... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, December 31, 2020

A moda e a pandemia

Este foi um ano como nenhum outro. Fronteiras fechadas, aviões parados, limites nas estradas, concelhos e cidades. Abraços proibidos, beijos nem pensar e apertos de mão só de luva, máscaras a tapar o rosto de todos neste mundo, tornando completamente obsoleto o debate que ainda há pouco tínhamos sobre se era adequado, digno ou civilizado tapar a cara com burka. Prateleiras de supermercado vazias e faltas de papel higiénico – esse bem essencial, que nos recordou certo regresso ao minimalismo quanto ao que realmente importa neste mundo. Proibição de ajuntamentos de pessoas e mesmo de receber pessoas em casa ou de ir visitar os familiares. Escolas fechadas. Escritórios sem ninguém, e tudo a trabalhar à distância. Pessoas com medo de espirrar, não fosse alguém pensar que sofrem da “doença”. Outras sofrendo, mas da mente, porque a falta de liberdade e o confinamento não combinam com certos temperamentos livres.

Algumas indústrias sofreram muito este ano devido à pandemia, nomeadamente o turismo e a educação superior, com turistas e alunos a desistirem de embarcar em mais uma viagem ou curso. Não confundir aqui turistas com alunos. A minha frase, gramaticalmente ambígua, não pretende equiparar uns e outros, embora haja alunos que turistem pela Universidade tal como há turistas que aprendem muito nas viagens.

Outra indústria que sofreu muito com a Covid-19 foi o sector da moda. Quando a grande recomendação (ou mesmo lei!) é ficar fechado em casa, não há motivação para roupas, acessórios, cabeleireiro, unhas e maquilhagem. Por mais que digam que nós nos arranjamos para nos sentirmos bem connosco mesmos, todos sabemos que o olhar do outro tem grande peso quanto às escolhas que fazemos relativamente à nossa apresentação. Mesmo quem escolhe ser original e diferente, fá-lo com a intenção que prevê o olhar de alguém, porque é impossível ser “contra a maré” se não houver “maré” na sociedade que nos observa.

Com o advento da Covid, a sociedade passou a observar o individuo através do ecrã do computador e isso de moda(s) tornou-se um fogo-fátuo, observável da cintura para cima (e ainda assim apenas e só quando se liga a câmara). Já não se trata do “Prêt à Porter” mas sim do “Prêt à se détendre”, isto é, passamos do Pronto a Vestir ao Pronto a Relaxar. E já nem falo de subculturas como a Alta Costura (coitada!), ou a Streetwear (necessariamente morta e enterrada devido ao próprio nome). Apenas o minimalismo e o lounge wear imperam. É a moda do tipo que se levanta da cama e segue para o sofá onde mete o computador em cima dos joelhos, para no fim do dia se levantar do sofá e ir deitar-se na cama, ostentando sempre o mesmo pijama de flanela aos quadrados, mais sujinho à noite, com marcas de molho bolonhesa do esparguete de lata consumido em frente à TV.

Para quem sai de casa, existe a moda das máscaras decoradas -algo absolutamente contra-producente a nível de saúde. A máscara, que devia ser de usar e deitar fora, por razões mais do que óbvias, passa a ser de usar para olhar, admirar, cobiçar, invejar. Nem o vírus resiste a tocar-lhe, tao bonita que é.

Para quem tem reuniões de trabalho e aulas online, é imprescindível aparecer vestido com certo primor da cintura para cima. Mas não muito porque demasiado dá ar de quem vai sair e eventualmente fazer algo ilegal como sair dos limites do concelho. Da cintura para baixo, o normal é estar de cuecas velhas e de pantufas, secretamente gozando o prazer de estar tão desleixado em frente ao patrão ou ao professor (que goza do mesmo secreto gosto, enfim, um prazer não declarado que a todos une na mesma conversa online). Junta-se aquela canecazinha de chá ou de café sempre ali ao lado, para além do desinfetante com álcool porque nunca se sabe…

Há ainda outro momento extremamente deprimente que são os encontros amorosos virtuais, onde já ninguém tem paciência para as lingeries e o look acaba mesmo por ser aquela t-shirt branca velha, com que se dorme e se limpa a casa no dia a seguir.

Maquilhagem é coisa que já não se usa. Não é necessária, quando estão disponíveis tantos filtros nas apps virtuais, filtros que fazem a cara mais olheirada e descompensada tornar-se uma estrela de Hollywood em três segundos.

Esta moda Covidwear convida ainda todos a experimentar o plus-size porque comemos mas não nos mexemos o suficiente.

Enfim, um ano deprimente para a moda. Quem não é visto não é apreciado.

 

Friday, December 18, 2020

O azar de Ihor Homeniuk

Portugal está escandalizado com o assassinato de Ihor Homeniuk. De repente, o cidadão comum acordou para algumas realidades que o Zé Povo não gosta de admitir porque são o oposto dos arquétipos que passamos a vida a repetir: não somos de brandos costumes, e nem tão pouco deixámos para trás modos de agir que vêm desde os tempos da Ditadura, que jamais caíram e antes continuam a fazer parte do modus operandi das instituições governamentais e judiciais, instituições essas que se protegem entre si e bem assim aos seus membros.

Não reconstituo aqui a história, que qualquer um pode pesquisar. Apenas levanto algumas pendências que ficaram a tinir-me nos ouvidos.

1.O cidadão chega a Lisboa com visto de turismo. Não conseguiu explicar onde ficaria. Os inspectores do SEF suspeitaram de uma situação irregular (não está explícito, mas qualquer um percebe que suspeitaram que Ihor iria trabalhar ilegalmente sem visto para tal). Como tal, determinaram que Ihor ficasse detido no aeroporto até ter um vôo para a Turquia. Porém, é importante ressalvar que Ihor tinha um visto de turismo. Um ucraniano pode ficar em Portugal 90 dias com este tipo de visto. É necessário que os inspectores expliquem que fortes suspeitas os levaram a recusar a um turista (para todos os efeitos, um turista) a entrada em Portugal. Em boa letra de lei, há que assumir: foi assassinado um turista no centro de detenção do aeroporto por três inspectores. Não aconteceu a um inspector enraivecer-se; estavam ali três homens de autoridade em acção conjunta e continuada. A vítima não se tratava de um homem sem documentos ou sem permissão de entrada. Foi assassinado um turista por três agentes.

2.Diz a lei que o cidadão estrangeiro que enfrenta problemas judiciais ou de fronteira tem direito a um intérprete da sua língua, intérprete esse que deve ser um indivíduo imparcial. Eu mesma já fui intérprete em casos do género– trata-se de um serviço e não de “vem aqui dar uma ajuda”. Quem lida com os serviços de fronteira em Portugal - e no resto do mundo - sabe que há pouca flexibilidade linguística. Quantas vezes já vi darem grandes sermões a um estrangeiro em português quando o dito indivíduo nem “bom dia” sabe dizer. Do mesmo modo, noutros países, eu própria também já recebi grandes sermões noutras línguas depois de explicar que não sei falar. Inútil. O oficial de fronteira é um nacionalista do tempo da outra senhora e age de forma obsoleta. A “Europa sem fronteiras” ainda não lhe entrou no esquema, porque, para este oficial, “sem fronteiras” significa sem trabalho. No caso de Ihor, está noticiado que a “intérprete” foi uma inspectora do próprio SEF que fala russo. Ora, aqui há dois problemas: primeiro, obviamente que Ihor, sendo ucraniano, compreende e fala russo mas não era o seu idioma; segundo e mais importante, a intérprete nunca deveria ter sido uma inspectora do serviço que o interrogava, porque era “do lado do inimigo”, ou seja, a imparcialidade não existiu à partida. Mesmo que a dita senhora a tivesse, o interrogado deve ter-se sentido encurralado e não podia responder com autonomia.

3. As notícias dizem que Ihor foi espancado pelos inspectores e ficou a agonizar no centro de detenção durante horas. O centro de detenção é vigiado por seguranças que ali prestam serviço sendo pagos por uma empresa privada. Esta situação, por si só, é inenarrável pois que guardas privados não podem ter autoridade para presidir à vigilância e destino de detidos (que é o que são, na verdade, as pessoas que ficam fechadas ali pelo SEF). Assim, os guardas desta empresa  - que calhou estarem a vigiar o EECIT – decidiram não auxiliar Ihor, que agonizava, e até o manietaram o fita adesiva. Judicialmente, isto corresponde a quê? Colaboração criminal? Têm de ser responsabilizados. Por outro lado, fica a dúvida: em que qualidade podem estes indivíduos exercer as funções em que os colocaram ali, para seu azar?

4.Lendo o que até agora foi investigado sobre este crime, percebemos a história de sempre: o poder protege os poderosos. O relatório médico de “emergência” não diz a verdade e nem tão pouco a morte foi comunicada a tempo; o SEF encobriu o acontecimento, desde os “bons rapazes” até à sua direcção; a Inspecção Geral da Administração Interna fez o mesmo; o Ministro idem aspas; para que se começasse uma investigação foi necessária uma denúncia anónima, corroborada por um (finalmente corajoso) médico, que fez a autópsia do corpo. Ou seja, não fosse a comunicação social chocalhar e tudo dormiria o sono dos (in)justos.

No fundo, o governo português está cheio de sorte e Ihor teve muito azar nesta história. Porque se este cidadão não fosse ucraniano mas fosse russo, Portugal agora estava a roer as unhas e a borrar os fundilhos, porque teria de, diplomaticamente, dar conta a Vladimir Putin deste “acidente”. Talvez esta lamentável tragédia sirva para alguém abrir a pestana.

Thursday, December 3, 2020

Estoicismo Político

 Embora o Estoicismo seja uma filosofia e não uma ideologia política, muitos estóicos foram teorizadores políticos (Marco Aurélio, Cato, e até outros que, não sendo estóicos, tinham interesse no Estoicismo como Cícero). A parte central do Estoicismo tem a ver com o melhoramento do carácter do indivíduo. Talvez por isso uma tal filosofia não encontre grande eco na política hoje em dia. Porém, seria de grande utilidade. Basta lermos algumas das passagens dos nomes citados e pensar em como seria se a política actual as incorporasse.

Algumas virtudes são particularmente relevantes para os estóicos: a justiça – no sentido de atribuir a cada qual aquilo que merece; a coragem; a prudência e a moderação. Todas estas qualidades têm por objectivo atingir o “máximo da virtude” ou, em última análise, “o máximo de si mesmo”, já que o propósito do homem era ser o melhor de si. O homem que procura aperfeiçoar-se na sua melhor versão quer, certamente, também o melhor para os restantes seres ao seu redor, até porque “o que perturba a colmeia perturba a abelha” (Marco Aurélio). Esta interdependência é fundamental para que se entenda o summum bonum.

Não deve entender-se a colmeia apenas como a nossa rua, mas numa visão bem mais ampla da sociedade em que se insere o homem. Os estóicos são cosmopolitas, até porque acreditam que todos os seres humanos podem aceder ao Logos, isto é, à Razão universal que está de certo modo disponível a todos os que a procurem conhecer.

Dito assim, pode parecer que o estoicismo associado à política se reveste de academismo e pouca acção, mas nada está mais longe da verdade. O estoicismo não proclama a passividade, mas sim o movimento: “não expliques a tua filosofia; personifica-a” (Epicuro). Não é algo desenhado para sociedades que se imaginam perfeitas – um discurso que a política actual tornou “moda”, criando ElDorados tanto nos E.U.A. como na Canada do Vizinho-, mas sim para sociedades que necessitam de ser trabalhadas com vista a se tornarem melhores.

Para além disto, o estóico defende uma determinada postura pública que coloca as emoções de lado e que é mais uma característica que está a anos-luz do comportamento quase irracional, mesquinho e anti-diplomata da generalidade dos políticos actuais. Enfrentar o opositor, sem dúvida e sem receio, mas sempre com calma e racionalidade, rebatendo as suas ideias logicamente ao invés de entrar numa espiral de agressividade emocional e de frases sem sentido.

Escutar revela-se importante para poder rebater. Isto significar ouvir o que o outro disse ao invés de estar apenas a pensar em como vou esmagá-lo a seguir, atropelando a conversa sem sequer reparar que estou a contradizer(me) sem qualquer efeito racional, até porque “é melhor tropeçar com os pés do que com a língua” (Zeno). De igual modo, é de suma importância investigar as questões a fundo sem ficar agarrado a pré-julgamentos.

O estóico não é um ingénuo relativamente ao mundo, nem tão pouco quanto à política: “Viver parece-se mais com lutar do que com dançar. Espera ataques inesperados a todo o momento e prepara-te para a arte desse movimento.” (Marco Aurélio) O que o estóico defende, porém, é a própria arte dessa luta. Arte… e não uma batalha de lama.

Se os novos políticos não adoptarem uma postura diferente das antigas (direi, enraizadas) posturas, fica tudo na mesma. Faz lembrar aquela entrevista do fenomenal Jorge Jesus em que ele diz “É um grande jogador… grande não, é um big jogador… quero dizer… grande e big… acaba por ser a mesma coisa, não é?” É, Jorge. É. 

Thursday, November 19, 2020

O triângulo do Amor

 Será que o Amor é sempre um triângulo? De acordo com Robert J. Sternberg, professor emérito da Cornell University, sim. Sternberg não se refere a um triângulo amoroso, mas antes a uma teoria que o próprio criou sobre relações interpessoais e à qual chamou “a teoria triangular do Amor”. Entenda-se que o triângulo não deve ser rigorosamente entendido como figura geométrica, mas sim como metáfora.

Antes de mais, interessa dizer que Sternberg é professor de Desenvolvimento Humano. Isto importa porque o Amor, enquanto emoção, promove isso mesmo. É um bom teste para aquelas pessoas que dizem que não sabem se gostam de alguém. Se o seu sentimento tem a ver com limitação, vergonhas e culpas (tudo coisas contrárias à evolução), deve ter outro título que não Amor.

A teoria de Sternberg refere-se ao Amor por um parceiro e não a outros tipos de Amor. Segundo este famoso psicólogo, o Amor pode ser entendido em três componentes, formando estes os vértices de um triângulo. Cada um dos componentes manifesta um aspecto diferente do Amor e pode existir ou estar presente em maior ou menor grau. Estes são: a intimidade, a paixão e a decisão / compromisso.

Desmembrando cada um destes componentes, obtemos o seguinte. A intimidade tem a ver com proximidade, conexão e existência de laços numa relação; a paixão está ligada ao impulso que gera atracção física e sexual, romance, excitação e consumação; a decisão e compromisso tem uma componente a curto prazo e outra a longo prazo – primeiro a decisão de que se ama o outro e depois o compromisso de manter esse amor. Note-se que a decisão não leva necessariamente ao compromisso e, mais ainda, que o compromisso pode ter sido firmado sem que tenha havido a tal decisão.

Fácil é de reconhecer que estes três componentes do Amor interagem entre si: por exemplo, maior intimidade pode potenciar os restantes elementos; no entanto, dificilmente maior compromisso gera mais paixão. A importância que cada relação dá aos diferentes elementos é diversa e mesmo a importância que estes têm em cada relação pode modificar-se com o tempo.

O mais interessante é que Sternberg classifica tipos básicos de Amor de acordo com a interacção destes conceitos entre si. Assim, um simples gostar dá-se quando existe uma experiência de intimidade sem paixão e sem compromisso. Porém, aliando o compromisso à intimidade já obtemos uma relação de companheirismo. Quando se experiencia apenas a paixão sem intimidade e sem compromisso está-se, naturalmente, apaixonado. Já o amor romântico combina a paixão com a intimidade, mas falta-lhe o terceiro elemento. O chamado amor vazio contem apenas o elemento do compromisso, mas falta-lhe os outros dois: este amor nasce da decisão de que se ama alguém ou talvez apenas da vontade de ser comprometido com um amor, sem que nada mais esteja preenchido. Existe, também, o amor fátuo que resulta da união da paixão com o comprometimento, mas sem intimidade. Por fim, o amor completo junta os três elementos.

Naturalmente que tudo isto tem a ver com equilíbrio pois, como é fácil de visualizar, mesmo no amor completo, é possível haver triângulos equiláteros, isósceles, obtusos ou agudos conforme os graus que se imprimem a cada elemento. Além disso, os triângulos podem ser vivenciados na nossa realidade ou idealizados, conforme o que esperamos de cada relação, havendo depois uma comparação entre o ideal do nosso projecto e o real que acabou por se materializar.

Para quem tiver curiosidade, os livros de Sternberg sobre o assunto oferecem ainda cerca de mais trinta conceptualizações sobre o Amor, baseadas nas experiências científicas levadas a cabo pelo próprio. A título de exemplo: o amor como vício, como receita, como religião, como viagem, como teatro, como ciência, como morada, como salvação ou como jardim.

Teorias, é certo. Mas o ser humano é aquele bicho que sempre gostou de teorizar sobre si mesmo. Aliás, esse é, talvez, o seu maior passatempo.

Saturday, November 7, 2020

Mudança e Evolução

 Perto de onde vivo existe um templo onde está inscrito o seguinte: “Apenas uma coisa é constante na vida”. Virando a esquina, a inscrição na parede continua e revela-nos este paradoxo “Essa coisa é a mudança.”

Por muito difícil que seja aceitar esta realidade, o próprio Universo nos demonstra, através dos ciclos naturais das próprias estações, e também de vida, morte e renascimento, que nada nunca se mantém igual; antes tudo se transforma. A única certeza que podemos ter é a de que nada permanece.  

É, por conseguinte, inútil resistir à força da mudança, dado que esta é a situação motriz natural da vida. O ser humano, embora seja um produto da mesma cadeia vital e universal e sujeito às mesmas leis que tudo regem, tenta, muitas vezes, fazer força de atrito visto que lhe é difícil encarar a mudança. Os exemplos são variados: o Homem não encara bem a morte, tem dificuldade em envelhecer, desnorteia-se perante as passagens rítmicas da vida de um estádio ao outro (chamando crises à puberdade e à meia-idade) e, de um modo geral, vê como agruras e dificuldades quaisquer ameaças ao status quo. Raros são os seres humanos que encaram com naturalidade ou até com algum prazer as deslocações, transferências, modificações, variantes, e volte-faces no geral, por achar que isso provoca desencaixe, sensação de destruturação, ou até afastamento, estranhamento, perturbação. São coisas tão simples como mudar de casa ou transferir-se de um emprego ou uma escola; ou algo mais sério como mudar de país ou de família. Sim, existem os seres que não só anseiam a mudança como são os criadores da mesma. São os impulsos de génio desta vida. Mas essas chamas criativas não nascem todos os dias – sendo, além do mais, vistos como rebeldes pela sua geração porque vivem no futuro, pensamento, acção e sentimento muito à frente e muito mais rápido; como dizia Lispector, “vivendo várias vidas numa só”.

A nível social, podem mudar os governos ou os macro-sistemas. Analisando a situação de resistência à mudança de um ponto de vista socio-cultural, verificamos que Portugal se encontra numa posição extremamente demonstrativa do quão resistente é a sua sociedade à mudança. No modelo da bússola cultural de Hofstede (cujo centro de Estudos Culturais está na Finlândia), é dos países que menos se abre à mudança obtendo 99% em 100 na escala de relutância à novidade, encarando-a com estranheza e desconfiança. Isto explica o porquê de sermos tão agarrados às ideias, às pessoas, ao que temos, por receio do que possa vir. De igual forma, explica provérbios tais como “Antes diabo conhecido do que bem desconhecido” ou “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar”. Em suma: preferimos mais do mesmo ainda que estejamos mal do que arriscar no imprevisto que pode vir a resultar bem.

Até agora, expressei que a mudança é inevitável, sendo uma das forças chave da Natureza e que, apesar disso, o ser humano e, mais concretamente, o português é muitíssimo resistente à mudança, preferindo não a viver e fazendo de tudo para conservar o que já existe ad aeternum. Tal contradição mais não faz que provocar dor nos sujeitos porque resistir ao inevitável é tão inútil quanto penoso.

Porém, é necessária muita cautela. Quanto falamos de mudança convém sinalizar que, segundo as leis universais, existem dois tipos de mudanças: a mudança cíclica e a mudança evolutiva. Isto significa que nem toda a mudança traz, necessariamente, evolução e, por conseguinte, positividade, já que o sentido da vida é, em última análise, crescimento e ascensão.

A mudança cíclica, como o nome indica, não passa de um retomar de ciclos uns a seguir aos outros. Repare-se como as estações são prova disto mesmo, ou seja, todos os anos se repete a Primavera e assim sucessivamente, voltando todas elas a ter o seu lugar, de forma mais ou menos fulgurante a cada volta, atrás de tempo mais tempo vem. Estes ciclos têm um nobre propósito de nos confirmar que a roda continua… porém, não conduzem a progresso.

A mudança evolutiva tem muito de perspectiva darwiniana, ou seja, implica mudança através dos tempos com um propósito definido, sendo este um objectivo de modificação pois que o mundo assim o exige. A esta mudança subjaz uma noção de aperfeiçoamento e, como tal, de fortalecimento, progresso e elevação. Esta é a real mudança que merece ser realizada.

 

Thursday, October 8, 2020

Mindfulness e coisas assim

 

De todas as palavras estrangeiras que ultimamente entraram no vocabulário português para serem usadas de forma corrente, a mais complicadinha é “mindfulness”. Algumas instituições atribuem a “mindfulness” a qualidade de ser um “soft skill” - mais um momento anglófono, com perdão de todos os que me lêem e não estão virados para a anglofonia… ainda que hoje tenhamos de admitir que não ser versado em inglês língua-franca seja quase como não saber escrever.

Então, o que é essa coisa do mindfulness? Etimologicamente, e por divisão da palavra, o vocábulo indica a plenitude da mente, isto é “mind” e “fulness”. Porém, a parte da plenitude tem muito que se lhe diga até porque “full” é o mesmo que estar “cheio de” enquanto que, em boa verdade, o conceito de mindfulness implica exactamente um certo despojamento e uma libertação do desnecessário, razões pela qual não coincide com uma superlotação espessa e carregada mas antes aponta para uma abundância leve e relaxada. Abundância leve, porém, é um paradoxo e é por isso que mindfulness nem sempre é fácil de perceber.

Nos últimos anos, é cada vez mais comum encontrarmos terapias que recomendam mindfulness para combater stress, ansiedade, depressão e outras maleitas, particularmente relacionadas ao combate a vícios. A ideia é fazer meditação e. através desta, praticar o estado da mindfulness. De tais conselhos, entende-se que mindfulness é um momento circunstancial, e – por isso mesmo – é algo efémero e não um patamar que, sendo atingido, fica preenchido e pronto. Quando se levam práticas meditativas a sério, é necessária entrega e tempo. Estas dádivas são das mais difíceis porque tempo é sinónimo de vida e, como tal, é o que ninguém tem a desperdiçar; entrega é dar de si, algo bem difícil quando muitas vezes o indivíduo nem sabe quem é e, portanto, é complicado dar seja o que for.

Para além disto, é importante aceitar que não há forma de aquietar a mente e fazê-la não pensar em nada. O popularismo do “esvaziar a mente” que é dito em muitos vídeos e por muitos gurus caseiros é falso. Um ser humano naturalmente saudável é curioso e de mente irrequieta. Se alguém a esvazia e não pensa em nada, talvez seja – por si só – um tipo com alguma tendência à abulia e, como tal, a precisar de energia. É natural que a mente vagueie por mil e um pensamentos. O importante e essencial é controlá-los, ao invés de deixar que nos controlem a nós – nisto reside a chave da temperança.

Mindfulness não aponta para um estado de plenitude nirvânica - aliás, o famoso “nirvana” enquanto objectivo budista ou hindu não é possível de alcançar por um humano no estado evolutivo desta dimensão. Mindfulness é antes a vivência devotada integralmente ao estado presente, sem qualquer outra ideia que não seja isso, nem as amarras do passado nem as expectativas do futuro. Mais ainda, implica a vivência do presente sem julgamentos sobre ele. Apenas estar.

Esta segunda parte é tanto mais importante quanto o “crítico” dentro da nossa mente é imparável e, em muitos casos, mordaz e até cruel, tanto com o mundo e os outros como connosco próprios. Só neste mesmo texto já critiquei várias coisas, inclusive a mim mesma (ainda que possam não dar por isso). Resumindo: a parte mais complexa é o “julgador” que habita dentro de cada um de nós, pois nada há de mais letal do que esse insaciável juiz. Desde já assumir que é impossível calá-lo mentalmente, tal como é impossível deixar de pensar. A única coisa que se pode fazer é escolher como reagir a estes pensamentos de constante tentação de desvio da paz interior.

A prática da meditação não tem de ser estática e pode envolver vários tipos de actividades, ainda que muita gente se sinta confortável com o foco na respiração por permitir a sensação de ancoragem suave tanto ao próprio corpo como ao momento presente. É assim como uma espécie de retorno seguro à fonte de vida.

Para terminar, quero ressalvar que não sou especialista em nada disto. Tão somente tenho vizinhos imensamente dedicados a estas actividades por inclinação religiosa espiritual e, não podendo eu resistir aos mantras e aos momentos constantes que observo, juntei-me a eles. Mas estou ainda longe de ter aquela calmaria que eles têm sempre… e que não é a da menina comercial, vestida com LuluLemon, que faz yoga porque é giro.

Thursday, September 24, 2020

Não me toques

 Até há pouco tempo, as pessoas “não me toques” eram escarnecidas e vistas como arrogantes, presumidas e afectadas. As crianças – esses génios da sinceridade trocista – faziam um verdadeiro pagode daqueles que, na escola, fugiam ao toque dos demais e apelidavam-nos com toda a sorte de nomes, bem pouco simpáticos. Os preocupados professores do ensino elementar chamavam a atenção dos pais dessas crianças anti-sociais, prevendo-lhes futuros funestos de solidão e problemas mentais embrionários.

Hoje, por força das circunstâncias, não só toda a gente adoptou o slogan de fuga ao toque, como somos mesmo forçados pelas autoridades a manter espaços de segurança de toda a gente, máscaras de protecção e até mesmo usar sprays e géis desinfectantes para quando acontece um contacto. Hoje, ser sociável não é apenas visto como loucura. É mesmo contra a lei.

O papel dos governos e dos media nesta revolução quase instantânea de posicionamento não tem muito que se lhe diga: tem tudo. Já começamos a discutir se o problema é o Covid 19 ou a atitude perante o mesmo, como diz Yuval Noah Harari que cedo alertou para a importância do bom senso na resposta a uma crise na esperança de que não deixássemos que a privacidade e a falta de liberdade fossem invadidas em nome da fiscalização ditatorial. O mesmo Yuval Noah Harari que é endeusado pelas suas obras sobre evolução da Humanidade é um homem que agora todos calam quando fala no estádio actual que o ser humano atravessa.

Entretanto, e porque o ser humano é natural e biologicamente gregário lá vai arranjando formas de ser social e afectuoso como pode, dentro das limitações contextuais. Nesta nova forma de relacionamento(s), a internet adquiriu grande importância – outros dirão que se a internet não existisse não poderia haver o tal controlo em grande escala, mas há sempre um reverso da medalha em tudo e, de qualquer forma, jamais se pode deter o progresso. A única coisa inevitável é a mudança; o que fazemos dela é connosco (isto dava outra crónica!). Nesta onda do afecto à distância, conhecer pessoas torna-se uma tarefa só recomendável com ecrã pelo meio. Conclusão: namorar passou a ser mais frio e distante e menos propício a beijos e amassos do que nos tempos em que a minha avó namorava à janela.

As pessoas solteiras (ou sozinhas) que antes encontravam parceiros em contextos forçosamente sociais, como sejam as pausas no trabalho, ginásios, cafés, bares, concertos, viagens, enfim, hoje estão quase impedidas destas situações (ou, pelo menos, controladas: não há muito romantismo em certos cenários destes usando uma máscara). Poderá acontecer esbarrar com alguém no supermercado ou ter um coup de foudre com o carteiro, mas é preciso uma grande sorte – e um carteiro excepcional. Portanto, a esmagadora maioria dos solitários agora opta por relações através da internet.

Se é verdade que existem aplicativos unicamente para encontrar parceiro (como o Tinder e outros que dependem até das escolhas sexuais de cada um), a verdade é que muita gente encontra parceiro em outros sites online que se parecem menos com uma lista de compras com humanos à disposição. Existem versões ainda mais estranhas, como o “Meet Me”, onde os pretendentes se dispõem a conhecer outro alguém em frente a uma plateia online que avalia se o primeiro encontro virtual deles está a correr bem – exibicionismo? Mistura entre relações pessoais e pressão social de gente que nem se conhece?

Há um sketch muito engraçado dos humoristas brasileiros “Porta dos Fundos” em que eles explicam que todo o aplicativo da internet não passa de uma forma de “engatar”, mesmo que seja um aplicativo para pedir comida. Para além disso, muitos há que conhecem pessoas através de jogos online (“gaming” é outra forma de conhecer gente… e não é pouco concorrida) ou então em fóruns do estilo Reddit, um caldeirão onde cabe tudo o que se possa imaginar, espécie de mercearia do Sr. João que vende pastilhas elásticas, arroz, meias, remédios e lápis. Mas com ar moderno.

É possível encontrar um parceiro na internet? É. É possível encontrar companhia em todo o lado. É possível ser ludibriado por alguém na internet? É, não faltam mentirosos. Além disso, é fácil deixarmo-nos levar pela imaginação e cairmos na ilusão do que gostaríamos que algo fosse, muito mais acentuada quando nunca vimos realmente esse algo, nunca tivemos oportunidade de verificar que cheira a suor e que tem hálito de cebola quando come hambúrguer completo. A minha opinião pessoal é que estou grata por não ter de passar por esse martírio internauta. Só espero que, na geração dos meus filhos, as pessoas possam dar uns valentes beijos à vontade. 

Friday, September 11, 2020

Não vás embora

 De acordo com a Organização Mundial de Saúde, cerca de 800 000 pessoas morrem por suicídio todos os anos. Isso significa que, a cada 40 segundos, há um ser humano que decide que morrer é melhor do que estar vivo. É importante frisar que estas estatísticas se referem aos casos de morte. Se juntarmos as tentativas de suicídio, os números sobem exponencialmente, sendo que para cada morte há cerca de 20 tentativas.

As estatísticas reduzem os seres humanos a um caldo de não-identidade – parte do muito que pode levar alguém ao suicídio é não ser sequer reconhecido, portanto não quero passar tempo a ver números. No entanto, é curioso verificar como a esmagadora generalidade dos suicidas são homens (numa proporção de 3 em cada 4). Também seria preciso verificar de quem falamos, já que o suicídio é uma questão que, de forma geral, é mais comum nos idosos seguidos dos jovens. Na meia-idade, é bem mais raro encontrar suicidas. Assim, talvez fosse honesto deixarmos de falar na “crise da meia idade”. O que acontece nesse período da vida talvez não seja uma crise, mas simplesmente uma mudança em que as pessoas despertam para o que desejam fazer e aproveitar. Na infância, é também raro encontrar suicidas: o arrepiante é saber que existem.

Os terapeutas gostam de dizer que o suicídio se revela em presença de co-morbidez, ou seja, que aquele que se suicida sofre também doutra doença, como seja depressão, ansiedade extrema, stress pós-traumático, ou mesmo uma doença incurável como um cancro terminal. Acontece que o suicídio não é uma doença, portanto não pode ser co-mórbido, nem sequer mórbido; é causa final. Não fica ali a trabalhar devagar, não tem possibilidade de cura, não existe volta atrás. É como um raio: termina com tudo. É o fim. Mas a pessoa suicida não o vê assim. Na realidade, encara o acto como uma espécie de panaceia. O suicida potencial vê no suicídio um portal de cura. Na verdade, não querem “acabar com tudo”. Querem “acabar com este tudo que existe agora”, isto é a vida actual tornou-se impossível de tão horrível que é, mas o que gostavam é que num passe de mágica tudo se transformasse para melhor. Por não verem solução, o passe de mágica chama-se suicídio. Não creio que o suicida pretenda morrer com toda a terminalidade da palavra; o que ele queria era não viver a vida que tem e sim viver outra, o que se lhe afigura impossível.

Como imaginam, esta reflexão vem a propósito de ter perdido um amigo que se suicidou. Existe aqui um elevado factor de surpresa e talvez algum “mea culpa”, que penso ser normal nestas ocasiões. Mas tudo isto pouco importa, pois quem fica tem algo maravilhoso: o dom da vida que continua, com altos, com baixos, mas sempre com luz, com energia vital. Ao passo que quem se foi perdeu para sempre esta oportunidade… com todas as outras que se seguem no amanhã e no depois, pois o certo é que “tudo passa e isto também passará.”

Por conta desta situação, acabei por encontrar vários grupos de apoio, um deles que muito me emocionou e que se chama “Please Stay”. Este grupo formou-se em Singapura, por 4 mães cujos filhos adolescentes (um deles ainda criança) se suicidaram. Embora o grupo se destine maioritariamente a chamar a atenção dos pais para os sinais que podem indicar pedidos gritantes de ajuda dos filhos, eu acho muito útil que pessoas com ideário suicida (nomeadamente jovens) vejam os vídeos. Na verdade, o grupo acaba também por ser uma forma de processo de cura destas mães que, a seu modo, dizem aos filhos que já não têm “Não te vás embora”. É isso que todo o suicida precisa de ouvir. Fazes falta. O que eu quero é que não o faças.

Quanto a mim, não é justo dizer que as pessoas que têm esta atitude estão muito doentes, desresponsabilizando a situação envolvente. Recordo sempre uma entrevista com o actor Keanu Reeves em que lhe perguntaram se ele já estava recuperado da sua depressão face à morte da namorada e do filho e ele respondeu: “Acho que as pessoas não têm depressões. As pessoas reagem ao que a vida lhes dá. Se é bom, fico feliz. Se é muito mau, fico imensamente triste. Sou humano, não sou um robot. Você tem um nome para a felicidade extrema? Porque rotula a minha tristeza então?”

As reacções de dor extrema são respeitáveis e normais. Não significam patologia. O suicídio, porém, é uma escolha fruto do desespero total. É importante lembrar que “tudo passa”. Incluindo esse desespero. Que ninguém se vá embora.

 

Friday, August 14, 2020

Problemas de ferias

 As férias nem sempre são um oásis de gozo e de lazer -  pese embora (com perdão desta expressão que odeio, até porque praticamente só é usada por quem andou na Faculdade de Direito) o momento que atravessamos de liberdades muito restritas fazer com que qualquer ideia de férias seja muito acarinhada e até idolatrada.

Pela minha parte, posso afiançar-vos que já passei pelas férias mais horríveis que se podem imaginar. O que pode acontecer de errado em época de descanso? Muita coisa. Exemplifico a seguir apenas com o que já me deparei.

Primeiro, ser roubada. Acrescento, ser roubada num país onde não sabemos bem como funciona a Polícia e onde a corrupção é grande (pior que em Portugal? Sim, existem locais mais corruptos que Portugal, ainda que tal pareça inimaginável). O importante quando se é roubado é não lutar contra o ladrão, porque antes ficar sem dinheiro do que sem estômago à conta de alguma navalhada. O desfalque é um revés que temos de aguentar.

Segundo, perder os documentos. Felizmente, nunca carrego a documentação original comigo – aprendi que devo deixá-la em cofre-forte. No entanto, conheço várias pessoas que carregam os documentos na mochilinha e quando se vai a mochila vai-se o passaporte. Tenho uma amiga, muito original, que carrega o passaporte nas cuecas. A única desvantagem deste esconderijo é que já foi parada pelas autoridades no estrangeiro, e tendo sido interpelada para se identificar, abriu as calças, o que causou alguma confusão aos agentes, tendo um deles dito mesmo que “se encontrava em serviço” antes de perceber que se tratava do local de resguardo do documento.

Terceiro, levar a miudagem. Nem todos os miúdos reagem bem à sobre-estimulação das férias. Felizmente, tenho sorte com os meus rapazes. Porém, admito que a sobrecarga de museus, monumentos, galerias; a mudança de rotinas, camas, comidas; ou, simplesmente, a contínua voragem de viagens na estrada pode causar algumas reacções inesperadas nos miúdos, soterrados na obrigação de terem de se divertir com novidades (para quem encara as férias assim, felizmente nem todos o fazem). O que é preciso é calma e conforto.

Quarto, acidentes chatos. O piquenique passa a ser um drama quando um leva uma picada de abelha e o outro tem uma intoxicação devido à sandes de atum. A praia deixa de ter piada quando se apanha um escaldão sério. Um acidente de barco ou ser mordido por um animal já eleva a coisa para outro patamar.

Quinto, comida. Apesar de não ser tão aventureira neste aspecto quanto o meu par, que come de tudo sem perguntar o que é ou donde veio, já comi minhocas encarando-as como uma iguaria. Porém, uma coisa é imaginar que somos o Anthony Bourdain nas suas exóticas viagens por algum night market mais esconso e outra, bem diferente, é comer Pagpag. Deus nos livre de tal experiência.

Sexto, doenças. Passando por cima do sistema de saúde de alguns locais, existem aquelas doenças da praxe, que incluem sintomas de febres tropicais, suores, delírios.

Sétimo, a clássica viagem de praia, sendo mulher no Verão. O exame popular ao nosso corpo. Se somos copa B ou copa D. Se o rabo está mais firme ou mais descaído. Se fizemos cesariana ou não. Se há estrias ou celulite. Se o bronzeado “pega” ou não. Enfim, toda a praia é uma constatação e um centro de comparações, por mais que se queira fugir a isso.

Oito, a também típica viagem de férias de regresso a casa da família de origem para quem vive longe. Não tendo eu a sofrência deste desígnio, vejo, porém, como são as coisas com o meu par, numa espécie de sentimento de “Que saudades, já cá estamos! Quando é que vamos embora?” Afinal, nunca é por acaso que se decidiu viver longe.

Férias: vivê-las pode ser difícil; mas viver sem elas é que não se pode.

 

Thursday, July 30, 2020

Lexicologia das relações modernas


Na época da minha avó, as pessoas namoravam-se à janela. A minha avó conheceu o meu avô quando ele passou na rua e ela estava à janela. Eu costumava fazer troça deste evento, dizendo que, caso eu ficasse uma tarde à janela, jamais conheceria alguém. Continuo convicta disto. Porquê? Porque o mundo tinha mudado e, dentro do paradigma socio-cultural vigente, já não fazia sentido ir para a janela esperando encontrar um amor, porque ele não passaria – o mais certo era o amor estar ocupado no café, no ginásio, etc.

Posteriormente ao fulgurante raio que os fulminou naquele cruzar de olhos na rua, a minha avó e o meu avô namoraram vários anos por carta, sem se verem, mas trocando fotos, palavras e promessas incandescentes. Não encontro grandes diferenças entre isto e os namoros virtuais de hoje em dia, onde se mandam mensagens, fotos (de estilo certamente mais ousado!) e colmata-se a implacável distância geográfica com vídeo-calls, onde se faz tudo o que passa pela cabeça. Não é a cartinha perfumada do antigamente, mas o resultado eufórico nos participantes e a promessa do “estou aqui para ti, espero o dia em que te possa voltar a ver” mantem-se.

O ser humano vive de objectivos. Antigamente, as pessoas tinham como finalidade o casamento. Qual é o objectivo hoje? Não vou responder, porque há sociólogos que escreveram sobre o desnorte das relações amorosas actuais (por exemplo a icónica Eva Illouz). Vou apenas debruçar-me sobre terminologias que apareceram na minha geração e não existiam antes para falar de situações que acontecem nos relacionamentos, e que “viraram moda”.

A primeira palavrinha é “ghosting”. “Ghosting” designa o acto de desaparecer subitamente da vida do ser amado. No sábado estava tudo bem, no domingo o tipo foi raptado por extraterrestres, ou seja, desaparece sem explicação. A parte do “sem justificativa” é importante, pois quem dá explicação não se qualifica como “ghosting”. O “ghosting” implica que o ser amado deixa de aparecer, telefonar, mandar mensagens, enfim, evapora sem dizer o porquê. Nem “adeus”. Esta atitude, que é cada vez mais comum, tão comum que já ninguém estranha, pode ser final ou durar meses. Passados meses, o tipo aparece como se nada fosse (a isto chama-se “submarining”), e caso lhe perguntem o porquê do desaparecimento, ele, natural, diz que necessitou de fazer um retiro espiritual no qual jamais deixou de pensar em vocês. Como vocês são telepatas, deviam ter percebido. Na geração da minha avó, isto chamava-se “despedida à francesa”, portanto não é novo. Cobardes sempre existiram (com o devido respeito aos franceses, por quem tenho apreço e linha familiar).

Outra palavra é “breadcrumbing”, que significa não dar muita atenção a um parceiro, mas lá o ir alimentando com mensagem ali e beijo acolá, tudo muito ocasional e leve. Nada que dê azo a grandes coisas, mas o suficiente para que o dito fique com o interesse em alta, e continue a ser um contactinho que não caia, porque sabe-se lá o futuro. É necessário ter a agenda cheia, caso se venha a necessitar de uma almofada, sobretudo se cairmos da cama onde estamos. Portanto, esta é a jogada do egoísta.

Depois existe o “orbiting”, que é quando o tipo não tem coragem de falar contigo, nem sequer por telefone, mas põe “likes” e corações em tudo o que publicas nas redes sociais. Ficas assim a pensar o que raio ele quer, mas ele não diz. Ele está sempre presente, mas na verdade está ausente. Novamente, o uso da clarividência é necessário. Ou então, um belo chuto no rabo.

Existe ainda o “cushioning”, que é quando estás a pensar terminar com alguém mas, antes da estocada final, começas a olhar para as outras hipóteses que existem na praça. Ou seja, o cushioning não é almofadar a vida da pessoa com quem vais terminar, não. É amparar a tua saída com um colinho fofo que já esteja pronto para beijinhos. Quem faz isto, faz “roaching”, ou seja, esconde do companheiro que anda a pescar outros.

Podes também ser deixado em “benching”, literalmente “no banco”, o que – como qualquer adepto de futebol compreende – não é situação boa de estar. Não jogas, mas pode ser que venhas a participar caso te chamem. Sabe-se lá quando ou se. Porém, és claramente uma opção.

Existe o “LOR”, que é “Left on Read” – é quando o caramelo leu as tuas mensagens e não respondeu durante dias. Mas leu. O processo cerebral está a pensar se deve responder-te, porque S. Alteza é ocupado. Ou então é para aumentar a tua ansiedade e submissão.

O dicionário continua, mas o meu espaço está a chegar ao fim. Porém, deixo aqui a pérola do “Zombieing”, que não desejo a ninguém: é quando um terrível ex ressurge, qual morto-vivo. Pelas almas! A minha avó não tinha de lidar com estas nomenclaturas!

Friday, July 17, 2020

Silly Summer


O Verão apresenta aquelas possibilidades de notícias tontas, antigamente apelidadas de notícias da silly season. Era um tempo em que não havia nada que fazer no Verão noticioso porque o mundo ia de férias e era uma época de turismo e de lazer, longe do rodopio político e económico costumeiro. Hoje em dia, com a loucura total e o bafiento mundo encarcerante covidiano que nos envolve, o Verão é quase mais do mesmo e pouco tem de libertador, de novo ou até de silly porque todo o ano é silly, ou seja, tonto e até quase surreal. Se 2020 fosse um quadro era Dalí ou Picasso: interessante em termos de observação, mas nenhum ser humano consegue viver muito tempo naquela paisagem sem que a sua saúde mental não sofra um bocado. Há quem diga que este cenário do Covid-19 veio para nos libertar (de quê? eis o debate) mas, novamente pensando em termos artísticos, a seguir ao Surrealismo veio o Expressionismo Abstracto e até tremo ao ver os quadros absurdos (embora seguramente cheios de liberdade, tanta que nada se percebia) que esse movimento gerou. À conta disso, hoje pagamos para entrar num museu e ver uma maçã meia mordida porque também isso é expressão e toda a expressão é arte. Enfim…

O Verão é também tempo de cirurgias plásticas, para algumas classes endinheiradas, que desejam modificar o corpinho que anda mais à mostra. Tenho as minhas razões pessoais para não apreciar este género de obsessão, que é demasiado comum no local onde vivo. De facto, modificar a aparência torna-se passatempo ou até vício de forma quando é fácil. Isto conduz-nos a uma conversa mais larga sobre identidade e à facilidade com que, hoje em dia, é possível mudar de pele. Podemos mudar de aparência, de nome, de nacionalidade, de sexo e de género e (com um pouco mais de trabalho) até podemos mudar de passado.

Focando-me apenas na questão da silly season e das cirurgias (fossem para mudar de pele ou de género), encontrei um anúncio humorístico que convidava as pessoas a fazerem uma cirurgia holística para mudarem de signo astrológico. A piada dizia que a nova cirurgia de mudança de signo utilizava um método de radiação para reprogramar o dia de nascimento alterando a idade celular do paciente e recriando um Aniversário Cósmico segundo o dia desejado. O palavreado está bem alinhavado – aliás, todos os charlatões falam muito bem, as eleições comprovam-no em numerosos países.

O anúncio avisava ainda que os efeitos da radiação eram imprevisíveis, e que poderiam ser necessárias umas três a quatro cirurgias até finalmente acertar com a personalidade do paciente. Ao contrário das cirurgias de Verão de que falei acima, esta cirurgia de mudança de signo, entendo eu bem. Reparem nas várias vantagens. Para os do signo de Touro, Carneiro e Capricórnio é a hipótese de finalmente deixarem de carregar com aquela incómoda e eterna galhadura que tantos rumores e calúnias mesquinhas levanta. Para os do signo de Virgem, cá está a almejada oportunidade de quebrarem essa castidade forçada pelas estrelas. Os do signo de Sagitário têm aqui um momento ideal para se tornarem pessoas de corpo inteiro e finalmente deixarem aquele incómodo de pertencerem a duas espécies, cortados a meio do corpo, sem possibilidade de consumarem as suas vidas como deve ser. Os do signo Gémeos podem, com claridade, optar por ser apenas um, deixando de lado aquela bipolaridade de serem dois, ora um, ora outro, ninguém sabe para onde viram. Os do signo de Caranguejo veem aqui a chance de nunca mais andarem para trás nem de lado – a partir de agora, será sempre em frente. Os do signo de Balança podem abandonar o incómodo de terem de aparentar equilíbrio ou (Deus nos livre!) justiça e os do signo de Leão acabam de vez com as piadinhas sobre serem o rei da selva (até porque nunca um leão viveu na selva!). Os de Aquário vão poder sair da sua limitação aquática para algo mais oceânico pois nunca um aquariano gostou de algo tão pequeno e confinante como um aquário; já os de Peixes talvez fujam, não sei bem para onde, mas para a segurança cósmica onde não haja dois peixes a nadar em direcções opostas, boca para um lado e rabinho para o outro. Falta um e é de propósito: quem quer, na realidade, ser conotado com um Escorpião?

Claro que aqui usei a astrologia tropical, porque se me regesse pela védica ou pela chinesa, outra história seria contada. De qualquer forma, é o anúncio mais divertido que encontrei ultimamente. A diversão já vai fazendo falta num mundo onde toda a gente se anda a levar demasiadamente a sério, carregando fardos que em nada agregam à vida.



Friday, June 19, 2020

O Problema é a Genética


Parece que há uma explicação genética para a infidelidade. Calma, almas voláteis e dúbias (ou corpos!). Bem sei que estão sedentos de ir oferecer esta explicação que vos desresponsabiliza totalmente dos actos por vós practicados em sã consciência e pleno poder de escolha, mas não há realmente uma explicação científica taxativa; existem apenas hipóteses. É destas hipóteses científicas que vou falar.

Brendan Zietsch, psicólogo da Universidade de Queensland, descobriu um elo entre a promiscuidade e variantes específicas dos genes receptores de uma hormona chamada vasopressina, hormona essa que está ligada à motivação sexual, e até à empatia, socialização, conexão com o outro e respostas maternais. O estudo não é propriamente novo, foi publicado em 2014, mas só agora dei com ele na “Evolution and Human Behaviour”. A hipótese do Dr. Zietsch encontrou eco, sobretudo, nos sujeitos femininos, isto é, foi encontrada uma associação significativa entre as variantes dos genes da dita vasopressina e o número de parceiros que as mulheres do estudo confessaram ter tido num ano. Retirando, assim, as restantes variantes que são absolutamente necessárias para que um encontro desta natureza aconteça (desde já a disponibilidade e vontade de parceiros), o Dr. Zietsch conclui que a culpada da promiscuidade feminina é a tômbola genética.

Homens, não desesperem, porque também vós tendes a mesma desculpa. É também uma variante específica do gene receptor da vasopressina que causa nos homens aquilo a que o Dr Hasse Walum do Instituto Karolinska chama “descontentamento marital masculino”, que me parece um prenúncio mais que certo para irem procurar contentamento noutro sítio. Novamente, a culpa é da genética: os que não possuem esta combinação não estão sujeitos a sentir tal falta de alegria.

Já o Dr. Justin Garcia, da Binghamton University, aponta para outro subtipo genético: um variante de receptor da dopamina, o D4. Os indivíduos que apresentam o D4 na sua combinação genética são cinquenta por cento (50% !!!) mais propensos à infidelidade. Duplicam a propensão! E isto porque são naturalmente facilmente estimuláveis, ansiosos por novidade, e como que permanentemente sedentos de mais coisas, outras coisas e ainda aquelas além para se poderem sentir vivos. Caso contrário, esmorecem. Parecem aquela canção do António Variações em que ele está sempre insatisfeito e quando agarra algo já pensa no próximo, e quando chega a um lugar já tem sede de partir. Assim, estas pessoas, infelizes portadores do D4, não são propriamente alegres D. Juan ou femme fatale. Serão, antes, esfomeados de novidade a quem nunca é possível matar a fome. Quase que fiquei com pena (sublinhado forte no “quase”) – é que a genética ninguém controla, mas as nossas escolhas podemos sempre controlar, por mais difíceis ou dilacerantes que sejam.

Explicações à parte, pessoalmente não estou totalmente convencida da genética da infidelidade, até porque não estou convencida, a priori, da monogamia da espécie humana. Os monogâmicos (nos quais me incluo) vivem na vida uma espécie de monogamias sucessivas, ou seja, tiveram um par e depois outro e agora têm outro que é exclusivo. Biologicamente falando, isto não é monogamia; são várias que se alternam no tempo e, portanto, mesmo que fidelíssimos, somos todos poligâmicos, excepção feita às pessoas que apenas tiveram um parceiro em toda a sua vida e que têm já a provecta idade para dizer “desta água não beberei”. Porém, cuidado, nunca se sabe se, um dia, uma pessoa se encontra no deserto, lugar onde (dizem… eu não sei!) a tentação de beber água – mesmo que salgada, poluída ou insalubre – amplifica-se.

Sunday, June 7, 2020

Ensino à distância: e depois do COVID?


A pandemia ainda cá anda e não sabemos quando vai acabar. Mas nada dura para sempre e a pandemia há-de desaparecer tão subitamente como surgiu. As doenças assim bombásticas são um pouco como as paixões, atacam forte mas não duram sempre e quando desaparecem deixam todos um pouco abananados com aquilo que se fez à conta delas.

Uma das coisas que se fez nalguns países durante esta pandemia foram aulas online em situações onde antes se usava o velho e bom método cara a cara. Sou a favor das tecnologias, sempre e quando estas nos permitem ultrapassar situações que sem elas não seriam passíveis de realização. O método online permitiu que as aulas continuassem, apesar dos pesares.

Ao contrário do que alguns podem pensar, o facto de ser online não motiva alunos que antes estavam desmotivados em sala de aula. Não mais do que motivaria uma pessoa que jamais gostou de futebol ao vivo a interessar-se pelo FIFA 20. Aliás, é bem mais complicado para o professor online tentar captar o interesse do aluno do que para o professor que está em sala de aula não só porque online é impossível saber se o aluno foi à casa de banho, está com problemas tecnológicos ou abriu outra janela e está a ver um filme, mas sobretudo porque a competição online é grande. Mesmo um excelente comunicador tem dificuldade em cativar o jovem durante muito tempo sem ser ultrapassado por um chat tentador, um vídeo engraçado ou uns “stories” ou “tweets” para ficar a par das últimas ou, simplesmente, porque a oportunidade se apresenta. Como dizia Oscar Wilde, pode-se resistir a tudo menos à tentação. A internet representa mais ou menos isso, porque tem está lá tudo (ainda que, na verdade, nada tenha a não ser imagens da vida ao invés da vida, é uma alegoria completa – estou a adensar o tema, o melhor é voltar ao início).

Os professores têm dois tipos de abordagem relativamente às aulas online: existem os que as consideram uma fraude pedagógica (estou a citar um sociólogo que muito respeito) e há os que opinam que são as aulas do futuro, ao encontro das necessidades da nova geração. Retiro propositadamente deste artigo as questões da metodologia, porque ninguém me convence que revolucionou de forma conceptualmente certeira a metodologia de uma sala de aula para um método online numa época de crise e num espaço de menos de um mês. Posso acreditar em rapidez e eficiência, é louvável, mas rapidez e perfeição, nessa já não creio, sobretudo envolvendo métodos. Há também a questão do atendimento ao aluno, que alguns dizem ser mais atempada e respondendo às necessidades individuais quando se usa a tecnologia. Este argumento entristece-me bastante, pois nunca num método cara a cara me foi difícil ter tempo para atender alunos, muito menos achei complexo responder-lhes individualmente. Parece-me uma fraca desculpa para docentes pouco atentos a quem está à sua frente.

Quanto ao uso exclusivo das tecnologias, gosto de relembrar que já em 2003, estudava eu em Amsterdam, se fez uma experiência nas aulas de Línguas e Linguística com robots como professores exclusivos para ensinar o funcionamento e produção dos sons. Era muito interessante aprender assim, porque ao contrário das pessoas, os robots eram transparentes e tornava-se mais fácil aprender um idioma verificando como se movimentavam os órgãos, por exemplo ao nível da boca. Porém, e apesar desta enorme vantagem, os robots não tiveram o sucesso esperado, já que os alunos queriam “contacto humano com um professor”. A questão da tecnologia e das aulas online prende-se com o mesmo. As necessidades das pessoas não mudaram muito: o que nos move é um bocadinho de calor, de carinho – já dizia o Bruce Springsteen, quer-se é “Human Touch”.

Compreendo bem o porquê das Universidades puxarem para que as aulas online continuem para além do COVID. Na verdade, o trabalhador / docente que está em casa passou a pagar os meios laborais (computador, internet, energia) e até se podem dispensar alguns trabalhadores se forem dadas várias aulas em simultâneo. Logo, redução de custos para o empregador. No entanto, pela reacção dos alunos, prevejo também que vão perder receitas, com mais alunos a desistir de continuar estudos.
Conclusão: é um debate que vai estar em cena na próxima temporada, porque é nestes momentos de grandes crises sociais que se implementam mudanças drásticas que noutras situações as pessoas teriam muita dificuldade em aceitar pacificamente.


Friday, May 22, 2020

Sem capa de açúcar


Hesitei em escrever sobre este tema e só me decidi quando li duas crónicas de opinião sobre o mesmo, uma aqui neste jornal e outra num media nacional. Foi um grande acaso porque não costumo ler crónicas de opinião – “em casa de sapateiro toda a gente anda descalço!” A razão pela qual eu não queria escrever sobre o caso de Valentina é que os graves maus tratos a crianças me tocam particularmente (não chocam, porque sei do que a casa gasta; tocam, que é um verbo diferente de sensibilidade); a razão pela qual escrevo é que esta mania de encomendar a criança a N. Sra. de Fátima, colocar as culpas na madrasta má, e dormir sobre mais uma tragédia após estes escritos de bênção, me perturba um nível acima do caso.

A capacidade de análise do ser humano médio é fraca. Mas isso não perdoa certos exercícios que ficam a dever muito à lógica, porquanto nem sequer a chegaram a utilizar. Dentro deste espírito, vou tecer algumas considerações.

Primeiro, culpar a madrasta e ilibar o pai, dizendo que todos os padrastos e madrastas não têm amor às crianças, é um caminho tão fácil quando falso. É realmente falho de sentido levantar o estandarte do amor biológico familiar usando como exemplo um caso em que o pai biológico de uma criança a torturou com água quente, a asfixiou e lhe bateu até lhe causar convulsões, deixando-a depois a agonizar no sofá 13 horas até que esta falecesse. Realmente, o amor de(ste) pai recomenda-se. O da mãe da Valentina não sei, mas o facto é que a criança já tinha fugido de casa do pai, e certamente não o fez por ser bem tratada e estar feliz; uma mãe atenta não a deixaria voltar, sem ao menos telefonar constantemente. Algo que sempre me fez impressão neste caso foi voluntariar-se uma vila inteira para andar dias à procura da criança supostamente desaparecida, enquanto as respectivas famílias (pai, madrasta, mãe, namorado da mãe) ficavam em suas casas. Enfim, o caso não se prende com serem familiares de sangue ou de afecto; o caso prende-se antes com esta triste realidade: amor à Valentina não havia. Obviamente, a madrasta que compactua com o crime é criminosa. Mas não é a única. O problema é que custa muito ao ser conservador, amigo dos ditos bons costumes, entender que dentro da família tradicional tanto pode existir amor como falta dele e que a biologia humana não garante carinho. Aliás, para algumas pessoas dadas ao abuso de poder, a proximidade constante e disponível de um ser frágil e incapaz de se defender como uma criança a quem a biologia concede plenos poderes visto serem seus progenitores nada mais faz do que exacerbar a violência que sobre ela podem exercer – e exercem, como mais uma vez, neste caso, se viu!

As desculpas do progenitor não merecem escuta porque não há razão que justifique isto. A menina sofria abusos sexuais? Posso garantir que nenhum progenitor confrontado com o horror que é saber que um filho sofre abusos lhe tenta arrancar pormenores torturando a criança. A menina tinha brincadeiras de índole sexual com colegas de escola? Nenhum progenitor a tenta matar por isso. O pai tinha problemas psiquiátricos? Curiosamente, só se manifestaram na forma de tortura e morte desta filha; e já agora porque teve ela de pagar por isso? Esta brincadeira de inventar doenças do foro mental para desculpar o indesculpável é uma artimanha de advogados que defendem sempre o mesmo perfil de cliente. Não raro me interrogo se estes tipos que torturam menores têm uma base de dados de advogados sem carácter, já que são sempre os mesmos.

Finalmente, respeito imensamente a religião de cada um tal como respeito imensamente quem decidiu não ter nenhuma. Mas este croniquismo que propõe iluminar a alma, o destino além-vida da menina Valentina com imagens de Fátima para lhe dar amparo só me traz confusão e revolta. Apetece perguntar qual a lógica que uma entidade divina vê em deixar torturar uma criança em vida para a iluminar depois. Que pecados teria essa criança para sofrer dessa maneira, na óptica destes escribas? Enfim, nem eles sabem responder, porque o dogma se sobrepõe a qualquer questão, e nem percebem que com tais palavras insultam o poder absoluto de bem fazer que atribuem à sua divindade.

Gostava de acreditar que aprendemos alguma coisa com este caso, mas penso que não. Há muitas Valentinas a sofrerem, umas sobrevivem com fortes cicatrizes, outras têm menos sorte. Certo é que os criminosos das Valentinas lá vão continuando as suas vidas. Por muito que custe aos escribas amigos da “moral de fachada”, nem sempre a família é o melhor do mundo.


Thursday, May 7, 2020

Encosta-te a mim... mas não muito


Um dos efeitos da quarentena é o drama mental que a condição arrasta consigo. Confinamento forçado traz aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “cabin fever”, uma condição psicológica real que advém de estar fechado em casa. É de dar em doido. Vejam o filme “The Shining” onde a coisa chega ao extremo. Mas não se assustem, nem todos pegam num machado para cortar a família aos bocados. Para isso, já é preciso personalidade de psicopata.

Estar fechado em casa com a família implica termos de conviver 24/7 com seres que antes víamos apenas algumas horas por dia. Uma pessoa queixava-se de não ter tempo para a família; depois fica sufocado de os ver. Sejamos sinceros: é bem mais fácil manter um casamento quando as pessoas vão trabalhar todo o dia, depois lufa-lufa de jantar, tratar dos miúdos, banho, chega para lá, sono. A rotina estraga a paixão, é certo… mas ajuda a manter os hábitos. O casamento, enquanto contrato, tem muito de hábito. Não é por acaso que as taxas de divórcio sobem escandalosamente após as férias de Verão e a época do Natal. Aliás, já escrevi sobre isto (não neste jornal), referindo que o casal passa a vida a fugir um ao outro com desculpas socialmente aceitáveis e imensamente produtivas. Acontece que a própria sociedade obriga de vez em quando a um compasso de “festas de família” e de “Verão familiar” onde as pessoas experientes procuram logo outro ambiente e outros metem-se na casa dos avós, porque se a coisa correr mal podem desculpar-se com o stress de “aturar os teus pais traz sempre problemas”. Nessas épocas, as famílias são “obrigadas” a conviver e o casal, que antes ia empurrando a sensaboria de já não ter paciência para se aturar com desculpas sobre os seus problemas serem a rotina, os filhos e o trabalho e coisas que tudo tinham a ver com os outros e nada a ver com eles ou a sua relação, vê-se confrontado com a difícil tristeza que é admitir que afinal não, afinal estando todo o dia juntos não há paciência para aturar a cara-metade. Mas qual metade? Ninguém suporta partidos, eu cá sou inteiro.

Logo, seguindo a mesma lógica, estas “férias forçadas”, para mais confinadas a um território restrito e conhecido como é a casa só podiam dar barraca para muito casal. Não é surpresa que a taxa de divórcios na China tenha aumentado exponencialmente após a quarentena ter terminado. Os cartórios oficiais de registos de divórcios abriram em março e logo nesse mesmo dia se registaram números elevados de pedidos. Porém, já antes, os escritórios de advogados se viram atafulhados de acordos de divórcios desde meio da quarentena. Para melhor compreender isto, é necessário ter em conta que falamos de um território severamente tradicional, onde o divórcio é mal visto pela sociedade e onde as pessoas pensam mil vezes antes de se divorciar devido ao estigma que ser divorciado ainda acarreta, perante a família, perante a comunidade e até perante a imagem que têm de si próprios.

Conclusão: eu não sei se o provérbio costumeiro “longe da vista, longe do coração” é certo… mas o que ficou provado é que “muito perto durante muito tempo” enjoa e não é pouco.

Thursday, April 23, 2020

Incoerencias virais


Eu levo o vírus muito a sério, até porque estou num local onde me medem a temperatura sempre que entro ou saio do metro; ainda me medem a temperatura mais três vezes por dia no trabalho; tenho de usar máscara em público; tenho de entrar numa fila interminável para comprar a dita de 15 em 15 dias; há medidas penais incontornáveis caso uma pessoa infecte outras por ter continuado a sua vidinha estando doente, etc. Enfim, o confinamento já lá vai mas isto está longe de ser vida regular.

No entanto, há coisas que tenho muita dificuldade em perceber. O meu problema sempre foi analisar tudo ao milímetro, e daí dar de caras com questões ilógicas que não engulo nem com água. Nesta questão do COVID 19, passa-se o mesmo. Já aqui dei conta da situação da libertação dos presos versus o confinamento dos cidadãos não sujeitos a penas (infelizmente, várias notícias da última semana vieram dar-me razão), mas há mais paradoxos com os quais não atino.

Lendo as notícias e “conselhos” de outros países, já li os seguintes – todos na mesma semana: “Fica em casa, só isso pode salvar vidas”; “Pela tua saúde mental, é importante sair de casa para apanhar sol e fazer exercício”; “Usa máscara, o vírus transmite-se pelas gotículas”; “Não uses máscara, a não ser que estejas doente”. Só isto já demonstra o oxímoro actual. Afinal, em que ficamos?

Em termos de contágio, assegura-se que os animais domésticos não podem contrair o vírus porque “o vírus não passa de pessoas para animais”. Isto apesar de ser ponto assente que o vírus “surgiu em animais (eventualmente morcegos) e passou para pessoas”, tal como a gripe das aves, a gripe suína, a MERS-COV e outras. Portanto, a coisa gira só para um lado? Também se diz que “as crianças têm muita dificuldade em contrair o vírus” apesar de nada científico poder apontar para uma afirmação destas. As crianças sempre apanharam todo e qualquer vírus com a maior das facilidades, até porque o seu sistema imunitário é o que se sabe. Já os velhinhos, esses os governantes afirmam que sim, são pessoas de risco, e devemos manter-nos afastados deles, porém, cuidá-los à distância. No entanto, nada nos impede de apanhar um autocarro ou um táxi guiado por um velhote (existem os que andam por aí a trabalhar, coitados).

Há mais pérolas deste sem rei nem roque. Vejamos o que se passa num contexto mundial. A maior parte das lojas devem estar obrigatoriamente fechadas, mas algumas podem estar abertas. Os médicos não aceitam marcações, só por tele-medicina, mas não há problema em ir às marcações que já existiam (a não ser que esteja doente… Se estiver doente, fique em casa. Mas se estiver muito doente, dirija-se ao Hospital). No Ocidente, existe certa risota quanto aos fatos de protecção chineses porque parecem saídos duma central nuclear; porém, admite-se que o pessoal hospitalar precisa de protecção extra. A corrida aos supermercados levou a um racionamento de entradas de pessoas nos supermercados para evitar concentração humana, e a um racionamento de víveres essenciais (massas, enlatados e o famoso caso do papel higiénico) – porém, apesar de nalguns países ricos haver supermercados sem estes itens há várias semanas, assegura-se que não estamos ainda em crise, nem sequer de neurónios.

Restaurantes abertos? Isso não, na maior parte dos países. Mas pode-se pedir comida através de apps. As condições higiénicas em que essa comida foi preparada é exactamente a mesma do restaurante caso estivesse aberto. O indivíduo de scooter que a vai entregar não deve ser mais higienizado que o empregado de mesa (com o devido respeito). Quem sai para compras, deve retirar tudo dos sacos quando chega a casa, e pôr a roupa a lavar, tomar banho, etc. Mas tudo o que vêm entregar à tua porta está sem problemas.

Deve-se prestar muita atenção aos sintomas que indicam COVID-19. Por azar, os mesmos sintomas indicam gripe, pelo que, na realidade, não é possível ao infectado saber se tem a doença ou não a não ser que seja testado. Os países acreditam saber o seu número de infectados, mas na verdade nenhum país sabe quantos são, dado que muita gente está em casa a cozer “uma gripe” que pode ser COVID-19. A única conta certa é o número de mortos.

Finalmente, last but not least, não às concentrações nem sequer para enterrar gente mas para uma “celebração” já podem ir os engravatados do costume. Serão imunes? Se calhar, o vírus distingue-os.
Enfim, tenho dezenas de questões. Dou no máximo até ao fim de Maio para haver uma reviravolta mundial neste estado de coisas. Certamente, um dia mais tarde, alguém escreverá sobre 2020 como o ano mais ridículo a ter lugar na Idade Moderna.

Thursday, April 9, 2020

População dentro, presos fora?


Tenho dificuldade em compreender alguns líderes mundiais (Portugal, Brasil, os E.U.A.) que se lembraram de uma medida curiosa agora por época deste COVID-19: libertar os presos para, alegadamente, impedir uma onda de contágio nas cadeias que, dizem, estão sobrelotadas.

Quanta ironia neste momento histórico e nestas recomendações, diria até ordens!, governamentais, pois que vivemos numa época de imposições e não de meros conselhos. Por conta do mesmo vírus, vemo-nos a braços com originais contradições. A população geral é obrigada a ficar em casa, existindo sanções legais que lhes podem ser aplicadas se saírem do confinamento ao qual está remetida pelo estado de emergência decretado. Foram retirados aos cidadãos liberdades e direitos fundamentais, de que não falarei porque todos os conhecem – na pele. Os cidadãos estão assim, à falta de melhor palavra, reclusos. Por reviravolta sarcástica do destino, a proposta governamental quanto aos reclusos é libertá-los – diz-se que estão demasiado confinados e o vírus poderá (sublinhe-se o condicional) espalhar-se nas cadeias. Pergunto: existem números, estatísticas relevantes que justifiquem esta tomada de posição? Quantos casos de COVID-19 até agora nas cadeias?

Nas declarações ministeriais é dito que se trata de um “perdão parcial de penas de prisão até dois anos” e onde não estará incluído nenhum crime grave. Passando por cima da sempre relativa gravidade de um crime, tenho muitas dúvidas das vantagens que isto traz. As cadeias estão sobrelotadas? Não ponho em dúvida. Mas o que é que isto nos diz sobre um país, sobretudo este país onde o criminoso de colarinho branco não vai preso? O que nos diz é que há muito crime, sim, ao contrário daquela imagem fofa que vendemos aos turistas e que é aquela de “Portugal, seguro, brandos costumes, não se passa nada”. Se há presos, há bandidos; logo, afinal, há crimes. Aliás, este COVID-19 só veio mostrar as fragilidades dos países, a começar pelos sistemas de saúde; o prisional é o de menos - mas isso já dá outra crónica.

Interrogo-me se, perante um cenário em que a população geral não está no seu melhor momento, uma tal medida será adequada. Muita gente perdeu o emprego, a economia anda pelas ruas da amargura, a saúde mental do cidadão comum já viu dias melhores, medrosos que estão todos com uma ameaça invisível e cansados de estarem entre quatro paredes sem liberdade. Não será que em tal regime de instabilidade financeira e psicológica, o sentimento de segurança da população fica mais frágil com este tipo de atitudes? Já para não falar das vítimas desses crimes – curiosamente, as vítimas dos crimes são sempre uma espécie de elemento esquecido, talvez porque na cultura cristã-católica se enfatiza muito o “perdoar”, ideia Moderna porque nas culturas mais antigas (incluindo a judaica) Deus era entidade castigadora, não deixando passar ofensas em branco.

Este “perdão” português aparece a partir de um apelo do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, que fala dos presos como pessoas mais vulneráveis dentro desta pandemia. É muito curioso que a ONU, em presença deste vírus, esteja tão preocupada com os detidos mas não com os refugiados, que vivem em miseráveis condições em campos fronteiriços sem sanidade, e não com os “sem tecto”, que vivem nas ruas sem qualquer possibilidade de obedecer a ordens de confinamento. Não serão estes grupos muito mais frágeis e em risco de espalhar bem mais a pandemia?

Tenho seguido o esquema de libertação noutros países, nomeadamente nos E.U.A. A questão “penas de dois anos” é irrisória, porquanto todos sabemos como são ridiculamente atribuídas penas ao sabor da (falta de) ética dos sancionadores, corrupção, etc… Em suma, dando exemplos concretos e recentes, há 3 dias uma cadeia de Massachussets libertou Glenn Christie com a desculpa do Coronavirus, já que este tem (?) condições excepcionais de imunidade e esteve em contacto com a doença. Glenn só tinha um a dois anos de cadeia. Acontece que Glenn, vencedor de um bilhete da sorte, estava preso por violações repetidas a um rapazinho de 12 anos. Imagino como andará a dormir este miúdo. Mais informações e histórias podem ser vistas no Twitter em @AnOpenSecret – que também é um documentário, dos muitos que existem.

Cada país tem a sua maneira de lidar com o COVID-19. Por exemplo, em Taiwan, dada a insuficiência de máscaras, os presos são agora mão de obra para fazer máscaras nas cadeias, assim contribuindo para a produção de um bem essencial e sendo, segundo os próprios, socialmente úteis num momento de crise– algo gratificante para todos, detidos e não detidos. Uma ideia bem mais interessante e mais racional.

Thursday, March 26, 2020

Covid-19 e Realidade Alternativa


Quem gosta de jogos de computador talvez conheça um jogo de simulação estratégica chamado Plague Inc. O jogador desenvolve um agente biológico patogénico capaz de aniquilar a Humanidade causando uma enfermidade mortífera que alcance o nível de autêntica praga, conforme vai contaminando cada vez mais pessoas de país em país.

Plague Inc não é um jogo desconhecido do grande público. Em minha casa também se joga – não eu, que não percebo nada disso, embora veja os homens da casa furiosamente interessados. Existe desde 2012 enquanto jogo eletrónico e desde 2017 como jogo de tabuleiro, para a malta mais clássica. É um jogo tão interessante que, há um ano atrás, os números da empresa Ndemic Creations (sua criadora) diziam que já vendera 35 mil cópias (versão tabuleiro) enquanto os downloads eletrónicos ultrapassavam os 120 milhões. Mas isso não era nada com o que a Ndemic Creations viria a facturar no início deste ano quando o Plague Inc. se viu no lugar de app mais procurada de sempre por alturas do explodir do COVID-19.

Em Janeiro, os jogadores chineses perceberam que a história do Plague Inc. tinha saído do mundo virtual para o mundo real. Sabendo que o jogo tinha sido cientificamente baseado, tendo por isso ideias fundamentadas sobre como se espalham as doenças contagiosas, o público chinês procurou respostas para a rápida expansão do COVID-19 bem como para a descontinuidade do “bichinho”. O website oficial do jogo foi invadido com perguntas sobre este vírus específico, pelo que os seus criadores tiveram de dizer que não tinham utilizado um modelo científico específico, re- enviando qualquer pergunta para a OMS. De facto, o jogo admite bactérias, vírus, fungos, parasitas, armas químicas e outros, não se limitando a uma só doença, embora o cenário de contágio -praga e de alastramento mundial com fechamento de fronteiras esteja presente. Existem follow-up deste jogo: por exemplo, o Rebel Inc. que fala das implicações políticas deste drama, porque isto de fechar fronteiras não é inocente e traz consequências a vários níveis, desde os nacionalismos à economia.

O pandemónio foi tal (pandemónio e pandemia, curiosamente, são palavras da mesma família linguística) que o Governo da China decidiu proibir o jogo em Fevereiro, retirando-o das App stores. A Administração do CiberEspaço Chinesa – um órgão regulador do espaço internauta; outros dirão órgão de censura e controlo – proibiu mesmo o jogo dizendo que este continha “conteúdo ilegal”. De que tipo? Não foi especificado.

Claro que estas ficções sobre pandemias à escala global não são novidade. Existem muitos filmes e livros: O Planeta dos Macacos; Contágio; Children of Men; Vinte e Oito Dias; Pacific Liner; The Omega Man; Mothers Might Live; etc. Até o próprio “Ensaio sobre a Cegueira” de Saramago não deixa de ser sobre uma misteriosa e galopante epidemia, que deixa todos acometidos de uma misteriosa e súbita cegueira branca.

O que é que todas estas ficções têm em comum? Pânico. De facto, Contágio (filme de 2011) é muito semelhante à ideia do Covid-19, a começar pelo facto de ser um vírus que salta de um animal para uma pessoa inadvertidamente. Não admira, já que o filme foi inspirado pela SARS. O paciente zero de Contágio está na Ásia, onde come carne de porco infectada, porco esse que por sua vez comeu banana que foi tocada por morcegos.

Pânico é o que se vive hoje em dia. Em Taiwan, país vizinho do berço do Covid-19, o número de infectados é residual e apenas se registou uma morte por CoronaVírus. De facto, na Ásia, fora da China, apenas a Coreia do Sul conta com número substancial de casos, e ainda assim números muito inferiores ao Irão, que – por sua vez – tem números muito inferiores à Itália. Por outro lado, é importante fazer o balanço entre o número da população e o número de infectados: visto desta forma verificamos que o real drama, exceptuando a China, é, sem dúvida, na Europa.

Recentemente, em Taiwan, uma equipa de cientistas da Academia Sinica desenvolveu os anticorpos que identificam a proteína causadora do Covid-19. No entanto, continuamos sem saber de onde veio o vírus ao certo, já que ninguém avança taxativamente com a ideia do morcego. No mínimo, intrigante… Foi identificada a fonte, mas não o reservatório dessa fonte.

Os amantes de teorias da conspiração podem dizer: alguém viu Contágio ou alguém andou a jogar Plague Inc. e decidiu experimentar na vida real. Quem sabe? Eu não. Nada entendo de bioquímica nem de laboratórios. Além disso, não sei jogar vídeo jogos. Mas uma coisa sei: jogar com o pânico das pessoas é fácil. Basta fazer constar que há perigo em X, identificar a variável X como o que mais nos interessar e ir alastrando a coisa com manipulação. Só há algo que alastra mais que um vírus. Esse algo é o medo.