... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 25, 2009

Family Matters


Diz o refrão que “Natal é a festa da família.” O refrão só não diz que “família” tem significados diferentes para muitos, tanto do ponto de vista afectivo como psíquico e até ético. Não vamos por aí, porque corríamos o risco de divagações psico-filosóficas. Certo é que há, basicamente, duas famílias: a nuclear – aquela que é formada por duas pessoas quando decidem juntar trapinhos e escovas de dentes, mais seus filhotes – e depois a família de ADN – aquela que a gente não escolhe mas que nos calhou na rifa. Eu acrescentaria ainda uma terceira, formada por colaterais e emprestados. O Natal é a única época do ano em que dita a convenção social que há que juntar esta gente toda... O Natal é, pois, permitam-me dizê-lo, a festa da sobrevivência.


Vamos então falar das duas figuras universalmente mais amadas da Família: a Madrasta e a Sogra. Para onde formos no Mundo inteiro, não há quem não as venere. O próprio Pai Natal, se tivesse Madrasta e Sogra, deixaria de exibir um ar tão bonacheirão. O Menino Jesus, felizmente tinha Mãe ao invés da outra Senhora… e não chegou a ter Sogra. É por isso que está sempre com aquele sorriso abençoado.


Gostaria de esclarecer os espíritos menos iluminados: estou muito habilitada para falar de Madrastas. Em primeiro lugar, tenho uma; em segundo, sou uma. É, pois, com certeza que afirmo:  é impossível ser uma boa Madrasta - tudo está contra as ditas criaturas na crença popular. Desde o princípio dos tempos que elas envenenam maçãs (vide Branca de Neve), infernizam a vida das raparigas (vide Cinderela) e lhes dão nada mais que pão duro para comer (vide história das Três Maçãs de Oiro). Cá por mim, nunca comi nada que a minha tivesse cozinhado sem ver a minha Irmã (filha dela) dar uma trinca primeiro. São invejosas, más e arrancam o coração das enteadas nalguns contos infantis em que o Pai das meninas é uma figura quase invisível. A gente admira-se como é que ele não salta logo ali a dizer “Alto! O coração, não, sua bruxa!”. É por ter a certeza que o meu Paizinho também não saltaria que tenho sempre muito cuidado, sobretudo quando a minha Madrasta carrega a sua caixa na qual ela diz que guarda a flauta – pois toca numa orquestra sinfónica  – mas eu cá suspeito que aquilo são armas letais.


Não pensem que, na eminência permanente deste ataque sob o qual vivo desde os 10 anos de idade, me mantinha impávida. Isso é que era doce! Fazia-lhe a vida num inferno à minha maneira, aquela maneira delicodoce que a criançada tem de se fingir adorável e ir partindo frascos pela calada e pondo os vidros no lixo. “Perfume?! Não. Não vi frasco nenhum! Mas ajudo a procurar.” Eh eh eh…


Sempre que podia vir a gostar dela, lembrava-me imediatamente que a Madrasta era incompatível com a minha Mãe e ficava logo mais ordenada, com a raiva no sítio certo. Era o que faltava! Até porque a minha Madrasta é mesmo odiosa, claro, e não amorosa como eu. Quando acabar isto, vou-lhe escrever um fofo cartão de Natal, que espero seja o meu Pai a abrir para que saiba como eu faço um esforço para ser boazinha. Ia juntar um link para um grupo do Facebook chamado “Stepmoms Suck”, no qual se pode dizer mal sobre as mulheres dos nossos pais (alguns infelizes já vão na quinta Madrasta oficial, fora as outras, mas ainda não se lembraram de achar que é o Pai que é inconstante…)


E as Sogras? É folclórico que Sogra é um problema. Não estou tão habilitada para dissertar porque não sou Sogra… ainda. Mas como tenho um Filho, suspeito que, cedo ou tarde (tarde, meu Deus, fazei com que seja muito tarde!), estarei encontrando perfídias em todas as mulheres que dele se aproximarem. Sim, porque claro que serão elas a aproximar-se, o meu Filho jamais se aproximará de Mulher alguma quando já tem em mim tudo o que precisa.


Essas aproveitadoras (de quê ainda não sei bem, mas estou certa que existem para se aproveitar de alguma coisa…) que estejam alerta porque eu não lhes vou dar descanso! …Sempre com muito mel, evidentemente: “Oh Filho, essa rapariga gosta de ti mas parece que está um bocadinho infeliz e tu então… Estou preocupada com ela e contigo, vocês talvez devessem tirar umas férias um do outro para espairecerem. Anda para casa da Mamã uns dias. Ou a Mamã pode ir  dar-vos uma ajuda, que a vida de casal é muito difícil, sempre uma pessoa mais experiente equilibra…” Eh eh eh.


Sogra, para além de ter infinitos truques movidos pelo ciúme de ver o Filho beijado e apertado por outra criatura do sexo feminino (vide Madame Bovary), tem um peculiar atributo: odeia toda e qualquer Nora na mesma proporção em que “ela é muito boa rapariga” a partir do momento em que passa a ser ex-nora. Experimentem dizer-lhes que vão ficar juntos de novo e invertem logo a opinião da Sogra.


Sogra é bicho tanto mais ruim quanto nunca diz verdadeiramente o que pensa ao Filho; diz e faz à Nora que, na sua ingenuidade (quando ainda a tem) conta ao Filho que, por sua vez, jamais pode acreditar que a sua Mãe fosse capaz de tais pensamentos, palavras e acções. O meu Filho também nunca acreditará, Deus o guarde. Estou já congeminando o meu saco de maldades, maior que o do Pai Natal.


A melhor piada sobre Sogras que conheço foi-me dita por um homem, Sogro veterano - um velho vai ser operado e insiste para que seja o Filho, afamado cirurgião, a executar a operação; quando já está na mesa de operações, pede para falar ao Filho antes da anestesia e diz-lhe: “não te enerves, filho, faz o teu melhor… lembra-te apenas que se isto correr mal e eu morrer, a tua mãe passa a viver contigo e com a tua mulher…”


É assim que no Natal vemos reunidos, mais uma vez, no seio familiar (gosto muito desta expressão, “seio familiar”, algo muito caro às Sogras – o seio é de onde o Filho nunca havia de ter saído! – e Madrastas – por pudor e reverência paternal, não comento esta parte …) todos os clãs, que Deus os abençoe na Sua infinita misericórdia, luz, paz e amor.  Àmen.


Monday, December 14, 2009

Aves Raras

Neste preciso momento, encontro-me a trabalhar numa cidade onde há vários anos atrás fiquei muito triste por esta altura do ano – estávamos em família, quando deparámos com um mendigo, gelado e só, com um cartaz que dizia “C’est dur d’être seul pendant Nöel” (é duro estar sozinho no Natal). Talvez seja. O certo é que, este ano, depois de falar com uma colega de trabalho, tenho uma impressão diferente: estar só no Natal pode ser muito bom. Desde que seja uma escolha nossa.


Não sei se sabem que a esmagadora maioria das companhias aéreas baixa escandalosamente os preços no dia 25 de Dezembro. A razão? Qual é o doido que quer viajar no dia de Natal? A maior parte está no quentinho do lar e ai dele se sai para ir dar uma volta, o sacrílego! Era engolido. Parêntesis para referir os que não são cristãos e, logo, não fazendo o Natal parte das suas convenções, digo prazeres, podem perfeitamente meter-se num avião nesse dia. Também há os que trabalham no Natal, por força das circunstâncias – assim de repente, recordo-me do taxista que nos pode levar ao aeroporto, do piloto de avião, do homem do bar, dos senhores da ambulância, da polícia e dos jornalistas.


Porque é que é tão duro passar o Natal só? Porque se convencionou que há que estar acompanhado. Experimentem dizer que vão passar sós o Natal. As famílias dos vossos amigos, com um misto de compaixão e da melhor intenção samaritana, convidar-vos-ão logo lá para casa. Há sites internet sobre como sobreviver ao Natal sozinho (sobretudo dirigidos a divorciados, embora eu cá ache que se deviam dirigir a idosos fechados em lares, onde a solidão é muito mais pesada do que se, efectivamente, estivessem livres para irem para onde bem entendessem). Quando, finalmente, uma pessoa consegue tempo para estar só em sua casa – após declinar os amáveis convites – liga a televisão e o que é que aparece? Famílias inteiras trinchando animais, presentes, presentes, presentes e festas. Uma pessoa está, praticamente, jantada de Ferreros e inundada de brinquedos sem sair do sofá.


Eu gosto sinceramente do Natal, sobretudo pelos sentimentos de generosidade, fraternidade e alegria que provoca na maior parte das pessoas que o celebram. Também gosto – talvez até infantilmente – da sua luz, do seu calor, da paz (ainda que efémera e talvez falsa) que traz com ele. Mas abomino obrigações. E é esse paradoxo que me constrange, sobretudo quando aliado ao materialismo e à hipocrisia.


Natal sozinho não tem de ser sinónimo de Natal solitário – pode ser um Natal solidário, como o da minha colega que é voluntária num abrigo e passa o Natal a servir comida a quem come mal o resto do ano. Tem um Natal melhor que o meu, porque é, sem dúvida, muito mais útil ao mundo. Não sei se se sente mais feliz. Mas é a única que vive o Natal – afinal, é a única que vê e faz milagres acontecerem. E, para falar a verdade, até me dá vontade de rir quando ouço dizer que ela está só.


Thursday, December 10, 2009

Íntimos Paraísos Feitos de Papel


“O que na vida perco, em tinta o acho” Vitorino Nemésio,
 Andamento Holandês





Escrever sobre “Literatura Açoriana” - tema proposto - não é fácil. Primeiro é preciso provar a sua existência e esta é uma questão que vem sendo debatida ainda eu comia chupa-chupas em público sem que ninguém olhasse para mim de lado. Porque é que é tão difícil provar que existe uma “Literatura Açoriana”? Porque teria de ser intrinsecamente diferente da Portuguesa o que implicaria, desde já, uma Cultura Açoriana distinta da Cultura Portuguesa que se expressasse em Literatura. Ora, admitir a especificidade de uma Cultura é algo cujas implicações não cabem aqui… Vamos elegantemente saltar por cima do conceito hipertrófico de Cultura, admitir que a Açorianidade existe e que a sua especificidade está reflectida na Arte que os Açorianos escrevinham. Como é que a Literatura expressa a Açorianidade? Um falecido Professor de Mestrado meu, Martins Garcia, dedicou a sua vida a estudá-lo e, lendo as suas conclusões, quase apetece dizer “A Literatura Açoriana é um poço de indefinições! Todos ao psiquiatra, de imediato!”.


Tomemos como exemplo Roberto de Mesquita e já vão ver porquê – poeta nascido em 1871 nas Flores, de onde só saíu para uma viagem ao Continente, e cujos escritos já Nemésio considerava “ o melhor exemplo do perfil difuso (…) da Açorianidade”. Este adjectivo é importante, como as brumas. Certo é que R.M. tinha uns traços afrancesados simbolistas porque lia Baudelaire, Verlaine e essa malta, mas distinguia-se deles pelo seu “sentimento de solidão atlântica” que é, afinal, a condição humana dos açorianos, ilhéus no meio do grande mar. Dizer só isto é pouco, pois não faltam ilhéus por esse mundo fora (e alguns dividem o Atlântico connosco), portanto não sejamos arrogantes. Porque é que estarmos insulados nos faz tão diferentes? Porque o Açoriano não está insulado. Ele é insulado. Parêntesis para dizer que, deste modo, a Literatura Açoriana adquire uma geografia muito mais ampla: o Açoriano leva a Ilha para onde quer que vá – arquétipo mítico da Ilha Perdida que já só dentre dele existe, arca de onde se retira material para muita literatura e tema de uma perturbação mutiladora vulgarmente conhecida como “Síndroma de Ulisses” (que não é só açoriano e nada tem de mítico, infelizmente).


Voltemos um pouco atrás – ao ser-ilha. É notória a influência dos elementos naturais na psique do Açoriano. Na Literatura Açoriana, a ambiência natural aparece como parte íntrinseca do sujeito,quase deixando de haver distinção entre a objectividade da Natureza e a subjectividade do poeta. O clima como definidor da anima é uma noção tão verdadeira quanto terrível pois o clima açoriano é de mormaço, de humidade abafada, propensa a muito pensamento e a “ilimitação parada “ de “ilhas acobardadas em neblina”, como se lê no Mau Tempo no Canal – livro extraordinário para avaliar da cobardia e dos repentes de coragem, conforme o Pico tem nuvens ou não…


Este mesmo livro define muito bem a “clausura insular”, a noção de ilha como prisão, o que é compreensível para qualquer não-ilhéu. O que já é mais difícil de explicar é porque é que os Açorianos são tão paradoxais que encaram a Ilha tanto como prisão quanto a vêem como miragem de total liberdade, por oposição às grandes capitais (restos de ideias de Rousseau?). Dividem-na em duas ilhas perfeitamente antagónicas e carregam ambas, coexistentes, sendo a “Ilha escravizante” mais forte quando lá habitam e a “Ilha sedutora” mais forte quando dela estão apartados. Porque a Ilha é como uma sereia: canta muito bem até nos agarrar.



Isto leva-nos ao grande tema da Literatura Açoriana: a viagem. Como não, com tanto mar? Mas, novamente, o Açoriano hesita, interroga-se, não se decide de uma só vez. Está encantado com a visão atlântica e deleita-se a imaginar as vivências que teria nos mundos para além mas igualmente tem um certo gosto em deixar-se ficar no seu canto conhecido, no encanto dos cheiros da terra de sempre. A maior parte acaba por recalcar o sonho da distância em amargura, levando o dia-a-dia num “viver quietista”. Outros há que partem, o que é sempre encarado como uma transgressão. E há, ainda, a transgressão suprema, a daquela personagem fabulosa chamada “o torna-viagem”, o que partiu e voltou, a mais solitária de todas as figuras porque não tem lugar a não ser como contador de histórias.


Claro que não é possível resumir as características da Literatura Açoriana numa opinião de meia-folha. Direi, como já outros disseram, que ela é “solidão, cárcere, infinito e fuga”. Acrescento, também, que não se pode falar dela sem falar de emigração, uma emigração sem lugar de chegada, mas apenas com lugar de partida: a Ilha Açoriana é íntima, para além de física – depois da evasão, estilhaça-se, parte-se num indivíduo também ele próprio fragmentado pelas circunstâncias de dois mundos, mas continua a existir.


Quanto ao mais, seria interessante (num artigo mais longo), verificar a incidência de tantas mulheres-anjos e outras tantas mulheres-demónios na Literatura Açoriana. De facto, somos mal amadas porque somos sagazes Circes ou, pelo contrário, mitificadas de tal modo que de símbolos não passamos… Pois, não sei se cheguei a mencionar que a Literatura Açoriana não é um caso de Teoria da Literatura – é um caso de Psicologia.


Felizmente, nalgumas linhas, nalgumas páginas é tão bonita que vale todo o tempo que lhe dedicamos. São íntimos paraísos feitos de papel. 




Nota: Este texto, inicialmente feito para o Fazendo como crónica principal, foi re-publicado no RTP-Comunidades a 24 de Abril de 2011. A 27 de Julho de 2011, o RTP-Comunidades republicou o artigo, pelo interesse e polémica que gerou.
Ver aqui:





Wednesday, December 9, 2009

Poderosas Burkas Invísiveis

Este Verão, fomos – eu e a minha família - a Istambul. Teria sido uma viagem como outras se não nos tivesse marcado tanto. Em artigos que escrevi para o AO, onde mantenho uma coluna, falei, na época, dessa viagem - de como foi poderoso estar nos sítios das mesquitas reservados apenas às mulheres, de como o meu filho me ensinou mais sobre como comunicação com outros povos do que quaisquer academias (e até da barbaridade que é os fraldários do aeroporto de Lisboa estarem dentro dos wc femininos porque não tenho de ser obrigatoriamente eu a limpar o rabinho da criança, perdoem-me este aparte).


Mas, na verdade, quando regressei, lembrei-me de Sarah Mousavi, uma ex-aluna minha que usava um véu na cabeça. Era muito comum no Canadá haver uma enorme diversidade cultural, mas a Sarah foi a única muçulmana que ensinei que fazia questão de tapar os cabelos com um véu e as coxas com roupas largas. Embora a Sarah fosse bem aceite por todos, havia, ocasionalmente, algumas piadas menos simpáticas e imagino que, fora das aulas, a coisa se incendiava muito mais. A certa altura, por obrigatoriedade disciplinar, os alunos tiveram de escrever um texto sobre tradições culturais e este foi o texto da Sarah que - corrigido por mim é certo - segue aqui, para vossa reflexão. Acredito que toda a literatura deve acordar-nos e abrir-nos os olhos para o real, como se nos desse uma marretada na cabeça. Portanto, o que a Sarah escreveu, nesta óptica, é literatura.


Antes de o transcrever, tenho de agradecer às centenas de alunos de tantos países que tive ao longo dos anos. Não sei quem mais aprendeu, se eu, se eles…



“Uso um véu nos cabelos e interrogo-me porque é que os meus colegas pensam que isso me faz estar presa a seja o que for. Este uso é uma escolha minha, pessoal, ainda que condicionada pela minha cultura. Mas não é verdade que todos eles estão condicionados pelas suas culturas? Não é verdade que todos eles estão agarrados a conceitos que trazem do que lhes ensinaram os pais, os avós e até do que lhes disseram os amigos e vizinhos? Os meus pais não me obrigaram a usar hijab. Educaram-me dentro da filosofia da religião islâmica, é certo, mas eu podia ser islâmica e não usar nenhuma espécie de véus, se quisesse. Sinto-me bem como estou e, sobretudo, como sou.


O que sabem vocês do Islão? Provavelmente tanto ou menos do que eu sei do Cristianismo, do Judaísmo, do Hinduísmo. É fácil criticar quando somos ignorantes acerca de algo. Dizem-me “oh Sarah, como podes andar de burka?!” Mas eu não uso uma burka, uso um hijab. Há muitas formas de véus, desde a abaya (aqueles véus negros que tapam as mulheres completamente, só lhes deixando os olhos à vista) e muitas tradições de os usar. Aliás, hijab é também a palavra que usamos para definir a forma de vestir das mulheres muçulmanas.
O meu propósito ao escrever este texto, porém, é outro. Gostava de fazer uma observação: todas vocês, minhas colegas e algumas até minhas amigas, usam burkas e não sabem. São burkas invísiveis e, por isso, são mais poderosas ainda. Algumas até usam abayas: estão tão tapadas que apenas os vossos olhos se vêem e, quando olhamos para vocês, baixam-nos, envergonhadas de terem abdicado da vossa liberdade. Não têm mãos livres e a vossa cara está presa em negros véus. Eu sou um passarinho que voa em eterna Primavera perto das vossas gaiolas de grades douradas, por comparação. E sabem porquê?


Vocês dizem-se livres e emancipadas, por serem mulheres estudantes. Isso também eu sou. A minha liberdade é a mesma – participo em todas as actividades, desportivas e culturais. Mas, ao contrário de vocês, eu não sofro de dupla personalidade. Não tenho de fazer o papel de leoa que dá nas vistas quando está na Universidade e no café, soltando urros para se fazer mais notada e caçando para alimentar o leão (sim, o leão, e não vocês próprias… pois vocês passam o tempo a satisfazer o macho egocêntrico e dizem-se mulheres livres). Tanta pintura, tanto creme e tanto gritinho não é para que se sintam bem… mas pura competição para que o preguiçoso e aborrecido leão – que pouco vos liga – vos dê um pouco mais de atenção do que tem dado ultimamente. Ou do que dá à leoa do lado. Eu não preciso disso.


Ah, mas desculpem. Eu falava de dupla personalidade. Sim, porque ao pé do leão e dos vossos pais, vocês são uns cordeiros. Enfiam a burka por completo. Fazem tudo o que lhes mandam. Sim, meu senhor, que mais quereis? Já estais satisfeito? Julgam que assim ele vos dará mais. Mais do quê? Mais ordens? Que prazer ou vantagens retiram vocês da vida, para além de uma minúscula prenda no Valentines Day, dada, com certeza, para que vocês continuem a obedecer? Ah sim, um sorriso… Pois, tenho notícias: todo o tirano, para ser bem obedecido, ordena com ar simpático. Não deixa de ser uma ordem categórica isso que ele vos dá. Já experimentaram ser rebeldes? Então porque me aconselham rebeldia?! Vocês não conhecem o significado da palavra. Fazem-me rir com os vossos conselhos sem sentido.


Sou Sarah Mousavi. Consciente das minhas escolhas. Sempre a mesma, em qualquer situação. Feliz e confiante no meu Deus, na minha família, em mim própria. Não me minto. Não acredito em culturas perfeitas e não sou extremista em nada. Apenas quero sublinhar que eu vivo num mundo que conheço, do qual vocês pouco sabem (e inventam tolices como circuncisão feminina, que parvoíce!), e não tenho vergonha de ser como sou. Vocês dizem-se livres mas vivem na hipocrisia: vendem-se quase diariamente por dinheiro, por status e até algumas por uma cama quente ou por um bocadinho de atenção a que chamam amor. Amor é companheirismo, viver para um fim comum. Vocês vivem na obediência cega em vez de viverem na comunhão que prega o vosso Deus. Mas eu é que uso burka, segundo me dizem...”


Monday, November 30, 2009

Profissões de Futuro

Tendo irmãos e cunhada em idade de escolher profissão, naquele ingrato momento de vida em que ainda pensam que o primeiro emprego que tiverem lhes há-de durar toda a vida, escolhendo-o portanto com muita atenção, dispus-me a ir verificar quais as “profissões de futuro”, não sem antes os advertir que a gente, hoje em dia, muda de profissão frequentemente.


Após cuidado estudo da minha parte, envolvendo pesquisas à escala global (pois já a minha geração aprendeu que a gente tanto está morando no Pico como na Samoa desde que haja emprego) descobri, sem surpresas, que a maior parte das profissões de futuro estão relacionadas com tecnologia de ponta: analistas, programadores, designers. O Homem confia na tecnologia.


Claro que há o reverso da medalha. Tecnologia a mais contribui para um planeta menos natural. Portanto, também temos carreiras de futuro ligadas à protecção do ambiente, embora não sejam tantas como aquelas que hão-de dar cabo dele. De facto, há uma pequena parcela do mundo que quer regressar a uma vida mais primitiva, no sentido de original. Mas mesmo esses não vivem sem blackberries e sem Facebook.


Explorando mais um pouco sobre profissões de futuro, não é de espantar que a taxa de demografia actual aliada às condições de vida e à medicina avançada – que fazem deste um mundo cheio de bisavós com Alzheimer, mas carente de bisnetos – sejam favoráveis a profissões não só de saúde mas também (eu diria sobretudo!) de assistência à velhice. Lares de idosos precisam de mais mãozinhas qualificadas.


Outras profissões de futuro na lista são de limpeza, quer seja da rua (os “senhores do lixo” são os primeiros protectores do ambiente) ou da nossa casa (empregadas domésticas, experimentem fazer greve!). E, claro, essa profissão de limpeza por excelência que é o psiquiatra e o psicólogo. Limpa que é um caso sério e vai continuar a ter futuro no mundo que se avizinha.


Para ajudar a dar cor e verniz à vida, nada como ser esteticista. Esteticistas, massagistas e técnicos de turismo serão procurados no futuro, como formas de escapar à pressão do dia a dia.


E carreiras que em breve vão deixar de existir? Telefonistas e secretárias. Ao que parece, atender telefone, agendar reuniões e viagens já é feito por computadores em muitas empresas. Claro que um computador não tem unhas de gel pintadas de roxo nem mastiga pastilha elástica de balão enquanto nos atende… Como diz um cínico familiar meu: não há nada que chegue à reconfortante poluição visual e sonora que nos dá um ser humano.

Monday, November 16, 2009

O Caso da Mini-Saia Rosa-Choque

São Paulo, uma das cidades mais povoadas do mundo, deu ao Brasil um dos seus últimos escândalos. Parece coisa fingida para aparecer num reality show, se não tivéssemos mesmo visto as inacreditáveis imagens em telejornais (no you tube para os bichos raros que, como eu, não possuem televisão). Facto: uma rapariga de 20 anos, estudante de Turismo na Uniban, teve de sair, certa manhã, da sua Universidade escoltada pela Polícia. Porquê? Facto: uma universidade em peso (e não era pouca gente, vide primeira linha), colegas, professores e staff auxiliar insultava a rapariga com os mais fortes insultos que uma mulher pode ouvir, ameaçava-a de violação, e bloqueava a saída de modo que ela não ia a lado nenhum. E porquê? Facto: a rapariga estava a usar um minúsculo vestido rosa-choque.


Após o choque inicial (o meu, não o da rapariga…), dei comigo a pensar que poderia haver aqui diferenças culturais que estariam para lá de um primeiro olhar e com diferenças culturais não se goza; tenta-se entender. Mas depois… qual quê?! Então isto não é o mesmo país que gosta de dançar o Carnaval na rua semi-nu?


Poderão dizer-me “mas isso é o Carnaval, não é a vida de todos os dias”. Concordo. Há um tempo e um lugar adequados para tudo. Mas garanto também que a rapariga, neste momento tão tristemente endeusada pelos defensores da liberdade como apunhalada pelos moralistas de sacristia, não estava diferentemente vestida de muitas funcionárias públicas portuguesas, neo-burguesinhas, guiando carros flashy (dos maridos) e piscando o olho muito pintado (aos patrões). Esta Geisy de seu nome, falsa loura, sapato alto, unha longa vermelha e vestido “olhem-para-mim” cuja cor não condizia com o tom da unha, falando com aquele tom arrastado de quem já perdeu a ingenuidade mas quer parecer que não, que nos aparece nas câmaras puxando lágrimas, é um produto de fábrica.


A pergunta não é se a menina tem falta de elegância, de bom gosto e de bom senso. Claro que tem. A pergunta é que tipo de Academia (latu sensu) se preocupa mais com as Geisys e seus uniformes do que com as questões que verdadeiramente a deviam interessar enquanto Templo do Saber e Lugar de Formação. Para quem disser que “formar” a Geisy começa na sua aparência, eu diria que, muito mais grave do que o modo como a Geisy se veste, é saber porque raio todos estes professores, académicos, futuros advogados, futuros médicos, futuros jornalistas, etc,  assumem comportamentos tribais e agem como uma multidão ávida de sangue ao ver alguém que não se comporta como “um dos do grupo” de tal modo que a Polícia tem de a retirar de lá. E muito mais grave ainda é verificar como uma simples mini-saia pôs uma Universidade (cabeças pensantes, julgava eu…) a gritar graves acusações de prostituição e extraordinárias ameaças de violação. E, em última análise, uma mini-saia levou à expulsão de uma rapariga da escola no século XXI… Mary Quant, se tu soubesses!


Monday, November 2, 2009

Dura Lex, Sed Lex?

Todos viram “O Pianista” e talvez até tenham deitado uma lágrima com essa comovente história de um pianista polaco-judeu que consegue sobreviver milagrosamente à II Guerra Mundial. È um filme muito bem feito pelo Roman Polanski, um grande realizador na onda mainstream como o foi no cinema independente. O Sr. Polanski já ganhou um Óscar, um Globo de Cristal, uma Palma de Ouro e vários Césares nos mais variados Festivais de Cinema, sendo um dos mais conceituados realizadores do mundo. Foi preso na Suiça o mês passado, apesar da sua condenação por acusações de sexo não consentido com uma criança, a quem drogou, já vir de 1997. Acontece que o Sr. Polanski, ao saber da sua sentença nos EUA, fugiu para a França pois é cidadão francês. A França pode recusar-se a extraditar os seus cidadãos e o Sr. Polanski tem andado fugido até hoje. Mas tem recebido prémios. Por exemplo, o Óscar da Academia foi recebido pelo Harrison Ford em seu nome.


Remexendo mais na história: parece estranho que a menina – hoje uma senhora – tenha levado tantos anos para denunciar que foi vítima de violação e drogada? Talvez. Mas é preciso ter em conta que ela tinha 13 anos e o Sr. Polanski 44, o que lhe dava um grande ascendente de poder sobre ela. Para além disso, ele era já muito famoso na época e ela estava a cumprir ordens da mãe quando foi fazer uma sessão de fotos com ele. Não tenho dúvidas que o abuso de poder possa ser exercido nesta situação.


É invulgar que a senhora venha dizer, ao fim de algum tempo, que “só quer ser deixada em paz e que retira as acusações”? Talvez. Mas se eu andasse a receber 500 telefonemas de jornalistas por dia e não pudesse sair de casa, não tivesse o apoio de ninguém por comparação aos prémios públicos dados ao meu opositor, sabendo que o criminoso podia, como pôde, livremente fugir da justiça (elucidem-me: fuga à justiça não constitui, per si, um crime?!) após ter sido provada em tribunal a sua culpa, retirava tudo o que ele quisesse para poder ir pôr o saquinho do lixo lá fora, sem incómodos.


E não é invulgar que o Ministro da Cultura francês, esse portento do Frédéric Miterrand, diga publicamente que apoia Polanski “pelo seu amor à França, por ser um homem maravilhoso” e “por ter sido, nesta história, atirado aos leões” - afirmações que têm tanto a ver com a sua ética como batatas com mecânica e que nos dão a ideia que qualquer homem de cultura está não só acima da lei como pode violar o próximo a bem da inspiração.


Não é invulgar que a Polónia, terra original de Polanski, tenha uma sentença de castração química para violação de menores mas defenda Polanski, um homem famoso, que afirmou numa entrevista na TV que esta sentença lhe “dava muito mais projecção que um homicídio, porque f… com miúdas é o que toda a gente quer fazer, incluindo o juiz”?


Talvez tenhamos todos de aprender a distinguir entre os artistas, figuras públicas encantadoras, e os seres humanos que habitam dentro deles, ou, como disse Joan Smith, “temos de encontrar a nossa bússola ética e parar de encontrar desculpas para quem viola” os outros e a lei, sejam famosos ou não, admiráveis na sua arte ou nossos vizinhos.

Monday, October 19, 2009

A Dor de Cabeça do Barack

Poucas coisas fizeram correr tanta tinta ultimamente como o Prémio Nobel atribuído ao Presidente Obama. Aliás, poucas coisas fizeram correr tanta tinta ultimamente como o Presidente Obama. O Prémio Nobel e Obama, em termos de popularidade, formaram um caso raro de simbiose na data em que se juntaram. Esta protocooperação é extraordinariamente visível: no meu servidor de e-mail (que não é americano!) há até uma caixa de mensagens para mandarmos os nossos parabéns ao Presidente e a cadeia de televisão BBC, nas suas notícias online, colocou à disposição dos espectadores um fórum onde podemos dizer o que pensamos acerca da atribuição deste prémio. Alguém se lembra do Prémio Nobel ser tão comentado? E, vamos lá, também já vínhamos sentindo falta de uma notícia grandiosa e positiva sobre Obama depois daquelas imagens de cartazes com o rosto dele e a palavra “Hope” (utilizados na sua campanha) terem aparecido na televisão com jovens a escreverem por baixo “less”, formando “Hopeless”. A opinião pública é terrível: num dia, um tipo é um salvador bestial e no dia seguinte é uma besta, passando a bestial outra vez por um “nico” de nada se a coisa for bem jogada. Pois a opinião pública, para além de terrível, nada tem de inteligente – é obtusa, vendável para o bem e para o mal e funciona com base na psicologia das multidões.


Há milhares de milhões de comentários sobre a justiça da atribuição deste Nobel da Paz. O meu seria apenas mais um e não me interessa inculcar a minha humilde ideia. Muito mais engraçado seria discutir uma questão levantada pelo Wall Street Journal que diz que Obama devia ganhar um Nobel, sim, mas o da Economia, pelo seu “Reform Act” na área da Saúde, pelo seu pacote-estímulo de 787$ biliões, pelas questões da General Motors e da Chrysler… Mas eu sou mulher e, como já exprimi aqui, as mulheres não percebem nada de Economia nem de globalização; só podemos dizer aos nossos maridos que estão em falta detergentes e que o orçamento doméstico corre o risco de se afundar. Não é?


Quanto à Paz – que segundo a Revista Maria – é imprescindível para o bem-estar do lar e calculo que também do mundo, cheira-me que foi uma grande estratégia deste comité dar o Prémio ao Sr. Presidente dos EUA. Uma pessoa que recebe o Nobel da Paz não tem outro remédio senão ser mais do que diplomata daqui em diante. Vê-se obrigado a uma ética de base. Acabaram-se os conflitos bélicos americanos no terreno, as declarações de confronto no futuro, as armas nucleares ainda existentes, as penosas sanções a países terceiros, a pena de morte dentro do seu país, etc. Gee whiz. Coitado. Ou aceita ser Nobel da Paz ou segue a actual estratégia da sua super potência. O homem só está lá há nove meses, não pode modificar a política externa e interna só por si, ainda que queira. Alguém se lembra de um tal de Kennedy? Parece que era adorado. Não se sabe é como é que morreu. Alguém acredita nessa patranha do russo que furou a alta segurança americana? Eu, como sou mulher, só me lembro das toilettes da Jackie Kennedy. Lindas. E os chapeuzinhos? Divinais.

Tuesday, October 6, 2009

Meu Professor de Dez Meses

Há algum tempo, escrevi 3 artigos muito fundamentados e académicos sobre os problemas da comunicação. Já a crónica que se segue, retirei-a do meu notebook de viagem, e contradiz absolutamente os dramas linguísticos que, então, se me apresentavam. É bem feito. E, o que é mais, está sempre a acontecer-me. Pagar pela língua parece-me bem quando falamos de questões desta natureza. Aqui vai um pedacinho do diário desta viagem, como penitência.


“Após horas de caminhada por bairros muito estranhos onde não vi uma única mulher, chegámos a sítios da cidade que as cabeças ocidentais denominariam decentes. Vimos, então, uma mesquita e pensei “Que benção!” o que é um pensamento muito estranho para uma rapariga que usa uma Estrela de David ao pescoço desde a infância. Infelizmente, eu não tinha um véu suficientemente comprido. Emprestaram-me um, à porta. Cobri-me e entrei, cansada. Foi então que fiz algo inesperado para uma turista de câmara na mão – larguei-a e fui até ao extremo direito, entrando no rectângulo pequeno da mesquita onde só podem entrar mulheres (e os seus bebés). Tinha um pouco de receio que as muçulmanas me mandassem embora dali, porque é um sítio só delas, e estavam a rezar devotadamente, naquela posição especial que adoptam, com aqueles rosários diferentes. Algumas estavam apenas sentadas, a descansar. Uma tinha um bebezinho, e tentava mantê-lo quieto para que não fizesse barulhos desrespeitosos. Eu tive medo que me considerassem uma intrusa ou, pior!, uma curiosa da pior espécie , tentando escarnecer da fé alheia.


Mas nenhuma das mulheres disse uma palavra. As que estavam a rezar, continuaram. As que descansavam, sorriram-me amigavelmente. Sentamo-nos, eu e o meu filho. Lembrei-me de repente da minha Estrela de David, claramente visível, e que pensariam elas de um símbolo como aquele? Pensei numa fracçao de segundo “Tapo-a? Não a tapo?” Decidi não a esconder. A mulher que também tinha um bebé começou entao a entretê-lo com um tecido brilhante, que ele tentava agarrar. O meu bebé fez o mesmo. Ela olhou-me, com um sorriso radiante. De repente, estávamos a comunicar. Os bebés ainda mais, brincando com as mãozinhas um do outro e com o véu. Ela disse-me não sei quê, baixinho, sobre o véu e os bebés certamente e riu-se pondo o dedo na boca como que dizendo que tínhamos de fazer silêncio aqui. Os bebés riam, eu sorria como ela. Ninguém parecia ofendido.


Gostava de saber turco, mas não sei. Azar. Felizmente, resta-me o saber que não é aprendido, como o riso. Se olhar mais para o meu bebé na perspectiva de aluna em vez de tentar ser tao professora, talvez chegue mais longe.


O tempo das orações chegou e senti que tinha de sair. Quando passei pela porta, o senhor que guardava a mesquita ofereceu-me um balão. Só falava turco e, infelizmente, o meu agradecimento perdeu-se mas sorrimos e compreendemos o essencial. O balão era para o bebé, assim o entendi porque ele o amarrou no seu pulso.





Continuo sem saber em que parte da cidade estamos, e nao consegui descobrir que mesquita é esta. Mental note: deixar de me preocupar com tolices arquetípicas e seguir o instinto. Costuma dar certo. É muito melhor do que essa coisa carunchosa que é a ânsia de tudo compreender por palavras e infinitamente melhor do que o pré-conceito em relação ao que julgo conhecer.”



Monday, September 21, 2009

Espírito de Bairro

Na apresentação de “Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores” no Faial, dizia Mário Mesquita que uma das razões pelas quais tinha contactado Maria Filomena Mónica para a coordenação da obra foi o facto de ela ser uma “menina de Cascais”, o que a tornava insuspeita para falar dos Açores, pois que os naturais de um local são tendenciosos e, por amor à terra, falam dela muito bem. É verdade. Também acontece o oposto: por vezes, por despeito para com o torrão Natal, por experiências adversas de vida, há quem dele fale muito mal. O amor à nossa terra é sempre mais exigente, já dizia Vitorino Nemésio, pela boca de Margarida quando esta foi viajar de paquete no fim de “Mau Tempo no Canal”. Não quero com isto dizer que esse amor nos torne cegos, pelo contrário. Talvez demasiado despertos.


A interessante visão de Mário Mesquita é diametralmente oposta àquela que Paulo Mendes criticava na sua “Ponte Insular” ao Director dos Desportos de Cabo Verde, que não terá deixado Alain Hurtebize representar o país no Campeonato de Fotografia Subaquática da Macaronésia porque este não é natural de Cabo Verde, apesar de residir há 20 anos no país. Claro que o ridículo desta atitude xenófoba nos dá pano para mangas: o que é o natural de um país? Quem sabe e sente mais de um local? Aquele que lá reside há tempo considerável ou o que, por um acaso do destino, lá nasceu?


O meu filho deixou o seu local de nascimento aos dez dias de idade. Se algum dia for famoso (os deuses o livrem!) será bem ridículo que lhe erijam uma estátua no sítio onde nasceu! Se desde há muitos séculos a mobilidade permite ao Homem distanciar-se da sua Terra, hoje temos também a possibilidade de mudar de nacionalidade e/ou de acumular duas – dependendo da lei dos países - sem desprimor afectivo de nenhuma. O sentimento telúrico é cada vez mais isso mesmo: um sentimento e não uma fatalidade do destino.  


Como pessoa (a palavra cidadã anda muito desgastada, que diriam os gregos se vissem o uso que lhe deram?) desgosta-me que sejamos muitas vezes distraídos pelo local de nascimento dos outros para ajuizar das suas capacidades analíticas e até emocionais.


Toda a guerrilha que se baseie na naturalidade é fruto de um espírito de bairro, portanto, de uma mesquinhice que não deixou o empedrado recente da sua rua para se abrir a outras plataformas de diálogo mais amplas. Não podemos ver a árvore, ignorando a floresta, e depois usar palavras como “cosmopolitismo”; é como usar sapatos de outra pessoa para uma festa e não dançar com medo.


O amor à nossa terra é muito bom e até muito desejável, mas não quando nos venda os olhos à universalidade do sentir e do pensar. Antes deve essa paixão primeira ser a base que sustenta o amor pelo mundo em toda a concepção humanista.


Monday, September 7, 2009

WWW: uma ferramenta narcísica?

A Internet foi, provavelmente, a invenção mais extraordinária dos últimos tempos. Parece mentira que a sua comercialização só se tenha dado em 1989, dado que ninguém no mundo industralizado imagina o que é viver sem ela, quando há 20 anos atrás nem sabíamos o que era! No entanto, segundo a falível Wikipedia (já que estamos falando de Internet, embora usá-la!) apenas um quarto da população mundial a utiliza, prova da má distribuição da riqueza neste mundo.


Com a Internet, surgiu o acesso rápido à informação, à contra-informação, ao entretenimento e ao entretenimento à custa do bem estar dos outros (também chamado sadismo mas como  temos medo das palavras, excepto nos manuais psiquiátricos, há que ser delicado…) entre tantas outras facilidades. Sabemos que a internet nos permite conversar com alguém que está nos antípodas e, mesmo, vê-lo. Se Bell fosse vivo, ficava de queixo caído. Conclusão: a Internet teve sucesso porque é, sem dúvida, algo de extraordinário, pleno de possibilidades, que pode ser bem ou mal utilizado e é aí que entra a responsabilidade e maturidade de cada um.


A última moda da Internet são as chamadas redes sociais. Uma pessoa recebe no seu e-mail uma data de convites para se integrar no Hi5, no Facebook, no Twitter, no Linkedin. Some-se a isto a possibilidade de fazer blogs e ainda páginas pessoais, e tem-se a vida toda exposta.


John Sawers, por exemplo, foi designado chefe dos Serviços Secretos Britânicos (oh yes, they do exist!). Acontece que a sua mulher, Shelley Sawers, é grande adepta destas redes, e todos os dias postava fotos da família – “olha nós na praia, eis o John de calções, o John adora camarões, estes são os nossos babys, a mãe do John fez anos, o John lá vai outra vez viajar, esta é a nossa casinha, blablabla” . E não pôs restrições à sua página pessoal, ou seja, toda a gente que clicasse, podia ir ver o senhor na sua intimidade, e mais ainda, descobrir onde ele morava e qual o seu número de telefone, além de, pasme-se, o seu nome de código!
Para além da inevitável polémica pública (imagino a privada…), o Sr. Sawers enfrenta agora um inquérito – Gordon Brown, o PM britânico, viu-se obrigado a re-avaliar se ele será mesmo a pessoa indicada para o cargo.


Afinal, o que leva um político a fazer uma página (muito) pessoal na net e a revelar a sua vida privada, telefone incluído, ao público? Claro que há páginas que são de puro marketing (como a do Eng. Sócrates ou a de Paulo Portas, mutatis mutandis, que nada têm de íntimo e que devem ter sido obra de consultor de imagem).  Acredito que a resposta só pode estar num distúrbio da personalidade que é um bocadinho mais velho do que a Internet: o Narcissismo. Pode ser leve e gerar este desejo de admiração e de reconhecimento sem limites ou pode ser tão profundo que degenere numa sintomatologia à Brian Blackwell.


As pessoas reconhecem-se pelo que fazem, não pela bandeira que ostentam. E um Narcísico reconhece-se, sobretudo, pelo desejo que tem de ser o centro da nossa atenção. Para estas pessoas, a Internet não é uma porta para o mundo – é uma janela para espreitarmos o mundo que eles julgam ser. E que sorte que eles acham que temos!


Tuesday, August 25, 2009

Entrevista dada a Marco Silva, Canal Azorianidade, Autores Açorianos

O Marco enganou-se numa coisinha... Eu não sou faialense! Mas está perdoado. Até porque ficou impressionado com a história do bebé e decidiu tirá-la do filme. Eu compreendo, eu mesma disse que escrevia filme noir! :)


Podem ver aqui

Monday, August 24, 2009

Fraldinhas e Rodinhas

“A maior parte das doenças infantis manifesta-se ao pôr-do-sol” diz-nos o famoso Dr. Spock (não o do Caminho das Estrelas, mas o pediatra de sucesso, autor daquela Bíblia que todas as mães lêem). Não sei como nem porque não, mas o certo é que a meio das férias, nessa hora inspiradora dos artistas, apareceu uma diarreiazita (sufixo escusado porque era uma coisa monstruosa) ao meu bebé, coisa que dá sempre jeito em aeroportos e aviões. É nessa altura que se repara que em muitos locais, incluindo muitos wc de aeroportos internacionais, os fraldários são dentro das casas de banho das senhoras. Porque raio? Os homens não podem mudar fraldas? Quem disse que mulher é limpadora de rabinhos por excelência? E se, arquétipos culturais à parte, o pai do bebé estiver sozinho com o filhote, como faz para lhe mudar a fralda? Invade o wc feminino e é acusado de trespasse, assédio e perturbação da moral pública? É grave. Claro que, com a conivência dos arquitectos e engenheiros que pensaram nestes designs modernaços, fui sempre eu a mudar a fralda. Caladinha, pois o papá não tinha qualquer hipótese de colaboração, malgré a sua “boa vontade”… Nisto tudo, só bendisse a hora em que ofereci as cem fraldas de pano que me ofereceram os ambientalistas durante a minha gravidez, achando que eu era mesmo o tipo de pequena que ia lavar fraldas com sabão azul a bem das gerações futuras. Jamais! Viva o descartável! Reciclagem de fraldas, já, para quem me voltar a falar nisso!


Já mais frescos e bem-dispostos (sobretudo o bebé), prosseguíamos em frente. Até onde deixavam as rodas. Sim, porque o bebé está naquela fase em que já pesa muito mas ainda não sabe andar, portanto vai de carrinho. É quando se repara que em quase todos os locais públicos ou turísticos há escadinhas para subir e ninguém pensou numa bendita rampa. Como farão as pessoas que andam sempre de cadeira de rodas? Como farei eu, tu, o meu filho, se um dia tivermos esse azar? Andaremos sempre a esquivar-nos de entrar nos lugares aos quais temos direito como qualquer um? Pediremos ajuda para que nos transportem, com aquele olhar em que há um misto de carência e de desprezo pelo nosso distraído orgulho bípede?


Conclusão: foi penoso. Recordei-me dos tempos em que desloquei a minha coluna vertebral e passei três dias a contar moscas. Sei que, para além da dor física, existem mais duas dores: as impossibilidades oferecidas pelo mundo em redor, que antes era só abertura, e algo levemente parecido com pena no olhar dos outros, que está subjacente à primeira. Convenhamos: um sentimento galináceo que se dispensava se as rampas nos fizessem mais auto-suficientes.


Tuesday, August 11, 2009

Friday, August 7, 2009

A Diferença entre um Herói e uma Chiclet

Minha avó não acreditava na ida do Homem à Lua. Se tivesse lido a reportagem da Time sobre os homens que foram à Lua, ficaria plenamente convencida. A Lua nunca mais deixou quem lá foi. Não é fácil andar no espaço, literalmente falando.


Alguém se lembra do segundo homem que pisou a superfície lunar? Toda a gente sabe quem foi o Neil Armstrong, mas jamais alguém recorda os restantes. Heróis sem distinção, vivem na sombra do primeiro, gigante entre os gigantes um pouco por acaso.


A NASA escolheu os seus astronautas não pelo cienticifismo mas pelo sangue frio. Além disso, um dos critérios era que não fossem dados nem a filosofias nem a lirismos, que dão muito pouco jeito na imensidão e no vazio espacial. Mas mesmo estes homens duros tinham sentimentalismos, como atesta uma das fotografias da superfície lunar: um dos souvenirs é uma foto plastificada da família de um astronauta (os ambientalismos ainda não eram moda na cratera da Lua, deixámos plástico e não foi problema!)


E como voltaram eles à vida civil depois de terem sido os mitos da Idade Moderna de todo o Planeta, sem exagero? Mal. Tinham 30 e muitos anos, perceberam que tinham feito a acção mais notória das suas vidas e agora era preciso encher o que lhes faltava viver com trivialidades (para aí metade de um século, mais ou menos). Para além da depressão que segue os famosos quando a imprensa e público deixam de lhes prestar atenção - como disse o Comandante Lovell “temos de encontrar o nosso caminho sozinhos para fora do palco”- estes homens têm o plus de numa semana terem estado na Lua e na seguinte estarem na sua casinha, a ver televisão. Não deve ter havido maior fissura existencial na História humana. Dado que tinham passado boa parte do tempo anterior à conquista do espaço a preparar-se e motivar-se para isso, com aquela especial característica de brainwash que caracteriza os grandes eventos, depois sofreram uma enorme e abrupta sensação de perda de si mesmos quando o objectivo foi ganho. É o verdadeiro “quem sou eu?” e o real “o que faço aqui na Terra?”.


Surpreendentemente, a NASA, que tanto cuidado tinha tido com a preparação dos seus meninos, deixou-os à deriva: “we breed them as we need them”, ou seja, criamo-los conforme precisamos deles. Como todas as grandes forças.


Depressões incluídas, nenhum encontrou mais significado na Lua do que a fotografia que lá deixou. Nem mais significado na Terra do que o carinho de quem ficou à sua espera. Uns são políticos, outros pintores, outros professores e Charlie Duke fundou o Instituto de Noetic Sciences: “A minha viagem à Lua foi a minha experiência ah-ha, algo holístico, de cura interior.”


Não será que usamos os nossos heróis como chicletes?... 

Friday, July 31, 2009

Manual de bolso para cativar turistas


Fui a um encontro sobre Turismo. Saí muito desiludida. Há anos, ao visitar Naxos pela primeira vez, aprendi mais do que aqui sobre como cativar gente. Naxos é uma ilha grega, sensivelmente do perímetro do Pico, que vive do turismo todo o ano até porque a erva para as cabras está a desaparecer. Ali, era tudo grego, pois quase ninguém falava outras línguas, apesar da mentira que nos vendia o guia. Naxos não tem muito para ver, para além da Portara dita de Apolo e dos Kouros. Dado ser Inverno, não havia praia para ninguém. Então, como raio estava a ilha a abarrotar de turistas?


Entrei numa loja de esquina ao acaso, pequena e não muito limpa. “Oh, Thea, Thea” exclamou o comerciante, e logo deixou que estava a fazer para se colar a mim, dizendo-me que a Thea (deusa) era eu. Eu, na altura tonta de juventude e alheia às tácticas do marketing, disse-lhe não, não, muito ruborizada, sou só estrangeira. Näive que era, até apontei no mapa de onde vinha. Não, disse ele, és a encarnação desta deusa. E pôs-me na mão uma estatueta simples de uma mulher com uma bilha de água. Que deusa é esta?, perguntei eu, inocente. Grande deusa da água. Eu, muito menina de biblioteca, argumentei que não conhecia deusa nenhuma da água, apenas Neptuno como senhor dos Mares. Ah, não, deusa da água, fonte de vida, maior que Neptuno, ela é a origem. E é a tua cara, corpo, tudo.


Achas que sou parecida com esta deusa? perguntei ao meu namorado de então, que me acompanhava. E o pobre, apanhado nesta perfídia feminina, que havia de fazer? Não podia responder que efectivamente não era! Disse que havia semelhanças… E logo o indignado comerciante protestou: “O senhor dá a mão a uma deusa, uma deusa!”
Como se chama a deusa da água? perguntou o meu namorado, mais vivido que eu, e muito mais habituado a topar os truques alheios. Sobretudo, no caso, irritado numa luta de galos.
Hum… Efhy. Jamais ouvíramos tal nome. Anos mais tarde, estávamos ambos a trabalhar na Grécia, descobriríamos que Efhy é um nome tão vulgar lá como Maria em Portugal.
Leve Efhy, é o seu retrato imperfeito em mármore, dizia o comerciante. Trouxe-a comigo. Até hoje está na minha sala, com a sua bilha de água. Pesquisei. Não há, que eu saiba, nenhuma deusa da água. E a estatueta nada tem a ver com a rapariga ossuda que sou.


O ponto, porém, é que tal como eu fui encantada pela adulação simpática, no meio de uma ilhota desconhecida, que pouco mais oferece do que bom sumo de kitron fresco, muitos outros também terão sido. Mais que seminários e campanhas, parece-me necessário espírito. Vender um local é (re)inventá-lo. E fazer, sobretudo, com que cada visitante se sinta digno do Olimpo. Eu própria paguei 50 euros para me ter como deusa na minha sala de estar. 


Monday, July 27, 2009

Umas Crónicas Mais Femininas SFF

Eis o cenário: uma publicação decide ter uma secção feminina e monitoriza mulheres para lá escreverem. Erro crasso, quanto a mim, pois todos sabemos que se há algo que interessa às mulheres é saber o que pensam os homens e teria sido muito mais inteligente ter posto homens a escrever para mulheres. “Vê se escreves umas crónicas mais femininas, sff. Coisas que interessem às mulheres: casa, moda…Ou até literatura. Emancipação das mulheres também está in. Mas num estilo suave” diz-me o editor.


Fui investigar sobre o que seria essa peregrina ideia, “assuntos exclusivos de mulheres”. Rebusquei algumas teorias muito enraizadas na nossa cultura dita popular, determinada a defender o meu género e a acabar com essas parvoíces.


Teoria 1: Mulher é igual a coscuvilheira. Eu, contrariamente, sou demasiado reservada. No entanto, o mund(inho) é feito pelos exemplos de personagens conhecidas e não por anónimas como eu. Procurei entre as famosas líderes de hoje em dia (de quem ninguém se lembrará daqui a cinquenta anos, mas adiante…)
Por exemplo, a chanceler alemã Angela Merkel que acaba de dizer ao Financial Times que não aceitou entrar para a Polícia Secreta na sua juventude porque “Impunham a condição de manter a boca fechada”. Felizmente, abriu-se-lhe o risonho futuro da política, onde fechar a boquinha não é sine qua non e para alguns tem até ajudado, olhai a Angela… Logo, tive de me dar por vencida e pôr esta teoria de parte, com elegância.


Teoria 2: Mulheres não percebem nada de Economia. Eu, confesso, não percebo. Fui à lista de laureadas com o Prémio Nobel. Jamais uma mulher foi laureada com o Nobel da Economia. 12 obtiveram o Nobel da Paz; 11 o da Literatura; 8 o da Medicina; 3 o da Química e 2 o da Física, sendo que a espantosa Marie Curie foi a única a ter dois Nobel, e os menos concorridos pelas senhoras, em dois anos diferentes (1903 e 1911), numa altura em que a Ciência dura era território unicamente masculino. Mas se formos à procura da sua bibliografia, ela aparece sempre como “esposa de Pierre Curie”. Parabéns, Pierre. Duvido que alguém saiba o nome da mulher do Einstein…


Temos, portanto, uma imagem da mulher como ser conciliador, dado às letras (a arte é metafísica, como sabemos), e sanadora – oh, não há imagem mais calmante nem mais maternal do que a de uma enfermeira ou a de uma mamã cuidando de um bebé doente. Agora mulheres que sejam capazes de prémios por bem lidarem com questões financeiras? Nem pensar, isso é coisa de homens! Serei só eu a pensar que há fortes arquétipos por detrás do Nobel?


Teoria 3: Mulheres bem sucedidas no mundo de hoje são giras. Quase nem ia investigar esta ao lembrar-me da Sra. Ferreira Leite. Mas depois lembrei-me que não sei se lhe posso chamar “bem sucedida” e decidi continuar… Tive conversas profundas (tanto quanto ela conseguia) com a Barbie do escritório – em cada lugar há uma, elas estão aí. Pois, não quer dizer que sejam giras, mas lá que são high maintenance, são: quilos de make-up e o tamanho das unhas só ultrapassado pela agulha dos saltos. A nossa Barbie, blond como só ela, disse-me coisas bem acertadas dentro do seu género: que um executivo só precisa de parecer sério mas uma executiva precisa de parecer séria e sexy, o que não é nada fácil. Isto porque uma mulher apelativa tem muito mais hipóteses de fazer valer o seu ponto de vista. Toma lá, Cook, “e vai cortar a franja, não se te vêem os olhos”. Reparem que ela disse “apelativa”, não disse “atraente”, portanto ser bonita não tem a ver para o caso, mas parecer é crucial. Para quem quer isso da vida, claro.


Então e o meu artigo feminino? Cumpri. Começava com uma frase da Margaret Thatcher, uma senhora antipática, que bem merece o cognome de ferro, mas a frase era a propósito: “To be a Leader is just like being a Lady: if you have to remind people that you are one it’s because you are not.”


Boca Cheia Não Reclama

No dia 2 de Julho, vim num daqueles voos co-shared entre as nossas companhias (pois é escusado dizer quais se não temos mais nenhumas) entre Lisboa e a Horta. Estava o aeroporto numa enorme confusão, pois bem sei que era o voo da manhãzinha, está tudo vesgo de sono, mas isso não justificava tanta agressividade latente e uma fila que dava a volta ao terminal 2 (sabem qual é, aquele que prova que o aeroporto da nossa capital não é de terminal único). Apesar da má disposição geral, muita gente me ofereceu o seu lugar na (monstruosa) fila, dado que eu carregava um bebé que não sabe andar. Recusei. Não por orgulho mas porque só aceito quando realmente estou desesperada de cansaço – quando estava grávida também nunca aproveitei essas benesses e há poucas coisas que detesto tanto como aquelas velhinhas que dizem “ah, menina, não se importa que eu passe?” quando eu estou ali à espera há meia hora e elas acabaram de chegar há dois minutos (quando eu for velha, espetem-me este artigo, sff).


Muito me arrependi de ter recusado, pois quando chego ao check-in, a senhora diz-me que não há lugares no avião. Como não? Eu estou confirmada, jamais estive em lista de espera, paguei bilhete, e tudo o mais. Ela, muito atrapalhada, diz-me que há passageiros a mais e avião a menos.


Como já tive todo o tipo de situações – de malas roubadas e devolvidas sem o conteúdo a voos de ligação cancelados, fazendo perder o voo principal e nada de reembolsos, etc, etc - que já deram origem às minhas cartas de reclamação, sempre respondidas com uma carta tipo que começa com “Lamentamos o sucedido…”, não fiquei lá muito surpreendida com este overbooking. Fiz só um levantar da sobrancelha e um tamborilar dos dedos, enquanto perguntava “E então?” 


Mas a senhora, muito simpática (e claramente stressada, revolvendo os meus bilhetes) disse-me que não havia problema algum, pois dado que eu tinha um “infant”, tinha prioridade máxima e que ela havia de me meter no avião, não importa como. Agradeci e já me estava a ver qual pequena sentada no joelho do comandante, mais bebé acoplado na parte ventral. Giro, mas incómodo para quem não ama de paixão aviões nem tem particular amor por fardas. E talvez o Sr. Comandante não se sentisse à vontade com um bebé resmungando de sono no cockpit.


Então, fizeram-me um upgrade para executiva (a mim, que sou uma mulher muitíssimo económica). Fui, dardejada pelos olhares maldispostos dos outros passageiros, muito compreensivelmente. Oh, quantas mulheres não desejaram ser mães de infantes naquela altura para poderem ir para casa a tempo e horas! Oh, quantas sofreriam de bom grado os desconfortos de viajar junto dos senhores executivos, sempre tão descoloridos dentro dos seus fatinhos arrumadinhos, que odeiam bebezinhos.


Já dentro do avião, descobri o segredo do overbooking, se assim se pode dizer… Depois do desvio do avião anterior Lisboa-Horta para a Terceira devido ao mau tempo, tinha sido decidido mandar os passageiros de volta para Lisboa ao invés de os encaminhar para a Horta- uma decisão sábia e ambientalista, que poupa muito combustível num mundo em que recordo ouvir dizer há bem pouco tempo que os transportes eram a próxima grande aposta para reduzir a pegada ecológica… Pois.
Então, os passageiros desse voo estavam agora enfiados no “meu” voo e portanto eis um voo duplo num só avião que rebentava pelas suas costuras metálicas.


A tripulação de bordo, que estava a ouvir – tal como eu – esta história só dizia que isto era incrível e que as coisas iam de mal a pior e de pior a chocante. Convém aqui dizer que as tripulações e as pessoas que nos atendem nos aeroportos não têm culpa das decisões superiores… menos ortodoxas. Embora sejam eles a levar com as nossas “trombas” e, ocasionalmente, com algum vomitado infantil (também ajuda à reclamação).
Quando desembarquei e contei este pequeno acontecimento, comentaram “Oh, mas que sorte tiveste! Afinal, à conta disto, até vieste em executiva! Comeste bem, descansaste melhor, terias um berço para o bebé se quisesses… Portanto, não te queixes!”


Claro que me queixo. Queixo-me do péssimo serviço que se anda a prestar às pessoas, independentemente de eu ter saído beneficiada. Porque muitos outros cidadãos, menos afortunados do que eu, não o foram. E nem sempre eu estarei a cantar vitória. As pessoas facilmente se esquecem da sua transitoriedade – nem sempre estarão na mó de cima… - e, o que é mais, da solidariedade. Portanto, aqui fica o meu protesto assinado ao invés de ser murmurado pelos corredores. Lamento muito se dói a alguém mas boca cheia também reclama quando a boca do vizinho não comeu.


Friday, June 12, 2009

Europa Por um Canudo

Há vários anos atrás, ganhei uma bolsa para estudar em Amsterdam. Viver é escolher, portanto fui. Como todos sabemos, não é preciso saber neerlandês para sobreviver ali (graças aos Céus, pois poucas línguas são tão antipáticas à garganta, com perdão aos holandeses que me estão a ler e eu sei que os há), dado que metade da população de Amsterdam é composta por estrangeiros. Realmente, na Universiteit havia de italianos a japoneses, passando por húngaros, russos, indonésios, polacos, britânicos, o que a gente quisesse tirar do menú… e até encontrei na minha turma uma portuguesa, “mas não açoriana, eu já sou mesmo da Europa”, como ela fez questão de me dizer. O ridículo deste acrescento ainda hoje me vem à memória quando ouço e leio algumas picardias. Mas já lá vamos…


De facto, a minha colega portuguesa foi a única com quem não fiz Amizade. Daquela Amizade a sério, com direito a partilha de confidências e de abraços. Não me considero com menos mística nacional do que os demais portugueses nem estava com sede de estrangeirismos sob que forma fossem (até porque vivia no meu país com um estrangeiro e não falávamos português em casa…), mas incomodou-me sempre um certo espírito de bairro que nela era muito patente. Sim, o amor à nossa vila ou cidade é muito bom e até muito desejável, mas não quando nos venda os olhos à universalidade do sentir e do pensar. Antes deve essa paixão primeira ser a base que sustenta o amor pelo mundo em toda a concepção humanista.


Esta reflexão vem a propósito de alguns artigos de opinião que tenho lido sobre as eleições Europeias. Jamais me pronunciei sobre política e continuarei a não o fazer, simplesmente porque há tantas coisas interessantes neste(s) mundo(s) que essa nunca chega a ocupar a minha lista – já para falar no facto de ser o primeiro assunto da lista de quase todos os meus colegas cronistas, o que tornaria este espaço redundante e francamente anacrónico. Portanto, acalmem-se os que pensam que vou aqui descascar essa banana… O caso é outro.


Como pessoa (a palavra cidadã anda muito desgastada, que diriam os gregos se vissem o uso que lhe deram?), perturba-me e desgosta-me que tanta gente se distraia com o local de nascimento dos candidatos açorianos ao Parlamento Europeu. Porque é que se hão-de escrever crónicas, de olhos postos na Europa, defendendo os interesses “da nossa terra” mas reduzindo a nossa terra à nossa rua? Para quê a preocupação com o facto de uma candidata ser de S. Miguel e de outro candidato ser do Faial, mas “ser deputado por S. Miguel”, atenção! Parece-me deplorável ter em linha de conta a naturalidade de alguém para ajuizar da sua competência e/ou carácter, sendo ademais certo que a naturalidade é algo, hoje, muito volúvel e nada de fielmente correcto (o meu filho, por exemplo, é natural da Horta segundo o seu registo de nascimento e é vox populi que nasceu em Ponta Delgada).


Não há paciência para esta guerrilha ilhoa. Mas muito menos há paciência para uma questão tão mesquinha e para um pensamento tão pequenino quando estes analistas de pacote se predispõem a fazer estas reflexões tendo em vista a nossa representação na Europa - um bocadinho maior que a rua deles e portanto merecendo um pensamento mais largo…


É até de tremer pensar que estes senhores e senhoras  analistas  e comentadores cheios de profundo disparate verboso, que, como dizia um antigo colega meu, “dizem asneiras com grande distinção” não são apenas cidadãos (o que já seria dizer muito!). Não. Estes senhores têm esperança de deixar o empedrado recente da sua rua e vir a ser “mais qualquer coisinha”, muito embora as suas plataformas de diálogo não se abram à defesa do que é ser humano, mas sim do que é ser da sua equipa; vêem uma árvore, ignoram a floresta.


Antes mil  escritores maus do que um crítico de literatura frustrado…

Friday, May 29, 2009

Longa Vida aos Sapatos do Morto


Na terra da minha avó, dizia-se que era de muito mau agouro enterrar um homem descalço. Perdem-se no tempo as origens desta superstição – seria ele mal recebido no Céu caso aparecesse sem botas? Certo é que se fazia mesmo o possível por enterrar as pessoas bem calçadas, com sapato engraxado e atacadores novos.
Ora quando morreu o Zé Latas levantou-se um problema muito sério. O Zé Latas era o vagabundo oficial da terra. Isto não é de espantar, toda a terra pequenina tem o seu, um pobre coitado que caíra em desgraça há já muitos anos e nunca mais se conseguira levantar. Talvez por falta de sapatos, quem sabe…


Fora de ironias, o Zé Latas vivia das esmolas de uns e de outros, vestia sempre os mesmos trapos e claro que sapatos não tinha. Também não tinha família, e, portanto, não se lhes podia ir pedir uma vestimenta condigna para enterrar o homem. Caixão arranjou-se, o Padre tomou conta do assunto. Deu-se então na terrinha uma onda de solidariedade pelo morto Zé Latas como nunca se vira pelo homem Zé Latas enquanto vivo – choveram camisas interiores e das outras, calças e casacos, peúgas novas em folha, houve mesmo quem desse um fato e uma gravata! E os sapatos, lustrosos, como devem ser, não ficaram atrás.


Acontece que o morto não colaborou. Era mesmo de esperar que o patife do Zé Latas, preguiçoso e bêbado, não quisesse fazer a sua parte… Pois por um não raro fenómeno nos mortos, o Zé Latas inchou. Aparentemente, e segundo o médico da terrinha “eram gases”. Credo, Sr. Dr., o homem não está morto? perguntavam as beatas. “Confirmo o Rigor Mortis. Mas os gases dentro do estômago e intestinos dos mortos, muitas vezes, acabam por sair e depois eles incham assim… Não se preocupem, o tipo não ressuscita!” dizia o médico, muito senhor da sua ciência em terra de cegos. Senhor, benzei-nos.


Morto mas muito mais gordo, não havia roupa que servisse ao Zé. E a caridade alheia que lhe dera um fato não dava dois para o bêbado maltrapilho oficial do vilarejo.


Felizmente, estava-se na altura em que começava a aparecer a mosca de Verão, quer-se dizer, a emigrantada, essa mosca um bocado mais gorda que aquilo que o Zé Latas estava. E logo sempre prontos a auxiliar os da sua terra, porque os viam muito pouco e estavam saudosos daquela miséria quentinha tão diferente do frio impessoal e endinheirado que tinham no dia a dia, disseram “Vamos vestir este morto, este pobre de Cristo!” E assim o fizeram.


No dia do enterro, toda a terrinha compareceu. O caixão estava aberto durante a missa para melhor se ver a roupa que calhava bem com o ar cheio e perfeito do morto, que nunca em vida parecera tão saudável. Tivera de ser uma roupa que lhe servisse, umas coisas americanas, largas, grandes. O Zé Latas estava de escuro e tivera de se vestir com roupa desportiva, mas tudo de marca boa! E cara. Mas o importante era nos pés balofos a ostentação de uns ténis, novos e sem um risco! O pé do morto muito virado para fora deixava mostrar na sola dos ténis, por debaixo da marca, em grandes letras, esta frase apropriada à ocasião:


“Nike - Long life tennis shoes”…


Monday, February 16, 2009

O Faial, uma Área Remota e Obama, um Muçulmano Perigoso

Decidi fazer algumas compras pela Internet, coisa que nunca faço. Parecia simples, vinham por um serviço postal rápido que garantia entrega em todo o lado. Era tão eficaz que, diariamente, eu fui recebendo um e-mail sobre a evolução do paradeiro da encomenda. Até que me telefonaram. Estava encravada.

“Sorry, ma’am (gosto muito quando me tratam por s’óra, é sempre um sinal de respeito à idade que faço por ter, e que até ao telefone se nota), we cannot deliver your package immediatly”.

Depois de eu ter perguntado porquê, o senhor explicou-me: “We just found out you live in a remote area”. E ainda me deu uma leve admoestação por eu não ter avisado a companhia postal que vivia num sítio obscuro e inacessível, segundo eles. Demoraram bastante tempo para o encontrar no mapa. Nalguns mapas, nem existia. De facto, telefonaram para ter a certeza que eu não estava a gozar com a companhia, dando um endereço phoney… (a tradução para isto em português não é tão boa, se eu digo “falso” falta aquele toque trocista que a palavra em “americano” tem).

Garanti que morava mesmo no fim do mundo e que era seguro entregar coisas cá - nem sequer serpentes temos, pelo menos das que são bichos. O homem diz-me que seria impossível adivinhar pelo meu nome que eu vivo onde Judas perdeu as botas: “Your name sounds decent.” Yeah, right. Se em vez de Carla Cook eu me chamasse, por exemplo, Ahorangi Waitakere (fantástico nome mahori) já seria legítimo esperar coisas terríveis do meu habitat, e de mim apenas o pior.


E por causa de nomes, agora toda a gente é fã do Obama. É quase tão “in” e tão nova-vaga ser fã do Obama como gostar de jazz e usar óculos escuros à noite. Oh sim, eu sempre detestei o povo americano sobre a administração Bush mas agora que o Obama é presidente reconheço que a América é uma nação extraordinária. Esperam-se grandes coisas. Um povo é seguramente o seu Presidente em qualquer situação. De facto, os portugueses são, e sempre foram desde as eleições presidenciais, a cara chapada e os ideais do Cavaco Silva. Eu, ao tocar no meu nariz, sinto a ponta afilada do nariz acavacado por baixo. É mais ou menos o que sentem os americanos, revendo-se nos lábios grossos do Obama (e antes, claro, reviam-se nos olhinhos pequeninos do Bush). Fielmente.

Paradoxalmente, toda a gente é contra os muçulmanos. Sim, o D. José Policarpo teve razão. Raparigas portuguesas, afastai-vos dos muçulmanos. De todo o rapaz muçulmano que a gente encontre, ainda que giro e quiçá outras coisas mais, só pode vir chatice final. Lembrai-vos da pancadaria que podeis apanhar e que em casas cristãs nunca se apanha, como sabeis. Lembrai-vos dessas relações castradoras que não as há com mais nenhuma religião. Lembrai-vos das regulações de poder paternal que são tão difíceis com muçulmanos caso vocês se divorciem (oh, hora abençoada) e tão suaves e fáceis com cristãos, muito embora de um cristão jamais vocês se devam divorciar, portanto, caso seja difícil, lembrai-vos que esse calvário é a paga pelo pecado da separação.



No entanto (e aqui reside o paradoxo da febre actual), Obama é de origem muçulmana - o seu pai era muçulmano (uso o verbo no passado porque o senhor já faleceu). De facto, Obama teve de vir a público dizer que não era praticante do Islão, o que é mais ou menos que eu dizer “Meus amigos, eu até acredito na Igreja Católica, mas não me condenem por isso, porque nunca vou à missa, ok?”. Os seus Serviços emitiram um desmentido de rumores sobre a sua prática dos preceitos religiosos islâmicos (que não incluem nada sobre as suas crenças, very smart, até porque ninguém tem nada a ver com isso) e explicaram que o seu nome é islâmico, sim senhor, e é tão só igual ao nome do seu pai, Barack Hussein Obama Jr., significando “o abençoado” (Barack) e “bom” e/ou “bonito” (Hussein). Quem diria que este segundo nome sofreria tal transformação aos olhos ocidentais, hã? Ainda há pouco, Hussein era nome de mass-killer e qualquer Hussein nos EUA era logo encostado à parede. Há coisas fantásticas, não há? Mas sobre isto também foi explicado que “Hussein é um nome comum” nessas terras inóspitas, obscuras e remotas de onde veio o pai do Sr. Presidente. Apenas se esqueceram de explicar que, segundo os preceitos e leis muçulmanas, filho de pai muçulmano é muçulmano (tal como filho de mãe judia é judeu)…

Mais risível ainda é ver os intelectuais portugueses (or so they like to be called) a vociferar contra as pessoas de sangue muçulmano - outra ridicularia, como se o sangue legitimasse ou não bondade - e a apoiar Obama.


Toda a guerra étnica, religiosa ou territorial consiste neste obtuso pensar que apenas e só o nosso povo é abençoado e os outros – ditos estrangeiros – são todos feios, porcos, maus e perigosos. Claro que a ignorância sobre o outro tem um papel predominante nesta linha de pensamento, mas não me alongo mais… Afinal, eu sou daqueles que nem aparece no mapa!

Thursday, January 15, 2009

Indizíveis Sobre a Vinda de um Menino

Enquanto temos os nossos pequeninos do tamanho de uma couve, todas as senhoras se recordam de como foi bom estarem grávidas e verem os filhos recém-nascidos. Mal comparado, é um bocado como ser jovem – todos nos dizem “Ah, como eu adorei passar por essa fase da vida! Passa tão rápido! Goza bem, que depois queres é voltar atrás!” 


É deixado a cada uma descobrir os tormentos inerentes à condição; é por isso que se inventaram tantos mitos absurdos à volta da gravidez e do pós-parto, sendo que as espertas das mulheres também se aproveitaram e construíram outros tantos, como a célebre ideia, muito divulgada, de que é necessário satisfazer os “desejos” da grávida. Por mim, nunca senti nenhuns, aparte aqueles que sinto sempre, porque de caprichos ocasionais todo o ser humano está cheio, esteja grávida ou não.


De qualquer forma, a mais importante questão é que nem tudo é celestial. A parte do inferno – e não querendo abusar da paráfrase do Sartre – são os outros. Explico melhor.


Durante a nossa maternidade em estágio (vulgo, gravidez), todas as mulheres nos contam como foi a sua gravidez e parto. Pormenorizadamente, fiquei a conhecer tudo, desde ventosas a forcéps, partos em que os bebés saem de nádegas a cesarianas, e pude estimar que muito pouca gente considera ter feito um parto normal. Mesmo aquelas que clinicamente o registam, acham sempre que o seu parto foi certamente anormal (ou na dor ou no tempo), o que até é correcto porque cada caso é único.


Também fiquei a par de todas as maleitas e desgraças que me haviam de acontecer. É curioso que antes de engravidar, todas nos encorajem a tal; depois de engravidarmos, dão-nos as más novas sobre a condição – passam a ser nove meses de vómito, varizes e horror o que nos espera e, por fim, a sentença de que “nunca mais voltarás a ser igual!” Pois, futuras mamãs, o bom é dizer sempre que sim, de rosto compungido, a toda a gente, ainda que nunca soframos de males semelhantes. É que as pessoas não o fazem por mal, mas por decalque da sua experiência ou por aquele gozo tão miseravelmente humano de observar uma aflição alheia.


Se pensam que o vosso rol de penas acabou quando dão à luz, estão muito enganadinhas. Ainda agora vai no adro. Saltando elegantemente por cima do parto (que no meu caso foi cesariana e, portanto, não é tão elegante como isso...), começa desde logo mais uma dança, e esta um pouco pior. Primeiro, o médico diz-nos para fazermos a nossa “vida normal”, excepto rir, chorar, discutir, espirrar, tossir, fazer força, levantar e deitar sem ajuda ou “qualquer outra coisa que envolva os músculos da zona afectada”. Desconfio que não sou a única pessoa que acha que a primeira parte da frase não faz sentido algum, dado que no quotidiano faz-se disso tudo abundantemente. Além disso, ninguém no Hospital respondeu à minha dúvida premente: o que aconteceria se eu, com os meus 18 agrafos prendendo a sutura, passasse perto de um íman? Nunca como agora tive tanto sonho desagradável de índole magnética.


Segundo, toda a gente pensa que sabe tratar melhor do bebé do que nós próprias. Quem inventou os telemóveis? Éramos bem mais felizes sem eles, digo eu. A seguir à chamada da bem intencionada tia dizendo que se deve deitar o bebé sempre de costas para baixo, segue-se o telefonema da experiente amiga recomendando que se deite o bebé sempre, mas sempre de lado e não é de desprezar a simpática opinião de uma ex-namorada do pai da criança que jura que muitos bebés morrem de morte súbita se não forem deitadinhos de costas. Caras mães, há duas hipóteses: podem sempre chocar as pessoas, revelando o vosso enigmático passado e dizendo do filho que tiveram naqueles anos em que andavam a fazer trabalho voluntário na Índia (afinal, nunca ninguém conhece a nossa vida tão bem como presume, não é?) ou podem aceitar, sorridentes, as palavras de todos e fazer o que bem entenderem (hipótese mais jeitosa para quem gosta de ser low profile).


Este corropio de conselhos começa logo na Maternidade. Por exemplo, o aconselhamento à amamentação. Acho muito bem, atenção. O que acho mal são as palavras escolhidas. A nós (mães do quarto triplo onde estava) disseram-nos: “Têm de aprender a usar o vosso corpo”. Convenhamos que não é a frase mais adequada. Toda a mulher deitada naquelas caminhas usou o corpo, de certeza, ou não se encontraria na presente condição. De facto, do que não queremos ouvir falar no momento é de voltar a usá-lo resultando no mesmo fim.


Depois, há os “invasores”. Às visitas de sala, convém notificar que estamos em muita má condição para sermos anfitriãs (lembram-se da tal vida normal à qual estamos limitadas?) Há também os que atacam o bebé, que estava tão tranquilo na sua sorna, e agora acorda num berreiro derivado das beijocas. Depressa percebi que não era a única mãe cansada das multidões, quando com um telefonema a minha colega de quarto despachou 16 sobrinhos, “pelo menos até chegar a casa, e então logo se vê como lido com eles”.


Finalmente, há o momento das comparações: o recém-nascido de dois kg tem o nariz do pai, a boca da mãe, as orelhas e o dedo mindinho curvado do tio Alfredo e uns suspeitos olhos cinzentos que angustiam e deixam cheios de incertezas os conhecidos da família. Serão verdes como os da avó? Escuros como os da mãe? Violeta como os da Elizabeth Taylor? Conclusão: nem quando nascemos, temos direito a ser nós próprios. Sim, mesmo “aquela maneira de chorar” é tal qual a do primo!


Há duas coisas nas quais passei a acreditar: primeiro que criar um bebé é como a História do Velho, do Rapaz e do Burro – toda a gente tem uma opinião diferente daquilo que estamos a fazer independentemente do que seja e, o que é mais, toda a gente se julga no direito de a verbalizar; depois que a depressão pós-parto afinal não existe: nenhuma mãe está deprimida consigo, por mais esburacada ou dorida que esteja porque não há tempo, com tanto trabalho extra e, sobretudo, com tanta fúria pós-natal.


De qualquer modo, toda a mãe se esquece rapidamente de si se pensar que o bebé está a passar pela maior revolução que passa um ser humano – ainda agora vivia no quente e de repente foi atirado para um mundo de estímulos bons e maus, aos quais tem de responder, a toda a hora, sem ensaio nem escolha. Ainda bem que nenhum de nós guarda memória disso…