que as crianças são ruidosas, brincam, saltam, fazem teatros, têm amigos invisíveis, choram, riem, são tímidas e envergonhadas hoje, atrevidas e respondonas amanhã, não gostam de colos que não conhecem, têm saudades, gostam de mimos, confundem-se e fazem partidas, são… crianças saudáveis. Se querem robots, encomendem um pela internet. 

Sunday, November 13, 2011

Ilhas à Venda



Em Março do ano passado, apareceu a notícia “Ilhas gregas são vendidas para fazer frente à crise que o país enfrenta”. Não se tratava das ilhas turísticas que todos bem conhecemos, aquelas que fazem parte do circuito habitual dos iatistas nos Mares Egeu e Jónico; nem tão pouco de ilhas habitadas. Tendo em conta que a Grécia possui mais de seis mil ilhas, e que apenas pouco mais de duzentas têm habitantes, o país bem podia vender algumas das desabitadas a excêntricos milionários. Afinal, quem, tendo dinheiro para tal, não gosta da realidade fílmica de possuir uma ilha no Mediterrâneo?

No entanto, muito em breve se colocou outra questão. Porque não vender ou talvez alugar por um prazo longo algumas das ilhas mais turísticas (e habitadas)? Aí, já se começou a falar de ilhas tão conhecidas como Mykonos e Rhodes. Falou-se até da venda de parte dessas mesmas ilhas. Ninguém explicou muito bem como se faria a divisão: metade da ilha pertencia ao Governo Papandreou e a outra metade ficava na posse de um privado? Onde se traçava a linha imaginária que ia dividir a ilha a meio? Que direitos tem o privado face às casas e aos habitantes que moram na sua parte da ilha? Quem lá se desloca está, automaticamente, a trespassar terreno de outrem? E se o privado não fosse da União Europeia, os gregos que morassem na parte grega da ilha teriam de se munir de passaporte sempre que quisessem ir a esse terreno visitar a família que lá morava? Confuso…

Os factos, porém, eram os seguintes: os dirigentes alemães – qui d’autre?... – aconselharam a medida de venda de ilhas ao Governo grego para fazer face ao défice público. Claro que tal conselho surgiu na sequência da ajuda da União Europeia e do empréstimo do FMI à Grécia. Os gregos “ganharam” 110 mil milhões de euros emprestados com juros e, com eles, uns quantos “conselhos” sobre como os pagar rapidamente. O Financial Times e o The Guardian especularam amplamente sobre o quanto podia render uma ilha grega ao Governo grego. Qualquer coisa como 2 a 15 milhões de euros. Nada de se desprezar. Investidores chineses e russos e milionários conhecidos como Abramovich manifestaram imediato interesse na compra dos paradisíacos bocados de terra e tinham planos para magníficos investimentos nos locais.

Foi possível entrar em portais da net e “ver” certas ilhas à venda. Como exemplo, Nafsika, uma ilha do mar Jónico, estava em leilão por 15 milhões. Mas nem todas estavam tão bem posicionadas. Algumas ilhas vendiam-se por cerca de 2 milhões, ou seja, menos do que uma casa em certos bairros de Londres. Makis Perdikaris, director de uma empresa chamada Greek Island Properties, afirmou estar duplamente entristecido por “vender terreno do seu país e do povo grego” e ainda por ver que este era “o último recurso” da Grécia. Analistas internacionais acharam o caso “uma vergonha”; outros, com a mesma leveza, declararam que esta acção “prova[va] que a Grécia esta[va] a levar a sério o pagamento da sua dívida externa.”

Entretanto, vieram desmentidos a público a par de re-afirmações da notícia e, apesar de eu ter muitos amigos gregos que vivem nos mais diversos locais da Grécia, nunca fui capaz de apurar ao certo se o Governo tinha vendido as ditas parcelas de ilhas ou não. E isto porque os gregos, actualmente, são os últimos a saber o que lhes acontece. Eu mesma já cheguei a informá-los de coisas que vi na televisão e que eles ainda não sabiam. Há uma espécie de sonegar de informação, suponho que – como eles me disseram – “para manter o povo sossegado e evitar uma revolução”.

Como todos sabemos, as últimas notícias reportaram que a Alemanha está disposta a perdoar à Grécia metade da dívida desta. Ora, todo o perdão tem pouco de magnanimidade e muito de troca, como bem nos tem ensinado ao longo da História a Santa Madre Igreja. Pessoalmente, estou em crer que o perdão alemão está de olho no enorme exército da Grécia. À conta de muita guerra no curso dos tempos com os seus vizinhos turcos – para além de uma enorme complexidade com os macedónios e os cipriotas – e da sua posição geográfica mais ou menos frágil, a Grécia não abdica de um exército fenomenal. Para além de ter serviço militar obrigatório durante 9 meses (sem qualquer excepção para estudos) para todos os rapazes e serviço militar voluntário para as raparigas, a Grécia ainda hoje é o maior importador de armas da Europa e gasta muito do seu PIB em armamento. Curiosamente, segundo aqueles labirintos políticos do costume, os países europeus que cobram a dívida à Grécia (e.g. França e Alemanha) são os mesmos que lhe vendem armas… Mas claro que é bastante mais simpático receber o dinheiro do armamento, perdoar uma dívida e ainda ficar com o maior exército vivo da Europa a lutar por nós e sob o nosso comando, quando e se a gente quiser…

Estou a contar uma pequena parte desta historieta porque agora com as medidas da Troika me ocorreu que Portugal não tem, nem de perto nem de longe, um exército que interesse à Sra Merkel. Que moeda de troca lhe havemos de dar? O Algarve seria uma boa ideia, mas os ingleses já o foram comprando devagarinho e o que resta não dá nem para saldar uma dívida de mercearia. E se fossem as ilhas, como primeiro ocorreu ao cérebro Papandreou? Ah, mas felizmente, nós, ilhas dos Açores, temos uma sorte estupenda. Primeiro, porque turisticamente somos quase desconhecidos. As pobres das ilhas gregas, não lhes bastava terem um clima espectacular como ainda estão no berço da Civilização Ocidental e atreveram-se a fazer do turismo a sua primeira fonte de recursos, tendo quem as visite por razões históricas e quem as visite por razões de sol e mar. Já os Açores, abençoados por Deus com um capacete de brumas quase todo o ano, e historicamente muito pouco relevantes no contexto mundial (vá… convenhamos!), não podem ter tais pretensões. Há mapas-mundo que nem contemplam a representação dos Açores. Temos muitíssima sorte!

A Grécia recebe uma média de 18 milhões de turistas por ano e a esmagadora maioria destes vai visitar as ilhas. Os que de entre vós conhecem as ilhas gregas saberão que, se não fossem os turistas, elas não teriam muito mais de onde retirar lucro, para além de ovelhas, azeitonas e laranjas. Dizem-me que os Açores têm cerca de 160 000 turistas por ano - não encontrei estatísticas e acho um número inflacionado, mas ainda bem que não são mais! Ovelhas não temos, mas não esqueçamos que as nossas vacas parecem bastante felizes, segundo foi apreciado pelo próprio Presidente da República. Mas angustia-me o facto de, contrariamente à Grécia, possuirmos tanta boa infra-estrutura a todos os níveis: hotéis, marinas, estradas, restaurantes. Nas ilhas gregas, isto é tudo caseiro e rural. Só para dar um exemplo, em toda a Grécia, só há 50 marinas… Quem quiser amarrar barcos, amarra em bóias e salta para terra (o que nunca impediu ninguém de lá ir anualmente, inclusive eu mesma que por lá andei a navegar).

Porque é que estou angustiada com isto? Porque imaginem se, por um infeliz acaso, um dirigente alemão – não esqueçamos que estes povos do Norte acham que Açores é “tropical” – tem a infeliz ideia de saber da nossa existência e sugerir a nossa venda ou aluguer ao Governo português? A minha grande esperança é que, dado que ninguém nos dá qualquer importância, se esqueçam que cá estamos. Caso contrário, imagino já o leilão na internet do Corvo, de Santa Maria, da costa norte de São Miguel… Felizmente, nós não valemos tanto que alguém nos queira comprar; aliás, nós damos muita despesa… Recordo um célebre estudo, defendido publicamente, da Universidade dos Açores que reflecte o assustador gasto que é manter cada ilhota açoriana cheia de povinho. Portanto, graças a Deus, ninguém nos há-de querer. Mas, pelo sim, pelo não, o melhor é não fazermos muito barulho. A não ser que queiramos aparecer no E-Bay com uma etiqueta: “Vende-se ou aluga-se. Usado mas em estado razoável. Terreno produtivo. Clima húmido, nevoento, chuvoso, deprimente. Povo tranquilo e conservador, habituado a obedecer sem custo. Vacas felizes.”

Friday, November 11, 2011

DNA - Do Not Ask


Há poucos dias, li uma entrevista no “Público” feita a Torsten Heinemann e a Thomas Lemke, investigadores da Goethe Universität de Frankfurt que estiveram em Portugal a participar num seminário de Patologia e Imunologia no Porto. À primeira vista, pode parecer estranho que dois homens das Ciências (ditas) Humanas tenham vindo a tal encontro, mas a razão é simples: Heinemann e Lemke dedicam-se actualmente ao projecto “DNA and Immigration” que estuda as implicações éticas e sociais da análise de ADN enquanto sistema usado na política de imigração europeia.

Confesso que foi uma surpresa saber que alguns governos europeus usam, desde há anos, as análises de ADN como forma de travar a imigração para os seus países. Isto tem peso sobretudo na questão do reagrupamento familiar, em que os candidatos têm de passar pelo teste de ADN para provar que são filhos biológicos do imigrante em causa e da sua legítima mulher, tal como consta da certidão de nascimento. Na prática, isto significa que tanto os filhos adoptados como os que resultaram de processos de fertilização tecnológica (in vitro, doações de esperma ou de óvulos) ou os filhos de relações anteriores que coabitem com este casal têm a entrada no país automaticamente negada e devem, portanto, permanecer num país diferente do pai se este continuar a optar pela imigração. Escusado será dizer que outras relações familiares com laço biológico (e.g. pais ou avós do imigrante em causa ou seus filhos biológicos maiores de idade) ou sem este laço (e.g. unidos de facto) são automaticamente recusadas.

Heinemann e Lemke estudam a aplicação deste sistema sobretudo na Alemanha, embora estes testes sejam utilizados por 21 países, dos quais 16 são europeus. Teoricamente, não se pode obrigar o imigrante a sujeitar-se ao teste, mas quem não o fizer tem a entrada negada. Não são aceites razões culturais, religiosas ou éticas para a recusa. Nalguns países, é o imigrante quem tem de pagar o teste; noutros, não. Há ainda a interessante variável de (pasme-se!) o sujeito apenas ter de pagar se o resultado se apresentar negativo para ele. Os perfis de ADN ficam na posse dos governos e podem ser usados para identificações criminais, desde já diminuindo a presunção de inocência de um imigrante no contexto da Lei.

Como se prevê, há casos caricatos. Por exemplo, um viúvo africano que teve de submeter dois filhos ao teste e descobriu que um não era seu… Essa criança, órfã recente de mãe, teve de ficar na Somália, enquanto o pai e o irmão emigravam para a Alemanha. Como se vê, é humanamente desastroso, mas bastante eficaz do ponto de vista governamental de “travão” à imigração.

Pessoalmente, tenho a mesma opinião que estes investigadores  que são peremptórios ao afirmar que a noção de família não se restringe à biologia; pelo contrário, é uma noção plural e larga que faz parte do conceito de vida do cidadão alemão – porquê negar um direito básico usufruído por este ao cidadão que vem de fora? Tal negação tem efeitos catastróficos, desde já na integração do imigrante, que vê membros importantes da sua família nuclear excluídos do seu dia a dia sem razão para tal.

Acredito no slogan que surgiu quando a febre dos clones se tornou moda: DNA pode traduzir-se por “Do Not Ask”. Nenhum governo devia arrogar-se o direito de comparar códigos genéticos para decidir se ficamos ou não com aqueles que escolhemos por Amor. Utilizar algo tão pessoal e ademais tão acidental como a biologia de um indivíduo para decidirmos da sua vida é brincar aos deuses e, no caso concreto, aos deuses territoriais e cruéis, fazendo de outros seres humanos as nossas casinhas do tabuleiro do monopólio. Isso terá, decerto, um preço muito caro no futuro.

Heinemann e Lemke consideram que a (sua) Alemanha é o país que aplica os testes de ADN de forma mais implacável, seguindo à risca a genética e sem consideração pelo aspecto humano.

Vagamente, do fundo da memória, salta o nome de Josef Mengele, o médico “Anjo da Morte” que, há 60 anos atrás, fazia experiências nos campos de concentração alemães, transformando meninos de olhos escuros em exemplares de olhos azuis.

Não será que, lenta e suavemente, estamos a caminhar num sentido hitleriano? Nada disto é muito publicitado porque a opinião pública de hoje em dia, informada através dos media, iria revoltar-se, tendo ainda a memória fresca de uma Europa que foi devassada por ideais de pureza genética. Mas terá mesmo isso presente? E não será que (devagar e com muita cautela para não assustar) a poderosa máquina dos economicamente mais fortes está a tentar, de novo, uma raça superior? 

Wednesday, November 9, 2011

Entrevista a Rui Goulart, autor de "A Identidade do Olhar"

CC- “A Identidade do Olhar” é um título que parece revelar muito do que é o livro, já que esta obra tem a particularidade de ser um conjunto de poemas mas também de fotografias, ambos fruto do mesmo autor…

RG- Sim. Confesso que procurei um título que pudesse dar uma janela do que é o livro. Não é por acaso que a capa do livro é uma janela virada para o mar e o basalto, uma foto tirada numa Casa dos Botes em ruínas que tem muito a ver comigo pela ligação ao mar. N’”A identidade do olhar” a fotografia não é uma legenda do texto; é apenas uma viagem que eu proponho – indico o caminho, mas depois ausento-me e o leitor segue ou não. A fotografia e a poesia são ambas muito subjectivas. Existe uma relação entre as duas neste livro, e eu sei que há a tentação das pessoas a procurarem, mas essa relação não é directa nem tão pouco obrigatória entre o título e corpo dos textos e as fotografias. A relação é pessoal, embora a construção foto-texto tenha sido feita em fases diferentes e nem sequer tenha sido pensada como tal inicialmente.

 
CC- Sei que este livro começou por ser uma partilha na internet. Como é que se deu esse início?
RG- É verdade. Penso que este deve ser o primeiro livro na região que nasceu no Facebook. Eu já escrevia, mas só para mim, e passei depois a partilhar um texto acompanhado de uma fotografia, consoante iam “saindo”… Então, surgiu a oportunidade do Banif fazer uma exposição de fotos com este conceito, que passou pelo Pico e por S. Miguel. Depois, surgiu o convite para o livro. Mas, indiscutivelmente, a raiz do livro no seu formato (não na essência) nasceu na rede social.

 
CC- O que é que mais gratificante – escrever ou fotografar? Ou um não faz sentido sem o outro?
RG- Cada um tem finalidades diferentes. A poesia é um encontro comigo, uma libertação, uma pausa que faço na vida do meu círculo profissional que é muito racional e onde tenho de ter um discurso muito directo, usar a voz activa, ter ausência de adjectivação mas ser criativo nessas limitações. Sinto a necessidade de estar algum tempo a escrever depois com emoção (que tem de faltar no jornalismo para haver objectividade). A poesia é quase uma catarse.
Enquanto a poesia é a pausa, a fotografia é o momento. Momentos que ficam registados e que servem para ver e sentir para além do que vemos.
Uso muito esta frase para resumir o livro: a poesia é a fotografia da alma e a fotografia é um poema do olhar.



CC- Esta pergunta é inevitável, apesar de não ter relação directa com este livro: como é que encara este fenómeno, à escala nacional, dos pivots de Telejornal escreverem livros?
O serem figuras públicas muito conhecidas é uma forma de promover mais a obra? Em termos práticos, é possível separar o apresentador de televisão do autor?

RG- As pessoas terão sempre uma reacção… Nem que seja “Não sabia que ele escrevia!”… Não vou negar – apesar de não ser o meu caso! – que há um oportunismo a nível nacional, um aproveitamento do ser-se figura pública para se publicar livros. Normalmente, são romances ou biografias; não conheço nenhum que tenha publicado poesia ou fotografia. Muitos deles publicam para ganhar dinheiro também.
Tenho plena consciência de que fiz exactamente o oposto com este livro – em vez de aproveitar o mediatismo (se é que posso falar em tal nos Açores) para escrever, esta partilha é a fuga ao mediatismo. Aqui, fujo à pressão e à exposição do jornalismo. Gosto de estar no mundo das emoções e do silêncio, de me encontrar comigo, porque a felicidade está dentro de nós… Não tenho objectivos comerciais com este livro. Quero partilhar, porque partilhamos pouco no mundo. E também quero sublinhar isto - eu não escrevo para a Literatura; escrevo o que sinto. Não escrevo para marcar, para entrar no campo da análise ou para entrar nesse mundo restrito que é o mundo literário. Escrevo as minhas emoções. Não estou preocupado com a crítica literária. Porque posso garantir que tudo o que ali está é genuíno e não fabricado e era essa genuinidade que me interessava. Estou consciente das minhas limitações enquanto escritor, quero dizer, não é por aí que quero realizar-me.


CC- Há uma citação de Alberto Caeiro que abre o livro dizendo “Ser poeta não é uma ambição minha / é a minha maneira de estar sozinho.” Não é paradoxal que essa forma de estar sozinho (que é fazer poesia) seja ao mesmo tempo uma forma de se dar a conhecer, partilhando?

RG- …É. Isso não está aí por acaso.
A poesia é a minha forma de estar sozinho mas, ao mesmo tempo, penso que vivemos numa sociedade pouco partilhável, e que não devemos ter medo de partilhar. Pode ser paradoxal o facto de partilhar poemas… Como diz o Lobo Antunes, a partir do momento em que o livro “sai”, ele deixa de ser meu. Mas não deixa de ser o meu modo de estar sozinho, porque os textos foram construídos solitariamente e a minha ambição quando eles foram feitos não passava por ser poeta… Eu próprio estou a interrogar-me sobre essa paradoxalidade agora, porque nunca me tinham feito essa pergunta! Mas é isso – vivemos numa sociedade de imagens e de aparências, onde há imenso medo de mostrar as emoções… Além disso, surgiu esta oportunidade, a reacção das pessoas foi boa e gosto da ideia de ter este registo para mais tarde sorrir … perante a seriedade e a entrega com que os fiz. Estes textos são momentos e olhares interiores, alguns exteriores, alguns até de notícias que dei e transformei aqui …


CC- Podemos contar com mais livros no futuro?

RG- Não sei. Prefiro saborear o momento. A nível de livros, gostava de fazer outro projecto, sem ser necessariamente poético; pode até passar pela área do jornalismo. Mas a época é de crise; os livros, para muitos, não são bens de primeira necessidade… Não gosto de pensar no futuro, mas tenho esse sonho, que já deixou de ser utopia.

Friday, October 28, 2011

Manteigueiros


Manteigueiro é uma profissão antiga mas, dada a actual situação económica, está cada vez mais em voga. Nos Açores, talvez devido à enorme profusão de vacas sorridentes, como foi notado pelo Presidente da República aquando da visita ao torrão do Corvo, e da consequente produção de lacticínios, ser manteigueiro é profissão de grande futuro.

O manteigueiro encontra-se, sobretudo, em posições de chefia intermédia, embora haja manteigueiros aspirantes que ainda não alcançaram a mestria suficiente para lá chegarem. O manteigueiro dá, graciosa e generosamente, manteiga a todos aqueles que considera estarem hierarquicamente numa posição favorável ou, tão somente, visível. Como a hierarquia é fugaz, flutuante, volúvel e outros adjectivos efémeros neste mundo de enganos, o manteigueiro tem imenso trabalho porque lhe cabe a árdua tarefa de distribuir manteiga a muitos. De facto, a uma multidão. E não raro, o infeliz manteigueiro se vê na posição de ter de dar manteiga a quem – por inépcia profissional – anteriormente desprezou. Em tais casos, é justo dizer que o manteigueiro enfrenta muito bem a situação: o nariz que antes todo se retorcia à presença do outro como se este fora um insecto dá agora lugar à vénia que respeitosamente se desdobra perante a mesma personagem como se ele fora um nobre. Da mesma forma, o coração do manteigueiro é como o da Maria Bethânia naquela canção do Adeus, isto é, “não guarda memória de quem já passou”, embora, no caso particular do manteigueiro, ele guarde um back-up para o caso da hierarquia se lembrar de ressuscitar personagens e de essas personagens lhe poderem ser úteis.

“Utilidade” é o slogan que rege a vida do manteigueiro. Desenganem-se todos os que vêem no manteigueiro apenas um servidor – e mais ainda se iludem os que nele vêem um servidor fiel. Para o manteigueiro, “fiel” é nome de cão e não tem outro significado. Quanto a ser servidor, claro que sim, ele é mais do que isso – é servil, mas com o único intuito de se aproveitar de quem serve. A psicologia do manteigueiro é complexa porque radica na mais profunda antinomia do ser humano – ele mostra-se submisso para melhor dominar. O manteigueiro não ignora que é com mel que se apanham moscas. Mais do que isso, ele está plenamente convicto de que a hierarquia apenas escolheu moscas, tontas e sedentas de que alguém lhes dê um bocadinho de mel para não se sentirem tão tontinhas. Convencido da sua superioridade e maldizendo a sua pouca sorte de não ter (ainda) sido escolhido para líder, o manteigueiro - que não possui qualquer tipo de escrúpulos e é profundamente hipócrita - dá aos seus superiores o que eles precisam para se sentirem bem: elogios. Elogia-os tão profusamente e com um ar tão sincero e repleto de devota e fingida escravidão que eles ficam a precisar dele para tudo. E assim, devagarinho e insidiosamente, dento de algum tempo o (suposto) chefe só se mexe para o lado que o manteigueiro ordena, perdão, sugere. Sugere com o toque de mestre “parece-me que é isto o que fazia V. Excª parecer melhor na fotografia!”. S. Excª fá-lo imediatamente e ainda agradece ao manteigueiro!

O manteigueiro, embora ufano do seu poder e domínio, vive sempre em secreto ódio contra aqueles a quem dá manteiga. Excepto, é claro, se receber o inusitado prémio de chegar à tribo superior. O manteigueiro é uma profissão sem problemas de mudança pois não tem limite de idade nem tão pouco exige currículo académico nem experiência profissional anterior. De igual modo, o manteigueiro distribui manteiga à esquerda e à direita, não tem cor política e não se preocupa com convicções ou filosofias, muito menos com questões éticas. De facto, há manteigueiros que se dizem firmemente crentes em algo ou seguidores de um caminho… Mas a experiência mostra-nos que são os mesmos que, passados poucos dias, têm a mesma força e convicção em afirmar-se crentes no oposto e seguidores de outra via. O manteigueiro confia numa coisa apenas: o melhor para si. O resto são modos de lá chegar. O manteigueiro com experiência sabe que não é, pois, suficiente dar manteiga apenas aos superiores hierárquicos… Muito longe disso! Efectivamente, é necessário manteigar aqueles que se encontram ao seu lado (seus concorrentes), pois a qualquer momento podem passar a ser seus chefes. De igual modo, o manteigueiro experiente não desdenha e até se compraz em manteigar os seus subordinados, porque não ignora que deles obtém toda uma panóplia de coisas que dão jeito, nomeadamente trabalhinho feito a tempo e horas, segredos mantidos a sete chaves, favores que lhe ficam a dever por terem trabalho ou promoções, e até uma certa adoração pacóvia vinda de algum mais falho de miolos, o que sempre sustenta a necessidade inesgotável que o manteigueiro tem de ser admirado por alguém.

A todos os jovens que desejam ser manteigueiros, recomenda-se hipocrisia, astúcia, olho vivo e paciência. São inúmeros os casos de manteigueiros promissores que apostaram no cavalo errado e, infinitamente pior, desprezaram o cavalo correcto, vindo depois a sofrer consequências muito funestas. Manteiguem, pois, o maior número de indivíduos que puderem, pois nunca se sabe qual deles é que vai ganhar.

Monday, October 24, 2011

A Boa Terra de Pearl Buck


A Boa Terra é uma obra ainda hoje polémica. Fala-nos de Wang Lung, camponês pobre e trabalhador mas fiel aos princípios de dever familiar e para com a terra que regem a China. Em contraponto, está a casa de ricos proprietários Hwang, cujo pequeno império começa a declinar devido ao esbanjamento e ao uso incontrolado de ópio. A mulher de Wang Lung serviu como escrava na casa de Hwang e foi comprada pelo marido: só isso serve para demonstrar todo um feixe de relações.

O-Lan, a mulher, tem vários filhos, inclusive uma deficiente mental cujo nome é irrelevante pois todos na família lhe chamam “pobre tonta” e ainda uma filha que sufocam à nascença por não ter comida para lhe dar. Wang Lung vive miseravelmente durante a seca, as migrações para a cidade, os abjectos negócios de compra e venda entre ricos e pobres mas trata os filhos com a severidade de um patriarca, ensinando-lhes que prefere deitar comida fora e passar fome do que comer o que eles tenham surripiado a outros. Com o tempo, porém, desorientado e cansado da desgraça, também Wang Lu roubará e se revoltará contra os poderosos. A reviravolta da roda da fortuna faz com que Wang Lu desonesto consiga lucrar na vida o que jamais lucrara com a honestidade: prospera, educa os filhos, compra terras a Hwang, torna-se um senhor. Wang Lung esquece os valores: um rico merece uma concubina… ou mais. Com a compra de concubinas, a família de Wang Lu passa a ser um núcleo de guerras constantes entre as suas mulheres e seus filhos. Wang Lung, velho, não tem paz; sente que falhou.

A Boa Terra é tão criticado quanto aplaudido. Muitos argumentam que a cultura chinesa não pode ser criticada tão linearmente por uma “estrangeira” e que os sistemas políticos, familiares e sociais do Oriente jamais serão entendidos pelo Ocidente. Outros defendem que Buck escreveu muito cuidadosamente, sem juízos de valor em adjectivos, com pura e simples descrição de um tempo e espaço em que ela própria viveu.

Pearl Buck ganhou o Nobel da Literatura em 1938 “pelas suas ricas, verdadeiramente épicas descrições da vida na China rural e ainda pelas suas obras-primas biográficas”. Não era uma “estrangeira”. A China foi onde Buck passou a maior parte da sua vida, apesar da sua cidadania americana. Aos três meses, muda-se para lá, com os pais, missionários; aprende a falar chinês clássico e inglês desde os primeiros tempos; foi a menina “Sai Zenzhu” para todos e “Pearl” apenas em casa; em adulta, escolhe também a China para viver com o seu primeiro marido (de quem herdou o nome “Buck”). O casal vive momentos difíceis nas revoluções tormentosas da China, acabando por se mudar para os E.U.A. e por se divorciar. Buck volta a casar, mas não mais regressa à China… Foi impedida de o fazer pelos oficiais de estado chineses que a acusaram de “imperialista americana”. Ironicamente, a sua prosa e a sua forma de estar revolucionária eram mal vistas na América. O amor de Buck pela China e pela Humanidade foi demonstrado toda a vida em inúmeras acções, nomeadamente na forte campanha contra a discriminação da pobreza na Ásia, na promoção de oportunidades para todas as crianças e numa rede de adopção (na época, o regime chinês considerava as crianças filhas de nacionalidades mistas uma aberração). Buck foi uma das primeiras defensoras do povo, por convicção e não por moda. Marginalizada por duas culturas, a sua lápide está escrita em pinyin, por desejo seu.

Tuesday, October 18, 2011

O Jogo das Contas de Vidro de Herman Hesse



O Jogo das Contas de Vidro é um romance que joga com a utopia do conhecimento absoluto numa comunidade de intelectuais brilhantes versus a vida secular, vibrante de sensações.
Num local imaginado (com muitas semelhanças com a terra Natal do autor e sem dúvida bebendo das suas experiências educativas), Hesse conta a história de um grupo de escolas de elite, onde só os verdadeiramente dotados se dedicam ao estudo das ciências e das artes. O Jogo por eles gerado é a consagração de todas as disciplinas em conjunto, espécie de linguagem universal onde se relacionam valores e símbolos. Os jogadores fazem conciliações harmónicas de temas inicialmente paradoxais, partindo de qualquer proposição científica ou questão artística. A simbologia inerente a esta batalha mental é a “busca da perfeição, uma aproximação ao espírito que, para além de todas as pluralidades, é Um em si mesmo.”

Limando a vida até à unidade máxima, espera-se dos jogadores que sejam o ideal do Homo Universalis. As escolas são uma comunidade fechada em si própria, vivendo num tempo futuro em relação ao nosso, desprezando os académicos vulgares e pseudo-intelectuais e criticando altivamente a mesquinha materialidade e a vaidade inflamada da sociedade pública. Josef Knecht, magister ludi da Academia, homem empático e questionador, acaba por interrogar-se se sua tarefa é mais útil do que a vida de um preceptor juvenil ou do que a de um homem do campo. Dando-se conta da esterilidade que regula a vida da Academia, Knecht não pode continuar a defendê-la e abraça a vida “real”; por seu lado, a Academia teme-lhe a coragem e o carácter e etiqueta-o como perigoso.

Herman Hesse ganhou o Prémio Nobel em 1946 pela sua “escrita inspirada, que, embora sempre crescente em ousadia e espírito de penetração, nunca deixou de ser exemplo dos ideais clássicos humanitários e das mais altas qualidades”. O Prémio surgiu após a supressão das suas obras na Alemanha nazi, de onde era natural. Hesse nunca acedeu a ser igual à sua “tribo”, apesar dos desconfortos. Trocou de nacionalidade e abraçou a multiculturalidade em pleno – “que a diversidade em todas as formas e cores possa viver neste mundo” proclamou Hesse aquando do Nobel.

Sunday, October 16, 2011

A Parada Alegre


O Correio da Manhã noticiou: “Governo dos Açores promove parada gay em S. Miguel em 2012”. Agora, escolha o que isto é: 1) uma notícia do dia 1 de Abril; 2) uma anedota; 3) um erro de impressão. Nenhuma das opções referidas; ao que tudo indica, a notícia publicada em Setembro último está correcta. O Governo Regional vai promover uma Gay Parade.

Primeiro, quero esclarecer que não tenho absolutamente nada contra quem é gay. Aliás, seria ridículo eu achar-me no direito de ser contra ou a favor da opção sexual de cada um. Também não dou a ninguém a confiança de se pronunciar sobre a minha – muito menos ao Estado, a quem não me ocorre, em caso algum, que vá promovê-la. Que tem o Estado a ver com isso? O Estado promove muita coisa, e ainda bem, mas promover questões sexuais parece-me totalmente descabido. Imaginem se ao Estado lhe dá para promover a castidade. É que se lhe damos o direito para se pronunciar e deliberar sobre assuntos da nossa vida mais privada e íntima, sujeitamo-nos ao que daí advier.

Também não tenho nada contra as famosas Gay Parades. Aliás, vivi em locais onde elas existiam: Holanda e Canadá, e também cheguei a assistir na Dinamarca e nos E.U.A. São eventos cheios de cor, espécie de corso de Carnaval temático e com uma função muito particular. Nem todos os homossexuais acham interessante a participação numa Gay Parade, como é natural. Esta história de meter os homossexuais todos dentro do mesmo saco é discriminatória, por si só. Os homossexuais, como os heterossexuais (não seria preciso dizê-lo, mas parece que é…) são um grupo heterogéneo – há os tímidos e os extrovertidos, os recatados e os histriónicos, os que têm uma data de parceiros e os que vivem em união com o mesmo há muito tempo. Alguns casaram. O primeiro casamento entre homossexuais nos Açores aconteceu em Agosto de 2010. O casal Carlos e Manoel teve de lutar contra uma tonelada de burocracia e preconceitos. Tudo isso exaspera, dói e massacra.

Mas o ponto aqui não é a questão dos direitos dos gay ou de como o mundo de hoje devia ter abertura de espírito e não tem. Há muitos direitos que deviam ser respeitados, por fazerem parte dos direitos inegáveis a todo o ser humano, mas que são espezinhados todos os dias junto à nossa porta. A questão é que o Governo deve executar medidas para que os direitos dos cidadãos sejam respeitados. Sem qualquer dúvida. Dentro de tais medidas, no caso em concreto, farão parte, com certeza, a desburocratização para que mais gay possam casar-se sem que as autoridades emperrem o caso como se fosse pecado; farão parte eventualmente acções junto da população mais jovem para que os jovens gays não sejam discriminados pelos colegas mais violentos (como tanto se vê…); fará parte o que o Estado entender por bem fazer para preservar os direitos das pessoas.

Mas uma Gay Parade não é propriamente isso. É uma manifestação e, como todas as “manif”, vai quem sente na pele os problemas que advém da condição e ainda assim não vão todos, mas apenas os que concordam que desfilar pelas ruas é solução. Todas as “manif” são, indubitavelmente, movimentos de cidadãos ou de associações comunitárias. Não são promoções e organizações estaduais. Porque, obviamente, uma “manif” protesta contra o status quo. O Governo vai organizar uma “manif” para protestar contra um estado de coisas que se vive nos Açores… quando ele é o organizador da nossa sociedade?! O papel de protestante cabe aos cidadãos, senhores, não ao Governo! Quando muito, o Governo poderá apoiar as instituições que queiram expressar-se deste modo.

Claramente, nos Açores sofremos de um problema que começa a ser crónico. O Governo passou a ser o Pai de todos. Não há nenhuma iniciativa que o Governo não subsidie, não organize, não pague, não decida. E todos, filhos dependentes e nunca maiores de idade, ficam sem autonomia mas também sem voz. Isto é muito confortável para os filhos que vivem sempre à custa de. Simplesmente, não podem jamais dizer que algo está mal... De vez em quando, chega-se ao ridículo de situações como esta que não se passam noutros locais, onde o promotor se ridiculariza a si mesmo (será que sem dar por isso?).

Portanto, a partir de agora quem quiser fazer uma “manif” basta contactar aqueles contra quem protesta. Eles organizam e promovem. Parece-vos estranho? Bem, não tão estranho quanto ver a “manif” em si. Sim, porque isto das Gay Parade são basicamente Drag Queens em desfile. E eu sempre gostava de saber quem é que irá predispor-se a representar o Governo – promotor do evento – para desfilar como Drag Queen à cabeça deste corso. Não me digam que, protocolarmente, tinham esquecido esta obrigatoriedade?

Friday, September 30, 2011

A diferença


Ontem, visitei o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos. Teria sido uma visita como tantas outras, já que perdi a conta às vezes que visitei este Centro desde o dia da inauguração até hoje. Mas foi completamente diferente, porque o guia da visita era uma senhora cega – sei que está na moda dizer “invisual”, mas eu gosto de palavras puras e não percebo porque assusta e incomoda a frontalidade das palavras quando elas são bonitas e não agressivas.

O Centro de Interpretação do Vulcão inaugurou ontem a sua sinalização em braille. Não é coisa pouca, sobretudo porque a Vanda – nossa guia, moradora no Faial – explicou que existem muito poucas instituições em Portugal que tenham instalado esta facilidade. A Vanda Ângelo não fala de cor. Fala porque viaja e conhece. Gosta de novos lugares, sobretudo “espaços com boa sonoridade” – as grutas, as igrejas. Conhece Roma e Paris. É com alguma insatisfação que diz que o Museu do Louvre não tinha ainda sinalização em braille quando ela o visitou. Mas como é optimista confia que é possível que já a tenham adoptado.

Connosco, estavam outras pessoas com deficiências visuais. Graças a elas, fomos aprendendo a “ver” o Centro de outra maneira. Excepto o Farol, que elas podem visitar mas apenas acompanhadas por alguém – até porque o Farol é complicado. Por desconhecimento meu, não sei até que ponto o seria realmente, porque a Vanda já subiu a Montanha do Pico. E, aliás, reclamou porque não esta não tem (ainda…) sinalização em braille.

No Centro, para além da sinalização em braille no chão, que dá indicações sobre direcções, existe ainda sinalização nas paredes e um guia. O guia é suficientemente extenso para que se compreenda tudo o que está no Centro e, além disso, explica pequenos detalhes essenciais à visita.

A Vanda explicou que, nos Capelinhos, está tudo sinalizado em braille em português mas também em inglês, o que se compreende facilmente - o braille não é uma linguagem; é uma forma de representar línguas de forma táctil e, como tal, é naturalmente arranjado de forma diversa consoante a língua que se propõe representar.

Dado que sofro do egoísmo que assalta todos os seres humanos, disse-lhe que só me tinha dado realmente conta das necessidades prementes das pessoas com diferenças quando na minha família nuclear nasceu um surdo profundo. Também só aí, e porque tive de começar a aprender, me apercebi que a Língua Gestual Inglesa é uma coisa e a Língua Gestual Portuguesa é outra língua diferente. Infelizmente, também só nessa época entendi que o mundo não está minimamente preparado nem organizado para pessoas que têm uma única limitação sensorial, por mais dinâmicas, inteligentes e ultra-sensíveis que sejam.

Hoje em dia, já não tenho um surdo na família. Ele já ouve - apesar de eu, como todas as mães, me queixar de que “ele só me responde quando quer…!” Não posso negar que fiquei feliz com o reverter da situação. Mas nunca deixei de ser atenta a estas coisas que dantes me passavam ao lado.

É por isso que ontem foi a minha melhor visita ao Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos e o melhor Dia Mundial do Turismo que passei. Dou os parabéns sinceros à Azorina, que rege o Centro, e à Associação de Pais e Amigos dos Deficientes da Ilha do Faial porque sei que foram muitos os envolvidos para que isto se realizasse.

Termino com uma pergunta do poeta inglês Edward Young: “Todos nascemos originais – porque é que tantos de nós morrem sendo cópias?” que eu penso ter sido muito bem respondida pelo americano e.e.cummings “Sermos apenas nós mesmos num mundo que faz o seu melhor por nos tornar iguais aos demais é travar a mais árdua batalha humana e a única que nunca termina."

Sunday, September 25, 2011

O Livro da Selva de Rudyard Kipling




É seguro dizer que o jovem Mowgli, a pantera negra Bagheera, o urso Baloo e o tigre Shere-Khan são hoje personagens mais conhecidas devido ao último filme de animação produzido pelo próprio Walt Disney - O Livro da Selva (1967). O filme foi baseado no livro com o mesmo título (1894), um conjunto de histórias em tom de fábula em que os animais são antropomorfizados e em que a personagem principal é um rapazinho abandonado em bebé na selva e criado por lobos desde então.

As “crianças selvagens” e o seu isolamento completo face à sociedade era um tema caro ao mundo desde os ensaios de Rousseau a que as descobertas de Lévi-Strauss dos meninos-lobo encontrados precisamente na Índia em 1911 vieram avivar em termos de teorias de aquisição da linguagem e de psicologia do desenvolvimento.

Mas a ideia de Kipling - nascido e criado na Índia, embora súbdito britânico – era fazer contos alegóricos da sociedade da época, metaforizando a sua política, movimentos nascentes, costumes, leis morais, ética, e perigos. A comunidade da selva do livro de Kipling tem um código ético tão interessante e corajoso que inspirou muitos na época – inclusivé Baden-Powell, fundador do Escutismo, que assim teve a ideia para os jovens Lobitos.

Kipling ganhou o Nobel da Literatura em 1907 “pelo seu poder de observação, imaginação original, virilidade de ideias e extraordinário talento narrativo”. Foi o primeiro escritor de língua inglesa a recebê-lo. Continuam a ser polémicas as suas obras: ora é visto como um emblema do colonialismo, ora se detêm nele como um génio versátil e inovador. Certo é que as suas histórias são ainda hoje atractivas, sobretudo para os rapazinhos aventureiros.

Monday, September 19, 2011

Estrangeiro, olha-te ao espelho


Certa vez, estava eu em França temporariamente a trabalhar com uma amiga quando fomos assaltadas. O que mais nos surpreendeu foi a reacção dos franceses a quem contávamos o sucedido. Todos, sem excepção, abanavam a cabeça e diziam "Este país está cada vez pior. Estamos cheios de árabes /argelinos / marroquinos, turcos, ... Já não se pode andar descansado!" Quando lhes perguntávamos porque é que não punham a hipótese do assalto ter sido feito por um francês - visto não termos visto a cara do assaltante - não havia quem não respondesse que era muito improvável que um verdadeiro francês se dedicasse a actividades criminosas. Um verdadeiro francês, reparem bem! É que existem os que são de mistura, ao estilo cevada para café com leite.

Perante esta reacção tão sentidamente convicta por parte dos nossos colegas parisienses, nenhuma tinha vontade de lhes dizer das suas confusas raízes, mas lá encontrámos coragem para ripostar que também nós éramos, afinal, estrangeiras ali... "Oh, mas isso é completamente diferente, minhas queridas! Vocês não estão aqui a morar!" Portanto, o problema não era ser estrangeiro em França. Era sê-lo e ter a intenção de assentar lá arraiais. O nosso trabalho (muito) temporário não incomodava ninguém, não mexia com as mentalidades, as economias, as demografias, não tirava nem dava nada à França, excepto um par de turistas a mais que - quando muito - acrescentava colorido e produzia sensação em meia dúzia de bons patriotes.

O interessante desta pequena história é que, há algum tempo atrás, acompanhei com esta amiga uns turistas cá nas ilhas. A certa altura, ela advertiu-os sobre não deixarem as malas à vista quando saíssem do carro e, perante o espanto deles porque consideravam as ilhas paraísos sem crime, ela, muito naturalmente, disse que já tinham sido assim paradisíacas mas que depois tínhamos recebido grande vaga de imigrantes e de retornados e, logo, o crime tinha aumentado e "isto nunca mais tinha sido a mesma coisa!" Não perdi a oportunidade de lhe dizer que ela estava a agir tal qual como os nossos amigos parisienses que tanto a tinham chocado na época com as suas afirmações xenófobas. Com aquela expressão de quem foi apanhado em falta, ela disse-me que nem se tinha dado conta disso. "Talvez tu te dês mais conta destes pormenores, porque andaste imigrada... Nós dizemos isto por instinto; não é por mal", justificou.

Não quero trazer aqui à discussão as variadas teorias psico-sociológicas sobre O Outro e a nossa relação com ele. As teorias existem em calhamaços, são discutidas em academias e congressos, mas a prática é tão velha como o mundo com humanos dentro. Os homens criam tribos, as tribos ficam definidas por espaços territoriais e a sobrevivência da tribo passa pela defesa desse espaço (não só mas também) face a outras tribos. O medo do Outro e a ignorância do que ele é justificavam as atitudes de repulsa e até de ataque. A evolução humana trouxe o conceito de "extraneus" - em latim, "estranho" e "estrangeiro" sendo uma e a mesma coisa, o que ainda subsiste em castelhano. Faz sentido. Se em português, "estranho" e "estrangeiro" são hoje coisas diversas, não se apresentam totalmente distintas dentro das nossas cabeças. Pena é que não tenhamos também herdado e mantido até hoje das civilizações antigas que nos fizeram berço o seu extremamente prezado conceito de hospitabilidade, cuja ética levava a tratar com cortesia qualquer "estranho" que entrasse no nosso território em busca de abrigo. Pelo menos, até que o “estranho” provasse ser inimigo. Pois “estranhos”, uns para os outros, nunca deixaremos de ser e isso dá muito mais musicalidade à vida. Como dizia certo músico de jazz americano: “Eu podia tocar num piano com teclas só brancas ou com teclas só pretas mas vocês não teriam tanto prazer em ouvir-me…”





N.B.: Há cerca de um mês, publiquei um artigo sobre uma situação de miséria envergonhada neste espaço. Fiquei surpreendida e feliz por ver que várias pessoas se mostraram dispostas a dar uma mão para ajudar a resolver esse assunto (de entre vários semelhantes que por aí há). Há mesmo quem goste genuinamente das pessoas sem viver na base da troca.

Friday, September 2, 2011

Apartheid da informação


Já esteve naquela situação em que recebe em casa uma carta de uma entidade pública e não consegue perceber o conteúdo? Não está sozinho. A esmagadora maioria dos portugueses já passou pelo mesmo. Intimações de tribunal ou das Finanças, avisos do Hospital ou da Segurança Social, cartas de conteúdo panfletário ou informativo e até mesmo anúncios de emprego na função pública e contratos bancários deixam a população à toa, em busca de um dicionário. A linguagem em forma de minuta que ali é usada sofre de um gongorismo antiquado, cujas flores e pretensiosismo são até difíceis de entender para quem a redigiu mecanicamente – e a prova é que, desconstruindo alguns desses discursos, verificamos a sua incoerência total quanto ao significado.


Caso esteja a pensar que são apenas os iletrados que têm dificuldade em entender estes documentos de uso comum, pense outra vez. Segundo estudos apresentados pela “Português Claro”, 50% dos portugueses tem dificuldade em entender as bulas dos medicamentos e, logo, não sabe bem como há-de tomar os ditos. Ao que parece, apenas 5% da nossa população consegue lidar bem com documentos novos e de complexidade relativa (manuais de utilização de máquinas, por exemplo). De facto, é complicado para qualquer cidadão entender à primeira frases como a seguinte (retirada de um documento comum de seguro automóvel): “por falecimento da pessoa segura, o capital seguro é prestado, em caso de premuriência do beneficiário relativamente à pessoa segura, aos herdeiros desta; em caso de comuriência da pessoa segura e do beneficiário, aos herdeiros deste”. No entanto, lá vamos engolindo e assinando. Ninguém levanta a voz para dizer “Não percebi…” O mesmo acontece com os discursos de boa parte dos nossos governantes onde as pessoas batem palmas sem ter entendido boa parte da mensagem. É o célebre “Não percebi, mas ele fala muito bem!”


A Português Claro, de onde retirei estas informações, é um projecto que, à semelhança da mais velhinha Plain English Foundation, se dedica a ajudar os organismos e empresas numa simplificação da linguagem adequada à compreensão da maioria dos cidadãos.


Porque são os documentos escritos de forma tão barroca e quase ininteligível? Talvez porque assim o cidadão, atordoado, assina de cruz com vergonha de questionar, perdendo uma boa parte da noção dos seus direitos. O facto é que quem não sabe dos seus direitos também terá dificuldade em compreender os seus deveres, o que arrasta consequências negativas para toda a sociedade.


O abismo que existe entre a literacia dos portugueses e a complexidade dos documentos é grande. Mas educar toda uma sociedade não só demora várias gerações como exige uma reformulação cultural profunda; o mais simples é, efectivamente, optar pela clareza dos discursos e dos documentos. Até porque quanto mais sabemos acerca de um assunto, mais capazes somos de o simplificar e de adaptar o nosso discurso a quem nos ouve. Por mais complexo que seja o tema, o verdadeiro conhecedor deve ser capaz de falar dele com a simplicidade que uma criança exige do mesmo modo que, com cientificidade, faz uma palestra.


No entanto, em Portugal, sofremos do mal oposto. Ao invés de se tentar simplificar a linguagem burocrática e a retórica de bancada para povo entender insiste-se no floreado discursivo, quantas vezes com resultados desastrosos para quem tenta, através desse fraseado pomposo, uma acção de marketing pessoal de sentido eleitoralista ou dominador. Assim, acabamos por ter tristes exemplos de cabeças dirigentes cujo palavreado rebuscado acaba por não fazer sentido algum à luz da análise. Ocorre-me o daquele promissor político açoriano que, questionado sobre a situação que vivemos, afirmou: “Sou a favor dos cortes! Reduções é que nunca!” ou a daquele alto cargo que andou às voltas com um “resumo breve” porque pretendia antes uma “resenha sucinta”. Talvez se ande a precisar de umas lições de português… ou de claridade. Sob risco das anedotas linguísticas passarem a ter como sujeitos outros que não os jogadores de futebol.



A pedido de Sandra Fischer-Martins, da Português Claro, aqui fica o link para a apresentação no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=d4Vl6dPmv0w

Friday, August 26, 2011

Viagens Longe da Porta


“Começamos a ser estrangeiros onde nascemos, ou como?!
Agora é o coração que se constrange.  Vivi aqui e ali. Uma, duas, três casas
que abrigaram o adolescente e parecem olhar o homem maduro com olhos cegos,
janelas ocas… Tudo isto do sonho e da saudade é uma mentira arranjada, um
embuste literário ou quê? Então não é verdade que aquela vidraça era minha?
[…]Porque não nos conhecem e festejam as janelas e […] as pedras das calçadas?
Mas passamos ao largo de tudo e tudo fica incólume.”
Vitorino Nemésio, Corsário das Ilhas

Há um conjunto de sentimentos estranhos e invulgares que assalta o imigrante. Quer tenha imigrado por necessidade conjuntural quer o tenha feito por fascínio aventureiro, sente-se, ao chegar ao novo país, relutante ao entranhar de uma cultura que não é a sua. Relutante em pequenos nadas na habituação a um diferente quotidiano, no qual se entrelaçam um modo de pensar necessariamente diverso e um clima quantas vezes oposto ao que deixou. Uma adaptação sensorial completa de um ser humano adulto, cujos sentidos renascem: as papilas gustativas, o estômago e os intestinos confrontados com uma comida totalmente nova, o nariz e a cabeça à luta com uma panóplia de aromas nunca dantes sentidos, os olhos perdidos na anonimidade de rostos que enfrenta, os ouvidos aflitos na preocupação de entender e de se fazer entender noutra língua, o tacto confuso com outra forma de interpretar os seus gestos antes comuns, outra maneira de ser bem-educado (ou não), outra geografia de ruas, parques, mar substituído por montanha, montanha que deu o lugar a cidade. Um abismo cultural que, pouco a pouco, se vai aceitando.


E, a certo passo, é quase com surpresa que descobre que a nova cultura já é a sua. Em pequeninos gestos automáticos, na forma de cumprimentar, na sua lista de compras, no olhar e entender do mundo que antes era novo, e agora se tornou diário… e seu.  

Surge, então, para alguns uma ansiedade indefinida e contraditória de regresso às origens, vulgo saudade, misturada com desgosto por partir. Talvez seja uma espécie de relógio de medo incutido pelos nossos progenitores que nos alerta para não perdermos raízes.  Talvez uma reacção natural de segurança, que está na pirâmide básica das necessidades dos seres humanos.
Todos regressam, de visita. Mas alguns regressam… e ficam. 


Não sou diferentes de milhares, de milhões de pessoas. Tal como o meu vizinho do lado, também eu já fui imigrante. E também eu voltei ao que se chama terra natal. E, como tantos outros, também eu olho em volta, “vivi aqui e ali” mas nada já me conhece ou festeja, tudo deixou de ser meu. Inexplicada e dolorosamente, também eu não me sinto em casa.


Não há casa geográfica possível para os espíritos nómadas. Mas isso, ao contrário do que muitas vezes se apregoa, não é forçosamente triste. Embora desde os mitos gregos se venha pensando que os viajantes não têm mais lugar nem reconhecimento no lar que um dia deixaram, também é certo que nada desperta tanto um ser humano como a viagem em si.


A amargura que, inicialmente, se sente no re-confronto com a terra de origem transforma-se, para muitos, numa espécie de serena alegria, que se alcança sem saber muito bem como (nova transformação camaleónica!), pela gratidão do presente de uma vida cheia, pela consciência dos rumos que a qualquer momento se podem alterar, por uma tão maior segurança individual depois do que se passou e ultrapassou, pela agradável assumpção da diferença, pela paixão de ser em todas as suas vertentes.


Kaváfis, poeta grego, exprimiu bem o que podemos e devemos esperar ao regressar a “casa”, usando como imagem Ítaca, a ilha do célebre herói Ulisses, cuja viagem longa o tornou também um perfeito desconhecido, mesmo por parte da sua família, aquando do regresso:


“Ítaca já te deu uma bela viagem; sem Ítaca, jamais terias partido.

Ela já te deu tudo, e nada mais te pode dar.

Se, no final, achares que Ítaca é pobre, não penses que ela te enganou.

Porque te tornaste um sábio, viveste uma vida intensa,

e este é o significado de Ítaca.

E agora sabes o que significam Ítacas.”




N.B.: Por decisão editorial do jornal, este artigo foi publicado sem o seu título original (
http://www.mundoacoriano.com/index.php?mode=noticias&action=show&id=153
que era o que aqui se coloca.