... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 20, 2019

Pegadas de Carbono


Até há poucos anos, a chamada questão ambiental não era moda – apesar de toda a gente viver de forma bem mais sustentável do que hoje. O Zé que praticava agricultura à moda antiga, andava a pé ou de burro, remendava a sua roupa que durava anos e não tinha telefone nem carro, jamais tinha ouvido falar do “degelo” e da “chuva ácida” mas garantidamente sabia umas coisas sobre mudança climática e espécies naturais e invasoras, sem usar desse palavreado. O Zé era bem mais amigo do ambiente do que os ambientalistas actuais que fazem muito discurso, mas depois usam roupinhas de marca (a moda é a indústria mais efémera e mais poluente do mundo, sem esquecer a escravidão humana que arrasta) e carregam mil e um gadgets: telemóveis, laptops, tablets, câmaras digitais, enfim, um mar de metal não reciclável e de carregadores de lítio. Ambientalistas? Só na auto-designação. Mas esse pessoal quase degola o Zé agricultor porque as vacas dele libertam metano quando arrotam; esse mesmo pessoal gosta de comer bife nos jantares, não fazendo a ligação mental com a vaca, com que aliás nunca lidaram a não ser vendo-a de passagem, em passeio.

A reciclagem é muito importante. Não é só importante para “salvar o planeta”. É importante também (ou sobretudo, não sejamos inocentes!) porque é uma grande indústria. Milhões de pessoas vivem da reciclagem. Os muito pobres vivem de catar o lixo e separá-lo (basta ver a “Avenida Brasil”). Mas, para além disso, reciclar é lucro. Por exemplo, em Taiwan, uma ilha sem recursos por aí além, há mais de 1700 companhias de reciclagem e o dinheiro que fazem são mais de 3 biliões de dólares americanos por ano - reporto-me a estatísticas que nem sequer são deste ano, portanto fermentem um pouco mais. Só conseguem reciclar cerca de 80% do lixo industrial e 65% do lixo caseiro. Imaginemos como não será quando a malta toda for comprar os saquinhos azuis e se dispuser a reciclar seriamente.

Conheço muita gente que vive um estilo denominado “ambientalista”. Mas o que é isso? Na segunda vez que engravidei, todos quiseram aconselhar-me sobre como seria melhor tratar do bebé de forma mais “natural”, segundo a moda em vigor. Passando por cima do resignado aborrecimento que é ouvir conselhos quando não os pedimos, as opiniões neo-ambientalistas não raro levantam-me as sobrancelhas. Passo a expor algumas das que ouvi recentemente e a minha sobrancelhada reacção entre parêntesis: “não uses fralda descartável, que cada uma delas demora 600 anos para se decompor, é crime” (vou lavar à mão 7 fraldas de pano/dia após trabalhar 8 h/dia, foi para isso que se fez o progresso); “não vacines o bebé, isso é completamente anti-natura” (tal como cirurgias, transplantes, e dezenas de outros avanços da medicina que nos permitem viver melhor); “não lhe dês banho, excepto uma vez por semana, é preciso poupar na água” (boa ideia, sobretudo na época da crosta láctea ou quando eles estão na fase de comer terra e outras javardices próprias da idade); “não lhe dês remédio para a asma, isso cura-se tudo com óleos naturais” (um ataque de asma pode matar pelo que a irresponsabilidade deste conselho é tão preocupante que me abstenho de resposta).

Cada pessoa tem direito às suas convicções (desde que não magoe os outros). Mas torna-se bastante mais complexo querer impingir a alguém algo que, na realidade, nem sequer praticam. O chamado estilo de vida “natural” (por oposição a um artificial) implica coerência. O apregoado ambientalista ferrenho que, paradoxalmente, tem carro, viaja como se não houvesse amanhã, come produtos que sabe lá de onde vêm, tem máquina de lavar e de secar, compra roupa constantemente e ração para os animais e para o aquário, tem Bimby, iPhone e redes sociais, oh meus amigos, assim também eu. Nenhum destes “conselheiros” criou filhos do modo como me aconselharam a criar os meus.

Nota crucial. Quando o meu filho (o que hoje já é crescido, tem onze anos) tinha três anos, foi-me movido um processo de Tribunal nos Açores alegadamente porque a criança não ia ao infantário. Foi considerado inadequado e anti-social eu educar uma criança (de três anos!) em casa. As mesmas pessoas que na altura disseram tal são as que hoje acham muito bem que a Greta Thunberg não ande na escola (aos 16!) “porque o Ambiente merece.” Agora, já não é um problema, agora é bom. Sabem porquê? Tão só porque é politicamente correcto e tem-se provado que é mediaticamente ao gosto da elite – veja-se a TIME. Isto não é hipocrisia, é um nível acima: é mesmo mentira descarada.

No fundo, eu conheço muito poucos ambientalistas. O que eu conheço é gente que lucra à custa de uma falsa defesa do ambiente. São coisas completamente diversas.


Friday, December 6, 2019

Apaixonado? Olhe que não!...


Em 1962, Schachter e Singer “descobriram” o que denominaram Teoria dos Dois Factores da Emoção. Segundo estes investigadores, uma emoção é baseada em dois factores: a resposta fisiológica que sentimos aquando da emoção e a etiqueta cognitiva que lhe damos, sendo esta última baseada nas pistas ambientais que encontramos para a nossa excitação fisiológica. Traduzindo: sentimos algo que faz o nosso corpo responder imediatamente com sintomas e logo o nosso cérebro procura dar uma causa e nome a esse algo, colocando-lhe um rótulo.

O problema é que, às vezes, engana-se. Nas mais variadas experiências feitas por estes investigadores e outros que, posteriormente, retomaram o tema, concluiu-se que não é raro o cérebro não saber porque é que a excitação fisiológica acontece. Nessas ocasiões, o ser humano procura sempre compensar e dar uma razão à causa, invariavelmente. Isto não quer dizer que tenha descoberto o porquê da excitação, apenas quer dizer que diminui a sua ansiedade na procura de uma resposta para as suas sensações corporais.

Daqui nasceu o termo “atribuição errónea da causa de excitação”, que não é mais do que dizer que o bem-intencionado ser humano se enganou a colocar as legendas nas suas emoções.

Um dos exemplos mais clássicos para demonstrar esta possibilidade é a panóplia de transformações físicas que se opera no nosso corpo quando sentimos medo, desde falta de ar até alterações na pressão sanguínea. Lamentavelmente, são muito semelhantes às mudanças operadas nos organismos “atacados” de paixão romântica. Apesar desta irónica semelhança fisiológica, em princípio, um ser humano de pensamento claro e emoção organizada não terá problemas em distinguir o medo do romantismo, certo? A julgar pela experimentação científica, parece que não estamos tão seguros assim…

Um dos estudos a este respeito denominado “O Amor Apaixonado e a atribuição errónea da causa de excitação” (White, Fishbein e Rutsein, 1981) demonstra que qualquer tipo de excitação física prévia não relacionada com parceiros mas com situações absolutamente paralelas (por exemplo, exercício extenuante) faz com que uma atracção sexual/romântica tenha propensão para acontecer imediatamente a seguir. Tentativa de prolongamento da sensação? Os donos de discotecas já descobriram este truque há muitos anos…

Não vou citar aqui todas as experiências que já se fizeram sobre este conceito de atribuição errónea, mas não quero deixar de mencionar aquela que é, provavelmente, a mais famosa: trata-se da experiência da ponte suspensa feita por Dutton e Aron em 1974. Nesta experiência, os sujeitos (homens) tinham de atravessar uma ponte suspensa perigosa, sujeita a ventos e ao balanço. As sensações de medo e ansiedade eram inevitáveis. Eram recebidos por uma mulher atraente com um desenho (não sexual) que lhes pedia para escreverem uma história e lhes entregava o seu número de telefone, pois caso tivessem dúvidas poderiam contactá-la para falar da experiência. Um elevado número de participantes quis ligar, estando convencido de uma atracção considerável por esta mulher. Todas as sensações fisiológicas que os assomavam (rápido bater do coração, joelhos “fracos”, palpitações, dificuldades respiratórias, mãos transpiradas) foram por eles atribuídas a uma atracção sexual fulminante pela mulher e não ao medo que ter acabado de atravessar uma ponte suspensa lhes tinha causado – medo esse que ainda permanecia e destilava dos seus corpos. A mesma experiência colocou sujeitos diferentes frente à mulher atraente mas no início da ponte e, coisa interessante, antes de atravessar nenhum homem se sentiu atacado pela paixão. As pessoas que inventaram os filmes de terror e os parques de diversões com montanhas russas também já conhecem este truque: não é raro que pares de namorados gostem de ir ao cinema ver filmes de terror – a ciência explica.

No entanto, apesar da pimenta que se esconde atrás do jasmim, há outras conclusões menos humorísticas a retirar de tudo isto. Não será que esta confusão dos rótulos que colocamos às nossas emoções, particularmente este confundir do receio com a paixão, explica a manutenção de algumas relações tóxicas? Parece-me que aqui está a chave desses casos: N pensa que está apaixonado porque sente os sintomas que identifica como tal; mas afinal N apenas vive com medo. Parece que, fisiologicamente, a linha que os separa é ténue e confusa, sobretudo para espíritos ansiosos.  

Friday, November 22, 2019

O Ecoponto da Sra Ministra


No dia 5 de Novembro, três sem abrigo encontraram um recém nascido no eco ponto dos plásticos em frente à Discoteca Lux. A história é menos romântica do que se conta. A primeira pessoa a ouvir o choro de um bebé vindo do lixo foi João Paulo, um sem abrigo que tinha acabado de voltar da dose de metadona. Disse à reportagem da SIC (14 de Novembro) que ainda pensou que podia estar a alucinar, mas o choro não lhe saíu da mente, razão pela qual foi chamar outro sem abrigo, Rui Machado. Os dois procuraram no lixo, mas não conseguiam chegar ao bebé, que parecia “um boneco”. Foram à esquadra e falaram com o agente que, vendo “sem abrigos da metadona”, os aconselhou a irem ao psiquiatra. Foram completamente desacreditados e até humilhados! A sorte do bebé é que os homens não desistiram e chamaram Manuel Xavier, o sem abrigo que o Presidente da República abraçou efusivamente. Foi Manuel Xavier que puxou o bebé do ecoponto, ajudado pelos outros. Nesse momento, os trabalhadores da Lux já estavam cá fora: um homem puxou do telemóvel para chamar o INEM e uma trabalhadora da discoteca (eventualmente alguém que também merece pouco crédito por parte de uma franja da sociedade) pegou no bebé ao colo, bebé esse que, entretanto, fora embrulhado numas calças que os sem abrigo resgataram do chão. “O bebé precisava de carinho de Mulher e de Mãe” (dixit de João Paulo, o primeiro a dar colo ao bebé) e foi assim que o menino se encontrou nos braços de alguém que lhe ofereceu um casaco e o levou para dentro da Lux, até chegar o INEM.

Já li dezenas de artigos de opinião sobre este assunto. Tornou-se social e politicamente correcto defender a progenitora, que (por também ser sem abrigo – vivia numa tenda com um namorado que ela afirma não ser o pai da criança) tem sido dada como “económica e psicologicamente incapaz”, “sem acesso aos cuidados básicos de saúde de gravidez e parto”, “sem apoios afectivos”, “quem sabe se violada”, “incapaz de se apegar emocionalmente a um filho”, “vítima da sociedade”. Claro que estas opiniões são de pessoas que nunca passaram fome, não viveram na rua, sempre tiveram dinheiro para pagar medicamentos, nunca foram violadas ou nunca pariram num passeio. Aquelas mães e mulheres de entre nós que já passaram por qualquer situação muitíssimo vulnerável – como esta ou outra – sentem-se altamente ofendidas por ler que “qualquer uma nesta situação” o que faz é matar a criança. Porque não é. Há milhões de mães em situações de fragilidade e trauma que optam por outras escolhas, desde ter o filho, entregá-lo para adopção ou mesmo abandoná-lo seja onde for, na esperança de que seja “apanhado” por melhor sorte. Mas matar a criança é, digamos, outro nível. Sobretudo, matá-la com intuito e premeditação, não fruto de nenhum desespero de desequilíbrio hormonal provocado pelo parto (como alguns nos querem fazer crer – um mito urbano conveniente). Esta progenitora já disse que escondeu a gravidez, que planeara livrar-se do bebé assim que o tivesse, recusou apoio de saúde que lhe foi oferecido (o que já foi confirmado pelas equipas médicas que apoiam os sem abrigo, que a queriam levar ao Hospital), que agradece “todo o apoio das redes sociais”(repare-se no estilo) e “pede que aguardem com serenidade o seu destino”. É um belo discurso. Não é uma senhora perturbada. É uma mulher que agiu de forma fria e planeada e que não demonstra nenhum remorso.

Estou de acordo com a Presidente do IAC, Dulce Rocha, que diz que o menino devia ser entregue a uma família. Não estou de acordo com o bando que quer entregá-lo à progenitora. Aliás, esta nunca manifestou tal desejo! Para quê? Para outra tentativa de homicídio? Algum destes ambientalistas de pacotilha já viu e sabe o destino que é dado aos plásticos do ecoponto?

Recentemente, assistimos a gente com responsabilidades em Portugal a aderir à onda de apoio a esta senhora. Há uma agenda por trás deste caso da qual nem vou falar, porque não tenho espaço. Primeiro, tivemos o candidato a Bastonário à Ordem dos Advogados a entregar um “habeas corpus” para que a “pobre mãe” fosse libertada até ao julgamento. Tem graça, visto que não podem aplicar-lhe termo de identidade e residência (ela não tem residência…) mas o Sr. acha que era uma medida possível. Enfim, agora todos sabem quem ele é – quantos sabiam antes disto? Muito mais sério é o apoio que lhe foi prestado pela Ministra da Justiça, que a foi visitar à prisão e se sentiu (cito) “confortada com a ideia que a Administração Prisional está a funcionar como devia [porque) ela está a receber todo o apoio”.

Pergunto: quantos presos comuns recebem a visita de um Ministro? Quantas vezes a Administração Prisional (ou Serviços Prisionais) é assim fiscalizada “in loco”, ademais por causa de um preso, potencial homicida de um menor (a mesma administração fiscaliza os casos de menores) e tem esta cobertura mediática, como se estivesse a ser inspecionada publicamente? Ficamos a reflectir a Quem serve tudo isto…

A Sra Ministra que agora apoia desta forma pública esta progenitora que tentou assassinar o seu filho é a mesma Sra Ministra que já recusou formalmente e frontalmente apoio a muitas mães que protegiam os seus filhos, respondendo (cito) “O Ministério não tem relação com os Tribunais”, [não deve imiscuir-se] “em casos concretos, personalizados”. Não é uma mãe que o diz. São várias, conhecem-se, estão juntas em número e força. É verdade, há muitas mais protectoras dos filhos do que assassinas, embora – lamentavelmente – não recebam apoio mas antes lhes levantem dificuldades de variada ordem. Volto a perguntar: a Quem serve tudo isto?

Falemos agora sobre nacionalidade e passaporte. A progenitora da criança é estrangeira, presumivelmente em situação irregular em Portugal, porque veio com visto turístico, não revalidou e não tem papéis de residente. Esta última questão é importante, pois até agora ninguém se debruçou sobre como atribuir papelada legal a esta criança… Eu – e outros observadores atentos - gostaríamos de saber como pensa o Governo Português resolver este assunto, isso sim, importante, pois legalmente impossível, segundo a lei actualmente em vigor. Seria mais importante resolver a situação do inocente do que a da potencial homicida. Mas isto, ao que parece, interessa pouco. Afinal, o petiz não vota e nem sequer fala.

Senhora Ministra, Senhores Ministros, demais serviços governamentais, são várias as mães e crianças que estão muito atentas e aguardam (pelo menos!) a mesma dedicação e benevolência, com muito maior rigor de Justiça.

Thursday, November 7, 2019

O professor e a violência


Li numa notícia de jornal que uma jovem numa escola secundária de Campo Maior foi agredida dentro de uma sala de aula por um colega. Em consequência dos pontapés no rosto que sofreu, a jovem partiu o nariz e ficou com ferimentos num dos olhos. O agressor tem 16 anos e, à laia de punição, fica suspenso por 12 dias, o que implicará chumbar o ano. A escola garante que, apesar da jovem agredida ser vítima de bullying desde o início do ano, trata-se de um caso isolado no cômputo da escola em questão.

Acaba aqui a notícia, começam as minhas questões.

Todos sabemos que há escolas problemáticas; alguns de nós também as frequentaram. A única figura que pode impedir ou, em caso extremo, que pode parar uma cena de pancadaria dentro de uma sala de aula sempre foi e será o professor. Bem sei que, chegados aos 16 anos, não faltam casos em que o aluno é fisicamente mais forte do que o professor/a professora - aliás, não defendo o uso da força nas escolas em nenhuma situação. É importante que desde o primeiro dia se crie um sentimento de autoridade. O professor (vou usar este género por uma questão de economia linguística) não está ao mesmo nível dos alunos, não é um amigão, embora seja amigo - o que é diferente. Sobretudo nas idades formativas, é importante sentir a autoridade dos professores: sabem mais, têm maior experiência de vida, orientam, guiam. Os miúdos esperam, intimamente, essa postura, e notam de imediato se o professor se interessa por eles e se dedica “a ser mestre” ou não. Muitos miúdos não têm outra figura de proa. Se o professor se demite da sua autoridade, ficam sem referências.

Por autoridade, não me refiro a um domínio baseado no jugo e no medo. Isso, infelizmente, já muitos conhecem e é isso que eles próprios exercem sobre outros nessa forma que agora se conhece por bullying e que não é mais que o espelho do que outro alguém sobre eles mantem. Reconheço que existe alguma dificuldade em manter firmeza e ascendência sobre miúdos difíceis, sem usar de impetuosidade, mas já o vi brilhantemente executado durante anos, sem sequer ser rude.

Em resumo: não concebo esta filosofia que hoje vejo pulular que demite o professor da sua responsabilidade, porque parece recear os alunos. Sempre existiram miúdos conflituosos, não é novidade e nem a adolescência de hoje é mais violenta do que foi a minha. Mas é mais mediática. O professor pode e deve fazer algo desde o primeiro dia de aulas, com a sua atitude, exemplo e intervenção. Se sente que não está à vontade (ou até que não quer ou não consegue ser professor…), todos ali têm um problema.

Outra questão decorrente desta é ser-se furiosamente pontapeado no rosto dentro da sala de aula e isto ser um incidente isolado. Não posso pronunciar-me sobre a escola em questão. No entanto, é curiosa a quantidade de “incidentes isolados” deste calibre que acontecem no país – basta fazerem uma busca na internet e verificam que só neste ano escolar já foram vários. Também não é credível que a primeira agressão de alguém a outro seja um pontapé no rosto, agressão que por si só já exibe um carácter de ataque muito violento e que pressupõe violências físicas menores anteriormente executadas.

Isto, infelizmente, recorda-me um caso que conheço bem em que certa personagem confessou perante a Lei pontapear X, mas era esta a única ofensa que lhe fazia (socos não, empurrões não, apenas a pontapeava com violência quando ela já estava no chão… é verosímil? falta explicar como chegou o rosto de X ao chão!)

A terminar, questiono o porquê de um jovem de 16 anos que parte o nariz a alguém não ser imputável perante a Lei. Aos 16 anos, pode-se casar, pode-se guiar uma mota, pode ir-se preso por cometer homicídio ou um crime que a Lei entenda ser de gravidade, mas não se responde sequer à Justiça por partir o nariz a alguém perante uma sala cheia de testemunhas. Não. Fica-se sem escola durante 12 dias (quiçá uma bênção!) e depois retorna-se à vida normal.

Crianças tão jovens como 3 e 4 anos são ouvidas em Tribunal em Portugal, caso tenham sido vítimas de crimes ou presenciado os mesmos. Os interrogatórios são ridículos, feitos como se estivessem a ouvir criminosos adultos, com direito a intimidação e contra-interrogatório. Mas um tipo de 16 anos, que – para todos os efeitos – cometeu uma violência gratuita, tem 12 dias de férias. Portugal seria cómico se não fosse trágico. É um país bom… para férias.


Friday, October 25, 2019

Os Jovens e os Ecrãs


Ainda sou do tempo em que se dizia “Não te sentes perto da televisão. Faz mal à vista!” Quinze anos depois, todos tínhamos telemóveis e a questão tornou-se obsoleta. Sou, portanto, da geração onde se deu um salto entre dois modos extremamente distintos de vida e que não se enquadra numa denominativa geracional. Ainda por cima, nós que vivenciámos a vida açoriana durante a infância e (parte da) adolescência, sentimos com mais particularidade o tradicional e, dos que fomos imigrantes, ainda com maior acuidade o inovador. Logo, o tempo que mediou entre “cuidado, a televisão faz mal à vista!” e os fones sem fios, lentes biónicas, bio-printing 3D e outros, foi muito pouco. Somos, possivelmente a única geração que foi avisada contra a tecnologia, mas teve de trabalhar com ela logo que iniciou os estudos a sério.

Isto para dizer que não faço parte dos pais que perde a cabeça com os miúdos “que “passam tempo com tecnologia”. Com peso e medida – fórmula que não diz respeito apenas à tecnologia, mas a tudo na vida, para miúdos e para graúdos. O equilíbrio é importante, mas é risível se diz respeito apenas ao uso da internet e afins. Porque não também em relação ao exercício, comida, descanso, etc?

A conversa “os miúdos de hoje andam agarrados ao tablet e isso só faz mal” soa-me demasiado semelhante à conversa do meu tempo de criança “os miúdos de hoje veem televisão e isso só faz mal.” Ou seja, traduzindo “os miúdos deste tempo fazem algo que no meu tempo de miúdo não havia e, consequentemente, isso não é bom!” Toda a geração olha com alguma desconfiança para a novidade e (porque não dizê-lo?) para a oportunidade que surge e que, no seu tempo, não existia. É a natureza humana. Suspeito que quando o acesso aos livros e imprensa escrita se massificou, a geração anterior também terá avisado “Não andes agarrado aos livros! Isso faz mal! Estraga a vista! Não põe comida na mesa!” e outras preciosidades no género. Aliás, como a taxa de iliteracia em Portugal no tempo de Salazar rondava os 75%, o tempo destes avisos contra a literatura no nosso país é capaz de não estar tão longe assim! Tal facto acentua mais ainda a dramática (porque extremamente rápida) convulsão alfabético-tecnológica das gerações portuguesas nos últimos anos.

Ao contrário do que pede certa canção popular portuguesa, o tempo não vai voltar para trás. O tempo é sempre em frente! Temos a escolha de nos adaptarmos às novas realidades ou não. Certo é que a tecnologia veio para ficar, e será cada vez mais preponderante. Podemos nunca precisar de próteses, pacemakers ou outros; podemos ignorar que existem o SunWay TaihuLight e o Summit; mas já ninguém se imagina a viver sem computador e sem telemóvel!

Aliás, sempre que um adulto se queixa porque o filho passa muito tempo com tecnologias, logo gosto de perguntar quanto por dia gasta o progenitor nas suas andanças tecnológicas? Decerto, o “vício” não é só dos juvenis. Existe uma aprendizagem social e familiar que não é de menosprezar: porque deve o Pedrinho deixar de jogar quando come se os pais comem de telemóvel na mão? Recordo que a idade média de um “gamer” é 33 anos, não 15 nem 8…

Os jovens vivem a tecnologia. Os próprios pais lhes perguntam “como se faz”. Nas universidades mundo fora, os docentes já só leccionam com tecnologia e o investigador tem de usar mil ferramentas onde antes usava papel e lápis (hoje, obsoletos, inclusive para músicos).

Difícil é também convencer um jovem que não terá dinheiro se continuar a interessar-se por Fortnite ou outro jogo virtual quando ele sabe que Kyle Giersdorf, de 16 anos, ganhou 3 milhões num campeonato do mundo deste joguinho recentemente; ou dizer-lhe que não veja YouTube quando ele sabe que há milionários que vivem de vídeos.

Apesar da sua má reputação, a verdade é que os jogos virtuais e, sobretudo, o uso da tecnologia, incrementam várias habilidades cognitivas, como o leque de atenção, multi tasking, foco, percepção. Por outro lado, não está provado que conduzam a défices de concentração ou que incrementem violência. Estas são conclusões de neurocientistas da Universidade de Géneve e da Universidade da Califórnia, Daphne Bavelier e Benoit Bediou.

Portanto, porque não jogar? Com equilíbrio. A mesma dose de bom senso que se tem para tudo é aplicável aqui. Em si mesmos, os jogos e a tecnologia não são um inimigo nem um drama; pelo contrário.

Thursday, October 17, 2019

Casal Para Sempre





Este ano, concretamente desde Abril, a Dinamarca leva a cabo um programa para reduzir o número de divórcios. Antes, um casal que se quisesse divorciar, preenchia um formulário e o processo seguia os seus trâmites. Agora, a justiça (ou o governo… o que dá no mesmo!) instaurou um compasso de espera de três meses até aceitar o pedido. Nesses 3 meses, o casal aspirante a divorciado é obrigado a frequentar sessões de terapia de casal com o objectivo de… não se divorciar! Isso mesmo. O Estado pretende (cito): “reduzir os danos humanos e financeiros do divórcio” segundo Gert Martin Hald, professor de saúde pública de Universidade de Copenhaga, um dos cérebros que concebeu estas sessões de terapia obrigatórias.

A Dinamarca considera que tem uma taxa de divórcios muito alta. As estatísticas do Eurostat dizem que 55% dos casamentos na Dinamarca acabam em divórcio. Uma ninharia, se compararmos com os 70% de Portugal. Jovens, pensem bem se querem gastar dinheiro nessa efemeridade (e não efeméride!), tendo em conta o dinheiro que vão gastar para depois se livrarem disso. Aliás, depois de ver estas estatísticas compreendi porque é que existe uma rede tão grande a complicar divórcios, fazendo a coisa arrastar em tribunais e relatórios, assistentes, psicólogos; é, simplesmente, porque a quantidade de gente que ganha dinheiro à custa disto não é brincadeira e esse pessoal também precisa de sobreviver. Sem complicação processual, não haveria rodagem de capital.

Voltando à Dinamarca, as tais sessões de terapia são obrigatórias. Querendo ou não querendo, os aspirantes a divorciados lá vão tentar reconciliar-se em 17 sessões de meia hora. Portanto, em 8 horas e meia de conversa forçada de parte a parte, se resolve um casamento. Assentai esta fórmula, casais, em caso de necessidade futura!

Trata-se de um atentado do Estado à liberdade individual dos cidadãos. As leis são feitas para promover a segurança pública e proteger a autonomia dos indivíduos. Neste contexto, não está em causa a primeira premissa e é mesmo posta em causa a segunda. A lei pode, por vezes, restringir liberdades individuais a bem da segurança do conjunto: isso é verdadeiro e natural. Mas a que propósito isso se pode aplicar neste caso? Jamais. Como tal, discordo inteiramente desta parvoíce ditatorial e paternalista que obriga homens e mulheres a escrutinarem as suas relações perante terceiros quando não tinham escolhido esse caminho e a justificarem perante estes uma decisão que, certamente, não tomaram de ânimo leve. A quem aproveita esse remexer na ferida?

A Dinamarca já realizara uma experiência piloto com voluntários no ano passado e, portanto, afirma que a experiência funciona, dado que a taxa de divórcios caiu 17%. Não nos enganemos: a palavra-chave aqui é “voluntários”. Nunca alguém obrigado a realizar sessões de terapia obteve delas resultado algum, sobretudo duas pessoas que já não se querem ver nem estar juntas ou, pior cenário!, um se quer separar e outro não, aproveitando este último essas obrigações estaduais/judiciais para andar a rondar o outro e não o deixar em paz. Qualquer profissional habituado a lidar com violência doméstica sabe como um predador se aproveita destas benesses judiciais para não largar uma (potencial) vítima, com a desculpa “O Tribunal diz que temos de nos encontrar”.

Neste mundo civilizado, criaram-se tantas leis contra o “stalking” (vulgo “perseguição”, esta apenas entrou em vigor em Portugal muito recentemente e já veio tarde); contra a violência doméstica; contra a auto-determinação sexual (esta vergonhosamente mascarada, porque, se repararem, a violação é quase sempre tratada como “abuso” em Portugal, sendo que no caso de menores a lei só fala em abuso e não em violação); enfim, a lista continua… Mas depois, por oposição, criam-se parvoíces deste teor, contrariando liberdades adquiridas como a liberdade do divórcio numa sociedade civilizada.

Nos tempos que correm, os Estados laicos imbuíram-se de frementes religiosidades, considerando que o casal é um casal para sempre: se não aos olhos de Deus, aos olhos da Nação! Só falta ouvirmos o coro de velhas Ditaduras com certos slogans que pensávamos já esquecidos, e com a mulher e filhos a terem de pedir ao marido ou pai autorização para ter um passaporte (a velha ideia do passaporte familiar, que ainda consta de certos documentos da República Portuguesa). Aliás, este assunto bafiento e mórbido de pedidos de autorização para sair de onde se está vai contra a própria lei de circulação dos indivíduos, pedra de toque de Portugal na Europa – mas isso fica para outro texto que escreverei em breve.

 A ideia do casal para sempre começou a acentuar-se nos últimos tempos. Nos anos 80 e 90, as pessoas divorciavam-se e tinham direito a refazer a sua conjugalidade e a viver longe de quem se separavam – as palavras chave são “separação” e “liberdade individual”; não estou longe da Constituição. Hoje, isso é socialmente mal visto. Hoje, “serão sempre um casal” e denominam-se “casal parental”. Quiseste ter filhos? Então, serás sempre mulher parental do indivíduo X (inclusivamente se nunca foste sua mulher, isto é se nunca foram casados). Esta ideia é um conceito que atenta às liberdades individuais de ambos os sexos, mas sobretudo às femininas - pois nas nossas sociedades, o homem pode ter um harém, o que até lhe dá um certo ar de garanhão, mas se a mulher faz parte de um “casal”, teórico ou real, não poderá fazer parte de outro sob pena de ser adjectivada com os epítetos que todos conhecemos…

A quem diz que as crianças sofrem por não ter pai e mãe presente, a resposta é simples: as crianças sofrem por não ter quem as ame e por não viverem num ambiente de segurança. Sempre foi assim e sempre será. Quanto ao mais, se quem as cria ou educa é o pai e a mãe, só a mãe, só o pai, nenhum destes, dois pais, duas mães, uma tia, um avô é mais ou menos irrelevante, desde que seja a sua pessoa. A pessoa que elas (crianças) referem como porto seguro. Alguns miúdos têm mais que uma pessoa; outros apenas uma; desafortunados são os que não têm ninguém (infelizmente, são muitos). Não ter ninguém não significa que não vivam / convivam com essas pessoas. Alguns de nós podem testemunhar na primeira pessoa o que é viver com pais presentes cujo abuso fez mal em vez da presença fazer bem. Muitos de nós fomos na infância de 80 e 90 filhos de pais divorciados e sabemos que a separação em si não vaticina desgraça para as crianças; por vezes, até as liberta de casos tristes. No entanto, vive-se hoje um clima de “o divórcio é mau para os meninos” – insisto, não sei se é uma tentativa de recuperar ideais do Estado Novo sub-repticiamente.

Em 2014, quando Obama era Presidente dos E.U.A., os Republicanos aconselharam veementemente uma nova política económica que visava aconselhar as mães sozinhas (solteiras, divorciadas) a casarem-se porque, essencialmente, os seus filhos nunca poderiam almejar a ser nada se elas continuassem a criá-los em solidão, na pobreza e na “vergonha”. Esqueceram-se foi de um pormenor: o próprio Obama era filho de uma mãe sozinha, não sendo propriamente símbolo de insucesso, nem social nem académico nem económico nem afectivo…

Voltando à Europa actual: se esta ideia da Dinamarca assusta, não é preciso voar até ao Norte frio. Portugal também importa ideias peregrinas, caso existam filhos num casal separado. Chamam-se “constelações familiares”. Há muitos sites: exemplos também aqui e aqui, .Só não coloco exemplos de juízes e advogados a ordenar ou aconselhar estas terapias para não levar com processos, pois algo que tenho reparado em Portugal é que o conceito “crónica de opinião” e mesmo o conceito “tese” é entendido como se estivéssemos a desafiar alguém para um duelo do século XVIII…Não se trata disso nem fomento tal.

Recapitulando: a ideia, diz o sistema que a impõe, nasceu da terapia Zulu - cultura tribal extremamente popular em Portugal, e da qual se percebe imenso na Europa. Toda a família (pais desavindos, avós, filhos, e o mais que haja) são obrigados pelo sistema a participar em sessões de reconciliação familiar, mesmo que um deles tenha partido a coluna vertebral do outro, o que implica pouca vontade de se verem e certo perigo de se andarem a promover contactos. Nestas sessões diz-se frequentemente a frase: “a família é a nossa sina”, em resignada demonstração do fado-destino, e certo pendor astral. Basta pesquisarem um pouco para perceberem que não há aqui nada de científico. As palavras usadas são “guru”, “estrelas”, “jogo da família”, “vidas passadas”, “karma”... Para uma mente científica, mandarem-nos entrar nisto é como colocar um penso rápido para estancar uma gangrena. Gostava de ressalvar que isto é uma prática mandatada por alguns Tribunais em Portugal para resolução de acordos e transformação de um casal que se separa no tal casal para sempre.

Seria interessante os senhores que promovem esta coisa irem viajar até ao Sul da África para conhecerem um pouco desse grupo étnico que dizem ser os precursores desta “técnica”, os Zulu. Percebiam, então, este pormenor interessante: os Zulu não fazem nem nunca tiveram uma “terapia”. Isso não são manhas Bantu. São invenções de um tipo para ganhar dinheiro.

Pensar, analisar, interpretar é importante. Quanto ao mais, apetece usar uma frase, já gasta, mas muito relevante: foi mesmo para isto que se fez o 25 de Abril?


Friday, October 11, 2019

O Efeito Lúcifer


Nos anos 70, o psicólogo americano e professor da Stanford University Philip Zimbardo realizou uma controversa experiência que ficou conhecida como a Experiência da Prisão de Stanford e que Zimbardo retrata num livro, publicado apenas em 2007, denominado “O Efeito Lúcifer: como se tornam más as boas pessoas”.

O livro foi um sucesso, ganhando o prémio 2008 da American Psychological Association. Já a Experiência de Stanford serve-nos enquanto “case study”.

Zimbardo recrutou 24 homens caucasianos de classe média, sem passado criminal, aparentemente mentalmente estáveis e fisicamente saudáveis, para o que deveria ser uma experiência de duas semanas numa prisão fictícia. O psicólogo pretendia avaliar quais os efeitos que se (de)notam em alguém que se torna um prisioneiro ou um guarda prisional. Moviam-no, igualmente, questões de estudo de poder, domínio, submissão, identidade grupal, desumanização, vandalismo, identidade ou perda da mesma. Para tal, dividiu os voluntários em prisioneiros e guardas prisionais, tendo ele mesmo assumido o papel de superintendente da prisão.

Não é anormal que os participantes num estudo psicológico sejam voluntários que recebem apenas uma pequena compensação por participarem. Ainda hoje é assim em todas as grandes universidades pelo mundo fora. No entanto, hoje em dia, as questões éticas são salvaguardadas e jamais uma experiência deste género seria levada a cabo em contexto científico. A julgar pelas experiências que lemos dos anos 70, o apreço pelas condições mentais dos sujeitos durante e após uma participação num estudo era nulo.

Feita a divisão, Zimbardo instruiu os sujeitos para assumirem o seu papel na totalidade: os prisioneiros (que viviam 24/7 como tal) eram tratados como criminosos em reclusão pelos guardas que tinham autoridade sobre eles. Zimbardo foi claro, dizendo aos guardas que fizessem sentir aos prisioneiros que eles tinham perdido todo o poder sobre as suas vidas, bem como a sua individualidade; deveriam sentir constante tédio e constante medo.

Logo ao fim do primeiro dia, notou-se que os homens encarnaram completamente uma nova persona, embora alguns em muito maior grau que outros. Esta persona bem como o grau de intensidade com que cada qual a investiu manteve-se até ao fim do estudo. Assim, um dos homens era considerado o guarda mais temido porque era, de longe, o mais abusivo e mais violento de todos (já no fim do primeiro dia), ao passo que outro guarda – que não contara ser escolhido para esse papel – era empático com os prisioneiros e tinha muita dificuldade em ser duro com eles. Os efeitos também se fizeram sentir com a mesma rapidez nos prisioneiros. Algumas horas de reclusão e abuso eram passadas quando um deles já se revoltava (e continuaria sempre a revoltar-se), outros apresentavam submissão e outro revelou sinais de loucura violenta, a tal ponto que teve de ser retirado da experiência para sua própria salvaguarda, tais eram as manifestações de raiva descontrolada.

Longe de diminuírem com a passagem dos dias, as reacções de cada qual foram-se intensificando com o passar do tempo. A generalidade dos guardas tornou-se cada vez mais violento, exibindo tendências de um sadismo considerável.

O estudo teve fim prematuro quando a namorada de Zimbardo visitou a prisão. Ficou extremamente chocada com o que presenciou e pediu-lhe que terminasse, ao que ele acedeu. No entanto, Zimbardo sublinha que 50 pessoas tinham visitado a “prisão” antes dela e ninguém o questionara sobre a ética do que por lá se passava.

O “efeito Lúcifer” fala-nos de transformações morais, usando a metáfora do anjo caído tornado demónio que todos conhecem da história bíblica. Teoriza que uma tal transformação ocorre nos indivíduos tendo em conta três variáveis que devem estar presentes: um sistema de poder, uma situação e uma pré-disposição individual. Questiona também a possibilidade das atitudes mudarem consoante a pessoa saber que está a ser (ou não) observada, de produzir dissonância cognitiva e dos que se sentem poderosos responderem apenas ao poder de uma autoridade maior mas serem insensíveis aos que julgam seus inferiores, objectificando-os por completo.

Apesar de estarmos no rescaldo eleitoral, esta crónica nada tem a ver com políticos ou com política. Ou então tem. Cada um entenderá a seu gosto e consoante a sua experiência.

Thursday, September 26, 2019

O Véu Pintado


“Não levantes esse véu pintado/ Que esses que o vivem chamam/ Vida, ainda que represente formas irreais/ Imagem enganosa de tudo aquilo em que acreditamos/ em cores dispersas. Por trás/ espreitam o Medo e a Esperança, destinos gémeos/ que entrelaçam as suas sombras no abismo escuro e secreto./ Conheci um homem de coração sensível/ Que levantou esse véu procurando algo para amar/ mas nada encontrou, nem as coisas desse mundo/ poderiam agradar-lhe./ Movendo-se por entre os desatentos; esplendor nas sombras/ponto brilhante no cenário sombrio,/ ele foi uma alma que lutou pela verdade/ e, tal como o Pregador,/ nunca a encontrou.” (P.B. Shelley; com perdão da minha tradução, muito aquém do original)

Acreditamos no que desejamos acreditar. Vemos apenas o que queremos ver. As nossas crenças têm pouca relação com o real e não precisam de nada para se apoiar, excepto a nossa ilusão. Há que reconhecer que, infelizmente, temos certa quota parte de culpa na construção das nossas ilusões, pois a confusão dos sentidos, a distorção das percepções não é apenas causada pelo exterior (por mais manhoso e manipulador que este seja) mas também pela nossa própria vontade de que o objecto do nosso desejo seja como imaginamos. O iludido é, indubitavelmente, um enganado – a própria raiz da palavra o afirma (iludo, verbo latino que significa burlar). Porém, trata-se de um enganado que contribuíu para o seu engano, ainda que inconscientemente, e talvez apenas pela muita vontade que tinha de acreditar numa realidade diversa.

Tomemos como exemplo pragmático uma ilusão de óptica. Se eu acredito que vejo o que ali não está mas afirmo a sua existência, minto ou não? Que interessa aos restantes se foram os meus olhos traídos por um processo que, afinal, só em mim mesma se operou? Isto a ninguém importa, é claro, a não ser que eu, dentro dessa ilusão, portanto iludida (burlada!) provoque irreversíveis estragos na vida dos demais. Existe sempre a atenuante de que a verdade, coberta por toda a sorte de véus por algum mágico ilusionista que a si próprio se diverte, me fosse ocultada. No entanto, até que ponto existem atenuantes para trilhos que já não podem ser apagados?

Neste tempo de notícias, contra-informação, notícias falsas, volta-atrás e vai à frente, sem consequência e sem compromisso, é importante não esquecer o seguinte: para acreditar é necessário, primeiro e sobretudo, intencionalidade. Obviamente, a intenção do ilusionista de nos enganar; mas também a nossa intenção (ingénua? simplista? por vezes, pouco inteligente?) de sermos enganados. Racionalmente, pensar dá trabalho. Analisar algo de um ponto de vista diferente do seu é impensável para os dogmáticos. Se entramos no campo emocional, mais difícil ainda é ver destruída uma ilusão: pois como não acreditar que a pessoa que endeusámos não é, afinal, um deus? Ou, pior, que é apenas menos que um verme?

Que dizer, então, desse mágico caído em desgraça, dir-se-ia ídolo com pés de barro se pés tivesse, mas os ídolos são seres volantes e efémeros, na verdade ninguém sabendo muito bem com que linhas se cosem mas todos aparentando ser seus íntimos, por via da tal ilusão. Como mágico que é, continuará a iludir… e a magicar, cuidado! Já não surpreende, mas o truque continua.

Por mim, optarei sempre por levantar o véu pintado, ainda que ele constitua o falso conjunto de formas a que outros chamam vida. Não por arrogância, entenda-se. Mas porque não consigo viver com imagens enganosas e formas irreais. Aliás, reformulo: não consegui. Hoje em dia, o verbo é outro: já nem sobreviver consigo sem que haja verdade; se não para os outros, que ela exista no meu interior e nos de quem amo.

Friday, September 13, 2019

Antolhos


Aconteceu-me algo caricato que, para alguns, pode constituir um elogio, mas que, para mim, sempre foi fonte de muitas dores de cabeça. O contexto pouco interessa, interessa o facto: pediram-me prova de maioridade.

Quase incrédula, respondi que não tinha comigo os meus documentos, mas tinha o meu telemóvel onde, por sorte, está uma foto do cartão da “Middle School” do meu filho onde consta a idade dele e, portanto, fácil é deduzir que eu, sua mãe, serei maior de idade, porquanto não teria tido um filho aos 7 ou 6 anos de vida. Impávida, sem pestanejar, a requisitante respondeu-me “Não seria a primeira…” Fiquei gelada, mas admiti esta crua realidade. Usei, então, a internet para ver o email no telemóvel pois recordei-me que tinha, numa mensagem eletrónica, a minha certidão de casamento em anexo. A senhora não se deu por convencida, dizendo-me que isso não era prova. Embora eu argumentasse (de facto, os menores de idade podem casar, mas o menor fica emancipado pelo casamento, logo eu seria maior porque já casada, independentemente da idade), a senhora cortou a conversa dizendo que a certidão de casamento não tem fotografia, pelo que não podia comprovar a minha identidade. Discutível, já que também a certidão de nascimento (obviamente) não tem fotografia; porém, é usada como o documento identitário para podermos casar.

Perguntei como agir, e a resposta foi “impossível, nada a fazer”. Seguiu-se uma acesa argumentação em que procurei convencer a senhora da flagrante estupidez que era atribuir-me menoridade, para mais perante os factos à sua frente. A sua resposta foi sempre a mesma: “Eu não fiz a Lei, só sigo a Lei. Sigo o que está escrito. Eu cumpro. Temos de respeitar as convenções.” Mais adiante, já consternada e avermelhada, dizia “Onde iria parar o país e o mundo se não fizéssemos todos o que a Lei manda fazer?”

Neste momento, tive muita pena daquele ser humano, que voluntariamente abdicava da sua condição de ser pensante diariamente – pelos vistos, como hábito, fazendo disso sua segunda pele e natureza. É, decerto, extremamente confortável seguir à risca um caderno pautado, onde a mão pesada de outrem ditou qualquer coisa. Existe, em qualquer regime, a possibilidade de pensarmos e agirmos com a racionalidade e contextualização que cada caso individual exige. Mas concordo que é mecânico e mais fácil desresponsabilizarmo-nos e dizer “faço o que me mandam, está aqui no parágrafo tal e picos. A culpa é do gajo que fez isto, não é minha. Eu sou um bom funcionário; cumpro. Sou, até, um funcionário exemplar porque cumpro sem olhar para mais nada.”

Não me debruço sobre a circunstância filosófica que está por detrás disto já que qualquer um pode ir ler sobre “a banalidade do mal”, conceito de Hannah Arendt que popularizou exatamente esta mentalidade. Existem indivíduos perfeitamente vulgares, sem carácter distorcido, que dentro da mais perfeita bu(r)rocracia, cumprem a Lei à risca, com o único objetivo de ascender na carreira, e que, ao cumprir ordens sem questionar, fazem o Mal sem por uma só vez refletir nele.

O exemplo de Arendt era Adolf Eichmann, funcionário nazi. Temos hoje muitos mais exemplos, e a História há de falar neles a seu tempo. Obviamente, não estou a falar da senhora para quem a minha idade era tão importante, cujo caso é absolutamente irrelevante e mesquinho, mas da sua mentalidade, rasteira e inflexível.

Nenhum ser com este modus operandi mental é um ser livre. Ele próprio se encapsulou em Ditadura, seja qual for o regime de governo em que viva. É um humano-rebuçado para os dentinhos de um superior em ascensão... e queda.

Thursday, September 5, 2019

“Mulheres de Conforto”: o crime da escravidão sexual nipónica na Segunda Guerra Mundial


(Atenção: este é um artigo explícito e gráfico)




Imagem: Menina de conforto chinesa numa estação no fim da guerra em 1945,
 sendo interrogada por um soldado aliado (UK Imperial War Museum)

慰安婦 Os caracteres significam algo como “conforto-paz-mulher”. As ianfu ou jugun ianfu eram, pois, na acepção das tropas militares do Japão Imperial, as mulheres que lhes traziam tranquilidade e alívio. O eufemismo é rejeitado até hoje por estas mulheres, as poucas ainda vivas. Mulheres a quem não foi permitido viver como pessoas, tão pouco como mulheres: “nasci mulher, mas nunca vivi como uma mulher” (Kim Bok-dong, levada aos 14 anos para ser “mulher de conforto”).

Este é um dos temas mais sensíveis na Ásia quando se fala da Segunda Guerra Mundial, não só pela violência e crueza das histórias, mas porque se converteu num episódio longo tempo silenciado. Talvez porque as mulheres-vítimas tenham sentido o perigo de re-vitimização nas suas sociedades com a revelação do crime, já que, nas culturas confucianas, a violação e a perda da castidade são dois estigmas que marcam uma mulher como maculada, e que são causa para a sua ostracização. Quem diria que tínhamos, afinal, coisas em comum? (esta ironia seria pano para outra crónica…)

As “mulheres de conforto” eram escravas sexuais mantidas em estações de serviço sexual (ianjo) denominadas também “de conforto” num tempo historicamente convencionado entre 1932 e 1945, embora se saiba que a escravidão sexual exercida pelas milícias começou antes disso. Tais estações foram estabelecidas pelo governo japonês de então nos territórios ocupados pelas suas tropas em regiões tão vastas quanto China, Coreia, Filipinas, Taiwan, Singapura, Tailândia e outras. As meninas (algumas eram pouco mais que crianças) e mulheres capturadas ou seduzidas com promessas vinham de vários países, entre estes, e para além dos já mencionados, Indonésia, Timor Leste, Índias Orientais Holandesas (hoje inexistentes e parte da Indonésia actual), Burma (hoje Myanmar), Papua Nova Guiné, etc. Várias mulheres ocidentais residentes nestes países foram também escravas sexuais, nomeadamente mulheres dos E.U.A. e da Holanda que, na época, era um país colonizador de territórios locais.


Foto: Meninas e mulheres chinesas e malaias numa “estação de conforto” (Wikimedia)

A história das “mulheres de conforto” está intimamente ligada à história da guerra. O enquadramento começou a desenhar-se em 1895 quando Taiwan se tornou uma colónia japonesa. Depois, em 1910, foi a vez da Coreia se tornar uma colónia do Japão. Ambos os países permaneceram como colónias durante a Segunda Guerra Mundial. Foi desde a Coreia que o Japão fez guerra contra a China, numa tentativa de construir um Império que cobrisse Ásia-Pacífico. Nessa guerra Sino-Japonesa, deu-se um episódio que durou sensivelmente seis semanas e que teve início a 13 de Dezembro de 1937 quando os Japoneses capturaram Nanjing (na época, chamava-se Nanking e era a capital chinesa). Deu-se, então, um massacre de proporções épicas, que resultou não só na morte de centenas de milhares mas também em violações sistemáticas de crianças (meninos e meninas) e mulheres, abertas ao meio, penetradas (anal ou vaginalmente) com baionetas, com bambus, garrafas, mutiladas por violação e mortas em consequências de actos sexuais. As grávidas eram abertas na barriga. As mulheres idosas escaparam à violação de homens, mas não a serem violadas com objectos. Encontram facilmente na net fotos deste massacre, apesar da destruição maciça de documentos e provas em 1945. O caso, tristemente conhecido como “Rape of Nanking”, contabiliza a violação de cerca de 20.000 a 80.000 mulheres. Outras situações se sucederam no massacre, incluindo canibalismo e concursos de tortura dos militares sobre civis.


Foto: Mulher profanada em Nanking, segundo os arquivos do Nanjing Massacre Memorial Hall

As notícias das violações de Nanking perturbaram o Imperador japonês Hirohito, que imediatamente receou o impacto negativo que a imagem internacional do Japão iria sofrer com a notícia destas pormenorizadas atrocidades elevadas a grande escala. Consta na História que o Imperador convocou os seus Ministros e Chefes Militares para saber o que poderia ser feito para restaurar o perfil japonês. Desse conselho saíram duas resoluções: uma reforma do Código Militar e a ideia da criação das “estações de conforto sexual”.

Os objectivos destas “estações de conforto” eram vários: confinar os abusos sexuais a locais militarmente controlados (e fora dos olhos da imprensa); prevenir um sentimento anti-nipónico nos locais ocupados pelas tropas, locais esses que assim não veriam (atenção ao verbo!) as suas populações a serem brutalizadas por violação; reduzir as doenças venéreas dos soldados e as despesas médicas a ter com o exército, controlando tudo isto através das meninas (preferencialmente jovens e idealmente virgens quando capturadas) com quem o exército teria relações; reduzir o número de informação sobre os japoneses veiculado às populações. Esta última carece de explicação. De facto, havia já há largos anos uma política de prostituição legalizada, com bordeis instituídos. No entanto, os militares japoneses suspeitavam de espias nesses locais à medida que a guerra foi avançando. As “estações de conforto” eram uma ideia nova, com meninas traficadas de uns países para outros, que viviam isoladas, sem contacto com qualquer população local e sem saber a língua do local onde estavam. Assim, tais mulheres jamais constituiriam um perigo para o exército.

As meninas e mulheres era recrutadas segundo vários métodos. O primeiro era o rapto, puro e simples. O segundo era a compra, sobretudo nas colónias japonesas, Taiwan e Coreia. Nesse tempo, as colónias eram locais bastante pobres e as famílias, devastadas pela pobreza, vendiam os filhos aos militares (por mais absurdo e horrendo que nos pareça). Outro método consistia em aliciar jovens mulheres com promessas de trabalho falsas, tais como empregos de enfermagem ou de animação teatral junto das tropas. Na realidade, estas raparigas seriam todas coagidas ao mesmo papel: o da prostituição, agravado pela escravatura, e ainda por constantes espancamentos, sevícias e, nalguns casos, a morte.

Não é seguro dizer quantas “estações de conforto” e quantas “mulheres de conforto” existiram. Como sempre neste tipo de crimes, o criminoso destrói as provas e a vítima silencia-se. Ainda assim, dada a dimensão holocaustica da situação, é possível avançar com alguns números: entre 20.000 a 410.000 mulheres em 125 estações. Para uma comparação dos estudos feitos até hoje entre os vários académicos que se dedicaram a esta causa, verificar aqui. Note-se que uma só mulher podia “servir” 100 homens num dia, o que contabiliza uma impressionante matemática de horror.

Em 1993, o Tribunal das Nações Unidas Violações dos Direitos das Mulheres estimou que menos de 10 por cento das “mulheres de conforto” tinham sobrevivido à Segunda Guerra Mundial. Para além da elevada taxa de mortandade nas estações, aconteceram suicídios imediatamente após a guerra, devido à ostracização a que foram votadas ou ainda a complicações de saúde causadas pela vida nas estações. Além disso, bizarramente, algumas das meninas cometeram suicídio aquando da chegada dos Aliados por terem sido convencidas que os caucasianos eram canibais e as comeriam vivas. Também há relatos de que alguns dos Aliados americanos não terminaram com as “estações de conforto” que encontraram e continuaram a usá-las, pelo que algumas das meninas apenas mudaram de abusadores durante alguns anos. Quão tentador é para um violento continuar a abusar de um vulnerável, já acostumado à escravidão!

  

Foto: Mulheres coreanas numa estação de conforto em 1944 (Exibição do Seoul Center for Architecture and Urbanism)

No pós-guerra, a partir dos anos 50, o Japão emitiu declarações de desculpa e encetou negociações, sobretudo com a Coreia, para compensações monetárias aos sobreviventes da guerra. De forma paradoxal, muitos oficiais negaram continuamente a existência das estações e das escravas sexuais. Foi apenas nos anos 90 que explodiu a memória das sobreviventes, certamente auxiliadas pelo facto da democratização da Coreia do Sul em 1987 e por um artigo de jornal de Yun Chon-Ok em Janeiro de1990. Este artigo denunciador foi refutado pelo Japão, levando a que 37 organizações de mulheres se juntassem na Coreia do Sul exigindo do governo japonês: o reconhecimento de que as mulheres tinham sido levadas à força; uma desculpa pública; uma investigação sobre o que se passara e os resultados divulgados publicamente; a construção de um monumento para comemorar as vítimas; pagamento de compensação às vítimas ou seus herdeiros; o estabelecimento de programas educacionais que consciencializassem sobre essa realidade histórica. O governo japonês só reagiu quando uma das vítimas, Kim Hak-sun, veio a público contar a sua história no ano seguinte. Foi também ela a única a encetar um procedimento legal contra o governo do Japão. Do trauma colectivo, subsistem pois histórias individuais que funcionam como alavancas para que a História seja reconhecida: a partir da revelação de Kim, o governo japonês estabeleceu o Asian Women’s Fund for Comfort Women e pediu publicamente desculpa às mulheres.

A situação de tensão diplomática sobre este aspecto agudizou-se, tendo-se sucedido descobertas de documentação, vindas a público de sobreviventes, desculpas formais do Primeiro Ministro japonês (Miyazawa em 1992) e resultados dos inquéritos seguidas de uma batalha entre a Coreia do Sul e o Japão sobre a compensação económica. Embora a Coreia tenha dado a situação por satisfatoriamente resolvida, as vítimas coreanas sobreviventes acabaram por levantar um processo judicial contra o seu próprio país, por considerarem que o seu governo tinha anulado os direitos individuais das vítimas de obter compensação do Japão ao assinar um acordo entre governos sem as consultar. Não pode dizer-se que o tema esteja ultrapassado. Mesmo a nível governamental, continuam a existir situações de diplomacia sensível.

Porém, nem só da Coreia reza a História, embora seja coreano o esmagador número de sobreviventes a manifestar-se. Existem testemunhos da China, de Taiwan, das Filipinas, e até da Holanda, cuja sobrevivente JanRuff- O’Herne ficou famosa, entre outras coisas por admitir que a sua visibilidade caucasiana tinha levado a que este tema fosse mais falado e ainda pela triste recusa da Igreja em permitir que se tornasse freira devido ao seu passado “de conforto”, um sonho conventual que acalentava desde criança.

Hoje, existem vídeos a circular sobre o assunto, monografias académicas, reconstituições históricas , memoriais em honra das “mulheres-conforto”, romances e continuam a haver manifestações para que não sejam esquecidos os seus sofrimentos.


Foto: Sobrevivente coreana relembrando os tempos da escravidão sexual numa conferência
(foto de Kazuhiro Nogi)

Termino com o testemunho, um entre tantos, de uma mulher coreana que era uma criança de 13 anos quando foi raptada e feita escrava sexual. Este testemunho foi retirado do relatório de 1996 das Nações Unidas sobre as “mulheres de conforto”. Nada como as palavras desta menina para sermos co-testemunhas do trauma. O seu testemunho em idosa jamais esqueceu o horror, embora ela tivesse esquecido a sua própria língua (atenção, conteúdo gráfico e sensível)

Chong Ok-sun, nascida em1920:

“Um dia de Junho, eu tinha 13 anos, e tinha de preparar o almoço para os meus pais que estavam a trabalhar no campo, por isso fui até à vila buscar água. Um soldado japonês apanhou-me de surpresa e levou-me. Os meus pais nunca souberam o que tinha acontecido à sua filha. Primeiro, fui levada para a esquadra da polícia num camião onde fui violada por vários polícias. Sempre que eu gritava, punham-me meias dentro da boca e continuavam a violar-me. O chefe da esquadra bateu-me no olho esquerdo porque eu chorava. Nesse dia, fiquei cega do olho esquerdo.

Dez dias depois (não estou certa de quantos dias exactamente), fui levada para as barracas de guarnição japonesas na cidade de Heysan. Havia cerca de 400 outras meninas coreanas comigo e tínhamos de servir mais de 5.000 soldados japoneses como escravas sexuais diariamente: mais de 40 homens cada uma. Cada vez que eu protestava, batiam-me ou enfiavam-me trapos dentro da boca. Um deles colocou um fósforo aceso junto das minhas “partes privadas” até eu lhe obedecer. Nesse momento, já estas estavam a escorrer sangue.

Uma das meninas coreanas que estavam ali quis saber porque tínhamos de servir tantos homens por dia. Para a castigar pela sua pergunta, o comandante da companhia, Yamamoto, ordenou que ela fosse espancada com uma espada. Enquanto nós víamos, os soldados tiraram-lhe a roupa, amarram-lhe as pernas e as mãos e fizeram-na rolar sobre uma tábua com pregos até os pregos ficarem cobertos de sangue e de pedaços de carne. No fim, cortaram-lhe a cabeça. Yamamoto disse-nos: “É fácil matar-vos a todas, é mais fácil do que matar cães.” Também nos disse “já que as meninas coreanas estão a chorar porque não comeram, cozam esta carne humana e façam-nas comê-la.”

Uma das meninas coreanas apanhou uma doença venérea como consequência das violações constantes e, em resultado, 50 soldados japoneses foram infectados. Para impedir a doença de se espalhar e também para esterilizar a menina coreana, enfiaram-lhe uma barra de ferro quente na vagina.

Certa vez, levaram 40 de nós num camião para longe, até uma piscina cheia de água e de cobras. Os soldados espancaram várias das raparigas e depois mandaram-nas para dentro de água, cobriram-nas com terra e, assim, enterraram-nas vivas.

Penso que mais de metade das meninas das barracas de guarnição foram mortas. Tentei fugir por duas vezes, e em ambas fui apanhada após um par de dias. Depois, era duplamente torturada. Bateram-me tanto na cabeça; ainda tenho todas as cicatrizes. Também me tatuaram: dentro dos lábios, no peito, no estômago, noutros lugares. Desmaiei nesse momento. Quando acordei, estava no alto da montanha, supostamente ali deixada para morrer. Éramos 3 que ali estávamos, sobrevivemos 2: eu e Kuk Hae. Fomos encontradas por um homem de 50 anos que vivia nas montanhas e que nos deu roupa e algo para comer. Ele ajudou-nos a viajar de volta para a Coreia, para onde regressámos. Voltámos para o nosso país com cicatrizes, estéreis, e já não sabíamos falar bem. Tínhamos 18 anos, tinham passado cinco anos em que tínhamos servido de escravas sexuais para os japoneses.”

A escravidão sexual, o crime, pode acabar… mas a sua marca, o trauma, perdura para sempre.


Friday, August 30, 2019

Descobriram que eram europeus


“Descobri então, com deslumbramento, a minha posição no mundo: era europeia.” Disse-o Natália Correia em 1949, após uma viagem aos E.U.A. quando as viagens entre Lisboa e a América demoravam vinte horas. Em 2019, os tempos são outros. Ainda que não fossem, há que assumir que não abundam Natálias, nem intelectualmente nem em frontalidade.

Ultimamente, imensos vultos da nossa localidade se descobriram europeus, sem que antes se tivessem dado conta disso. É de louvar esta descoberta, não sei se étnica, se cultural ou se motivada por uma questão de (des)afogamento económico e jogo político. No(s) primeiro(s) caso(s), teríamos o encontrar da sua própria identidade pessoal e colectiva (já tarde, mesmo não comparando com Natália); no segundo, estamos perante uma moda, que permite agradar às massas, ganhar uns trocos valentes, e fazer o nosso pobre país sobreviver na onda dos subsídios.

Claro que há indivíduos que, desde há muito, assumiram a sua persona europeia, não estando abrangidos por este recente deslumbramento aldeão, totalmente alheio à curvatura geral do resto da Europa. Sei que as modas demoram tempo a chegar às periferias, mas hoje, já não nos podemos desculpar com a geografia do extremo oeste. O discurso já não cola, desde que o país se apressou a entrar na UE em 1986, ainda com feridas mal curadas de um passado resolvido com cuspo e sem saber muito bem o que fazer portas adentro com as suas crises.

Todos sabemos que a união de estados europeus foi criada com um propósito claro após a devastação que a Grande Guerra deixou na Europa. A ideia era não tornar a passar por outra situação de confronto interno, unindo-se num ideal comum de fraternidade – e, já agora, numa potência económica. Mas esses ideais federativos nunca foram cumpridos na totalidade. Aliás, onde é que esses ideais já vão! De facto, cada vez mais se nota um desfazer do tecido europeu.

Nem é preciso falar do Brexit, para onde nos mandam olhar para que pensemos que é a única fractura. Foi ridículo o Reino Unido ter saída marcada da U.E. para 31 de Março, o Parlamento não chegar a acordo e, embora todos soubessem que iam sair, os britânicos ainda terem ido votar nestas eleições. Caricato. De que terá servido a campanha e a escolha desses deputados europeus britânicos? A quem beneficiou? O surrealismo encontrou nova expressão! Ouvimos imensos “distintos” a dizer “O Reino Unido vai ver o que lhe vai acontecer”. Na verdade: “nada”. O Reino Unido continuará a sua vida, sem pertencer à UE. Não sou a favor da saída por muitos motivos, mas pragmaticamente não vejo que isso traga dano aos próprios (já aos restantes europeus é outra conversa…)

Sejamos sérios. O “ideal Europa” está em crise, mesmo nos pilares fortes da UE: as sondagens feitas em França antes das eleições para o Parlamento Europeu resultaram em 70% dos franceses a opinar que a UE já não era um sistema no qual se reviam; na Alemanha, as mesmas sondagens resultaram em 45% dos eleitores com a mesma opinião. Se formos a países fracturantes como a Hungria, o descalabro é total. A realidade é que a generalidade dos eleitores manifesta que “esta Europa” não responde às necessidades dos seus países, ou porque se sentem à beira (ou em plena) recessão económica ou porque lutam com um problema de imigração ao qual a Europa não tem conseguido responder ou até por questões de etno-nacionalismo (cada vez mais forte e mais exacerbado em todos os países - este sim, constitui um problema muito grave!). Mas tornou-se moda não falar nestes assuntos incomodativos…

…E noutros. Há quanto tempo não ouvimos falar da integração da Turquia? Há quanto tempo as vagas de imigrantes em barcos no Mediterrâneo continuam? Há quanto tempo não se discute o salário mínimo europeu, essa ideia peregrina que desapareceu de vista? Agora fala-se apenas de relações com países não europeus (que não mandem barcos…) e de ambiente - com Grete a distrair as massas, como se os políticos, caso quisessem, já não pudessem ter feito tudo o que esta jovem de imagem infantilizada lhes grita no parlamento: apenas uma manobra de circo.

A UE é um projecto difícil porque é um caldo de culturas nacionais (já nem falo das regionais), procurando ligá-las através de um sonho comum (fundamentalmente) económico – mas há irmãos ricos e irmãos pobres nesta família cuja solidariedade tem limites. É curioso que só agora, nos lugares pequeninos e recônditos da Europa, se tenha “descoberto a identidade europeia” que, caramba, sempre ali esteve! Ou isto significa que há uma falta de fluidez económica preocupante nesses lugares; ou significa que estão muito atrasados na descoberta da sua identidade. Qualquer uma destas hipóteses é má mas, sobretudo, chega tarde, como um tipo cuja banda sonora preferida de 2019 é Elvis Presley, remasterizado.