... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 20, 2013

Hatikvah

Há alguns anos atrás, tive uma colega numa Universidade do estrangeiro que tinha vivido a tenra infância na época da Segunda Guerra Mundial. Dada a sua idade avançada, só dava umas poucas de aulas, até porque já estava na reforma, mas ainda podia partilhar o seu saber. Era judia e, na época da Guerra, vivia num desses países de Leste que Hitler dizimou, deixando-os quase irreconhecíveis. Não que fosse seu hábito falar disso, mas, certo dia, contou-me como tinha escapado. Em sua casa, tinham construído à pressa um abrigo falso (daqueles que tantas vezes vemos no cinema) mas era tão ínfimo e estreito que mal dava para duas pessoas e, no dia fatal em que lhe entraram pela casa dentro, só a pequenina e a mãe ficaram dentro do abrigo, por cujas frestas viram o pai ser levado. Nunca mais o viu, até porque, mesmo que fosse levada para um campo de concentração, as mulheres e os homens eram imediatamente separados. A partir daí, existiu uma história complexa de fuga e de assumir de identidades falsas, de resguardo e de vida marginal – uma história que durou tantos anos quantos foram precisos para ela e a mãe atravessarem países, e chegarem, finalmente, a um lugar que consideraram seguro, onde refizeram uma vida que lhes coube numa malinha e numa viagem de barco.

 Mas o que eu quero sublinhar desta história é aquilo que nunca mais esqueci. É o facto da minha colega dizer, do meio das suas rugas sorridentes: “Não penses que sou uma pessoa triste. O mundo sempre teve e sempre terá muitas coisas belíssimas. Estarmos vivos é uma dádiva tão grande que não a podemos desperdiçar com amargura.” À primeira vista, quase parece literatura cor-de-rosa. Mas, conhecendo-a, é difícil não admitir que é raro encontrar alguém que apreciasse tanto os pequenos prazeres de existir.

Também lhe estou grata por ela me ter ensinado um truque que me tem sido muito útil: “nas situações mais desesperadas da vida, tenta viver com a maior normalidade e humor.” De facto, isto ajuda muito a manter o equilíbrio. Se vivemos uma situação absolutamente horrífica – o Holocausto é um bom exemplo, mas há outros no mundo actual - , viver a rotina como se não houvesse turbulência pode ser impossível, mas é muito benéfico para a estabilidade manter um certo humor. O filme “A Vida É Bela” é um óptimo exemplo de como se pode viver com ternura mesmo dentro do horror – e, sobretudo, transmitir esse carinho aos que nos são mais queridos.


Talvez seja esta a maior lição judaica: hatikvah - aquela capacidade extraordinária de nunca perder a esperança num futuro dia dourado, o que faz com todos os dias sejam já um pouco raiados de sol. É que nem mesmo uma força que nos desmembre “pode cortar a raiz ao pensamento”; assim se cantava em Portugal, mas hoje… hoje, já se esqueceram (?). No entanto, o mais bonito e mais importante é que hatikvah não depende de nenhum factor exterior – cada qual a tem ou não tem, conforme a sua capacidade íntima. E continuará a mantê-la, independentemente de holocaustos. 

Friday, December 6, 2013

Biblos


Lembram-se daquela experiência do violinista Joshua Bell no metro de NY, onde ele tocou incógnito como qualquer músico de rua? O mesmo Joshua Bell cujos concertos esgotam semanas antes quando ele toca no Metropolitan não conseguiu mais do que umas moedas, menos do que outros músicos que tocavam por ali. Quando perde a aura que lhe dá o seu nome, Bell não é melhor que um músico de esquina. É a fama de Bell e não o seu real talento que vende. Em 2011, escrevi um artigo (“Essencialistas”) para este jornal que falava desta experiência e da teoria psicológica que explica que a admiração que sentimos por alguém é fruto da construção mental que fizemos dele. Em resumo: somos nós os artífices de uma opinião que pode não coincidir minimamente com os factos reais, e somo-lo apenas por via de uma ilusão por nós construída. O talento de Bell mantém-se, na sala sinfónica ou no metro… mas o que atrai o público é a figura de Bell, famoso ídolo, e não a sua música.

Adiante. Existe o lado oposto desta teoria, que só ajuda ao seu suporte, comprovado pela aluna de um internato inglês cuja professora de Literatura criticava sistematicamente as suas composições. A aluna copiou um poema de Shelley e assinou o seu nome. Recebeu a mesma nota medíocre de sempre… no poema do grande Shelley. Isto mostra que, quando não simpatizamos com alguém, o nosso julgamento também é feito a priori mas automaticamente pela negativa, e o juízo de valor atribuído também não constata o conteúdo real.

Tudo isto se agrava se falamos da opinião de multidões (como no caso Bell), porque na psicologia de massas, o que um fizer, os restantes seguirão. Como dizia Gustave Le Bon, as multidões nunca se elevam à inteligência do seu membro superior, pelo contrário; descem sempre ao pensamento básico do seu membro mais inferior. De tal modo os estudos feitos até hoje à Psicologia das Multidões nos demonstram que esta é irracional e primitiva, que se torna quase ridículo acreditar que a opinião da maioria é válida de ser seguida, pois a primeira premissa do pensamento de uma massa é que ele não funciona de acordo com razões e desconhece argumentos lógicos. Move-se pela emoção volátil, sendo normal as multidões mudarem de opinião frequentemente (como exemplo claro, veja-se a crucificação de Cristo e a quantidade de seguidores que teve… apenas uns anos depois!).

As opiniões das massas são influenciadas por quê, se não têm qualquer lógica? Pela tal ilusão. Esta, por sua vez, é sustentada em imagens, palavras, e líderes. O mundo precisa de pessoas a quem adorar e, se uns adoram Joshua Bell (só na sala de concertos), outros adoram o Cristiano Ronaldo. Aliás, é discutível o que seria do Ronaldo sem os media para divulgarem a sua imagem – aquela que ele quer passar, obviamente. Poucas pessoas famosas seriam grandes sem uma excelente gestão da sua “persona” pública.

As opiniões das multidões divulgam-se por contágio, como a varicela. Os saudáveis (os que acharam que Joshua Bell estava a tocar bem no metro porque pensam racionalmente) são logo classificados como malucos e calam-se depressa.


Com tudo isto, o melhor conselho a dizer às multidões é o conselho britânico: “Nunca julguem um livro pela sua capa”. Bom, se for um livrinho do Cebolinha, vá lá… Agora, se for uma obra densa do estilo “Crime e Castigo”, convenhamos que julgar 500 páginas de Dostoievsky pelo grafismo e lombada não é lá de muito tarelo… 

Friday, November 22, 2013

Portugal na Teoria das Dimensões Culturais

Ao leccionar uma aula sobre a Teoria das Dimensões Culturais, lembrei-me de fazer como exercício a classificação de Portugal nesta teoria segundo os alunos.

A Teoria é um esquema pensado por Geert Hofstede, um dos grandes nomes a ter em conta quanto ao estudo das diferenças culturais entre povos. Nela, Hofstede propõe cinco variáveis distintas que definiriam o posicionamento de uma cultura: distância hierárquica, individualismo versus colectivismo, masculinidade versus feminilidade, evitar da incerteza e orientações a longo prazo versus a curto prazo. Claro que o esquema tem várias limitações. Ainda assim, é bastante revelador do posicionamento cultural dos povos. A comparação com países que obtêm valores distintos ajuda à definição obtida.

Portugal tem um valor acima da média no que diz respeito à distância hierárquica. É usualmente aceite que os que detêm posições mais elevadas na sociedade detêm também mais direitos. Da mesma forma, um subordinado espera que o seu superior hierárquico seja controlador e formal. O elevado grau de burocracia e de morosidade são típicos de sociedades altamente hierarquizadas. Por comparação, os EUA organizam-se em premissas de “freedom and justice for all” e, de uma forma geral, os chefes mostram-se disponíveis para conversas descontraídas com os subalternos. Os “degraus” sociais escalam-se com facilidade, em sentido ascendente e descendente. Em Portugal, os self-made man são raros…

Em relação à segunda premissa, que diz respeito ao facto de uma sociedade ser mais independente e livre ou, pelo contrário, funcionar em termos do bem comum, exigindo lealdade dos seus membros, Portugal demonstra ser o mais colectivista dos países europeus. Deste modo, a família extensa assume mais importância do que o indivíduo, a moral social mais valor do que o pensamento pessoal e as próprias empresas acabam por exigir amor à camisola. Portugal acredita na responsabilidade comum e dá pouca margem para a diferença.

Necessário é explicar que Hofstede entendia por sociedade masculinizada a sociedade competitiva e aguerrida, ao passo que a feminilizada tinha por objectivos a qualidade de vida e a cooperação. Não sendo dos países mais femininos (a Dinamarca é um exemplo desses), Portugal é porém um país que não aprecia a competitividade extrema e acredita na flexibilidade de negociação.

Evitar a incerteza é uma variável que lida com a insegurança frente ao desconhecido, ou seja, aquele sentimento de desconforto que algumas culturas sentem frente à ansiedade perante o futuro ou tudo o que seja um risco ao status quo. Devo dizer que Portugal rebenta com a escala. Isto significa que qualquer fuga ao estabelecido é mal vista, que existe um código rígido de condutas sociais e morais e que as pessoas são altamente intolerantes com qualquer ideia pouco ortodoxa. Inovação? Nem pensar.

Quanto à última questão, os portugueses têm um coeficiente que demonstra serem orientados a curto prazo, ou seja, gostam de manter as aparências e as normativas, o que os aproxima das sociedades do Médio Oriente.


Estas são as conclusões actuais da equipa do Centro Hofstede sobre Portugal – a título de curiosidade não são iguais às dos meus alunos… Mas quem é bom avaliador de si próprio? 

Friday, November 8, 2013

Cursos


Uma das coisas que verdadeiramente me assusta no mundo actual é a espantosa e lamentável tendência dos seres humanos para deixarem de escutar os seus instintos e quererem, a todo o custo, desaprender a sua Humanidade.

Exemplificando com assuntos do foro mais comum: a gravidez e o parto. Hoje em dia, a esmagadora maioria das grávidas frequenta cursos de preparação para o parto que as ensinam a dar à luz os filhos. Corrijam-me se estou enganada, mas as mulheres têm filhos desde o início dos tempos da vida humana. Além disso, dadas as condições sociais e os avanços da medicina, provavelmente nunca foi tão seguro nem tão fácil ter filhos como hoje (do ponto de vista da mecânica do parto em si, claro!) Porém, apesar disso, é precisamente nos dias de hoje que as mulheres decidem ir aprender como dar à luz, como se dar à luz não fosse um acto biologicamente natural mas antes uma coisa tão invulgar e recente que fosse mesmo necessário um curso para aprender a fazer a coisa. É, realmente, fantástico que a Humanidade tenha sobrevivido milénios sem cursos de “inspire, expire, aperte a mão do seu marido, faça força”.

Esta minha crítica social não é a quem dá os cursos. A esses, dou-lhes os parabéns pela iniciativa empresarial que tem aproveitado muito bem os tristes ideais deste século. É mesmo a quem decide ir aprender instintos, como se não os tivesse de forma inata.

Sabendo desta minha postura, há mulheres que me respondem que a função dos cursos pré-parto é fornecer à grávida contacto social com outras grávidas. Ah, bom, mas então falamos de uma espécie de ATL para futuras mamãs e nunca de um “curso de preparação”. Entendamo-nos.

Outro curso fabuloso é o da amamentação. Sim, há cursos de amamentação. Aliás, procurem na vossa freguesia ou na net e até encontrarão “cursos de aleitamento para profissionais”. Estes últimos fizeram-me uma certa confusão, já que fiquei a pensar se nisto do aleitamento haveria as profissionais e as amadoras e, enfim, o que distinguiria exactamente uma da outra! Mas afinal não, os cursos para profissionais destinam-se a assistentes sociais e técnicos de saúde que pretendam ajudar as mamãs na tarefa da amamentação. Deus nos valha! Mas alguém necessita de um assistente social a dizer “mude de mama agora que essa já está cansada”? Quanto de voyeurismo e de infiltração do Estado não haverá aqui nas vidas de cada um – desde o berço, sublinhe-se…

Com tanto desvalorizar dos instintos humanos, ainda bem que ninguém até agora se lembrou de fazer cursos sobre a produção de crianças. Estamos seriamente sujeitos a tal. Há algo mais levezinho (mas que não se compara) que são os cursos de preparação para o matrimónio – não consta que quem os tire se divorcie menos do que os que não têm o certificado…


Resta-me dizer que não tenho certificado nenhum. Portanto eu, tal como todas as gerações que vieram antes da minha e os milhões de mulheres que vivem hoje em países onde estes cursos não existem ou não são moda, não estamos preparadas para a vida. Falta-nos o papelinho que diz que pagámos dinheiro para aprender a ser humanas. 

Friday, October 25, 2013

Miúdos Felizes Comem Doces e Brincam Mais

Grande descoberta, não é? A sério, a UNICEF publicou um estudo sobre o bem-estar infantil em 29 países do mundo industrializado. Faltam dados, mas o estudo tem a qualidade de tentar auferir a sensação de conforto infantil de forma sensivelmente abrangente. Portugal ocupa o 15º lugar, numa tabela em que a Holanda ficou em 1º. Isto motivou vários estudos decorrentes sobre porque são os meninos holandeses “os mais felizes do mundo” – a premissa não é inteiramente correta, porque ainda não se inventou um método para medir a felicidade per si. De qualquer forma, é interessante tentar perceber a razão e sobre isso mesmo andei a ler.

A primeira correlação interessante é que as mães destas crianças também estão de bem com a vida. As holandesas são as que menos sofrem de depressão. Existe um livro da psicóloga Ellen de Bruin que explica porquê. De Bruin diz que a holandesa nunca está preocupada com o glamour, veste conforme o clima e as tarefas que vai executar e não se preocupa com a sedução porque tem prioridades diferentes; de igual forma, foi educada para ser direta e não “fazer fretes” a outrem; é-lhe impensável ter uma posição submissa relativamente ao homem; preza, acima de tudo, a sua liberdade individual. A juntar a este estado de espírito, as holandesas têm enormes vantagens para assumir uma maternidade confortável: a maioria das mães trabalha em part-time para se poder dedicar à família e, como se isso não fosse suficiente, os holandeses são também os pais que mais trabalham em part-time. Claro que este sistema só pode funcionar porque tem por base uma mentalidade cultural predisposta a tal e um Governo que apoia o conceito de família. De facto, e segundo li no Telegraaf, há 11 benefícios estaduais de que um progenitor pode beneficiar para um filho menor (escuso-me de comparações com Portugal).

Claro que há muito mais a influenciar o estado de espírito de uma criança. Por exemplo, a vida escolar. A atitude holandesa relativamente à escola é muito descontraída. Não há pressão para ser o melhor aluno da turma. Não há trabalhos de casa: na escola trabalha-se mas em casa brinca-se. Valoriza-se o tempo de lazer, dando-lhe a importância que realmente tem. Aos 12 anos, os meninos fazem uma espécie de testes de Q.I. que indicam (sem determinar) o tipo de Escola Secundária para onde vão – porque nem todos temos de ser doutores. Também não existe a febre de colocar os meninos na vela, no piano e na patinagem para os ter exaustos até às 7 da noite e depois na cama às 8.

Não menos importante para a felicidade é que os miúdos holandeses comem como miúdos. Comem batatas fritas com maionese, vendidas na rua. Comem chocolate de barrar no pão, sendo isso pequeno-almoço comum. Comem sanduíches e bolachas. Precisamente por isso ser normal e não proibido, não se atiram como malucos à mesa da comida quando vão a uma festa e os pais não estão lá para ver. A descontração na gulodice faz toda a diferença para se olhar para a comida de forma natural.

Last but not least, os miúdos são tidos em conta. A sua opinião é escutada em vez de se sentirem minimizados pelo tamanho a terem de ser uma cópia fiel das ideias dos pais (irritam-me os pais que querem um clone em vez de fomentarem um ser humano autónomo). Naturalmente, isto é reflexo da tal mentalidade de livre escolha que lhes é dada por quem os educa.

Receita para fazer uma criança feliz? Ela o dirá, um dia mais tarde, se foi ou não. Mas, certamente, há aqui aspetos a ter em conta... 

Friday, October 11, 2013

Drs. e Engenheiros

O Expresso publicou um artigo onde aborda o problema da indisciplina no Ensino Superior. Há quase 13 anos que leciono em Universidades e a primeira coisa que me ocorre é: porque é que não se fala disto? É verdade que nunca ensinei nos outros níveis de ensino, mas custa-me que se debata tanto a indisciplina no Básico e Secundário e se remeta o Superior ao silêncio, como se os nossos alunos sofressem uma metamorfose ao entrar na Universidade, que os deixa subitamente maturos e plenos de curiosidade intelectual.

Parece-me que, em Portugal, este fenómeno tem vindo a agravar-se muito. Claro que, neste país, o agravamento da indisciplina no Superior tem também a ver com a extensão deste ensino a toda a gente – sofrendo aqui o risco de me acusarem de pouco democrática… Mas não é isso. O Superior não deve pertencer a uma elite económica; mas devia pertencer a uma elite intelectual. Atualmente, não pertence e as consequências são e serão notórias. Além disso, o próprio Superior sofreu um descrédito – como todo o ensino, mas mais grave. De tanto querer ser acessível, baixou a sua fasquia em termos de conhecimentos. Ora, o perigo de baixarmos fasquias é que temos de as baixar em todas as áreas. Um indivíduo que já não tem de se esforçar para entrar e sair da Universidade nem acredita nessa instituição vai comportar-se de forma mais relaxada ou menos correta (conforme as personalidades). A este propósito, repare-se no comportamento dos estudantes de determinados países versus o dos estudantes portugueses em sala de aula – a Universidade não é mais do que o reflexo do Portugal de hoje.

É comum dizer-se que os alunos não chegam preparados para o Superior. Mas é verdade. Faltam conhecimentos básicos mas falta, sobretudo, curiosidade. Uma boa dose de curiosidade intelectual pode bem suprir uma educação deficitária, pelo que não se pode inteiramente culpar a lecionação anterior. Nos estudantes, há a ideia geral de que “não vale a pena”. É a sensação geral do País: falta de entusiasmo e deixa andar, já que vai tudo cair.

 Além disso, a indisciplina não são só os telemóveis a tocar e os tablets como loucos – são indisciplina, sim, mas são também uma consequência das solicitações do mundo atual e de alguma falta de organização e planeamento (inclusive de quem faz as aulas e que devia também apelar nelas aos benefícios da tecnologia mas também ser rigoroso quanto aos seus limites). A indisciplina é bem mais básica. É o não deixar o colega acabar de falar com o professor para saltar em cima com a sua opinião, é achar que insultos são normais, é fazer manicure na sala de aula, é ter a ideia de que as tarefas de investigação têm de ser todas agradáveis e divertidas, nem que fossem passatempos.

No entanto, o que me parece gritante é a falta de autonomia dos alunos em geral. Há uma grande dependência de pensamento – raros são os alunos que não ficam nervosos quando há questões que pedem a sua opinião e todos preferem testes americanos “de cruzinhas” aos testes com questões relacionáveis e com expressão de ideias. O aluno do Ensino Superior esquece-se que tem de ser, antes do mais, um constante exercício do seu próprio pensamento. Tem medo de pensar mas rebela-se na postura de menino mimado. É o perfeito súbdito da ditadura e não dá por isso.


Mas o artigo é curto e o assunto grande. Para resumir, diria que teríamos de perguntar aos alunos o seguinte, antes de ingressarem: ”Quer mesmo ir para a Universidade?” pois esta reflexão podia acabar com o ar aborrecido de quem está no Superior como se fosse obrigatório… Não temos todos de ser drs, nem somos todos iguais. Os docentes, já agora, também não são todos iguais (fica para a próxima!).

Friday, September 27, 2013

Mudança, ma non troppo


Em Portugal, são raras as situações que façam renovar a confiança no sistema. A generalidade das pessoas encara isto como uma fatalidade, faz parte do fatum que assim seja – “que se há-de fazer, têm o poder na mão, quem está de fora é que fica mal.”. Quem está de fora é, afinal, a esmagadora maioria, já que Portugal não é um país de gente interventiva. Se os políticos raramente são políticos por ideologia, sendo de determinado partido como quem é do Benfica, por tradição ou rebeldia familiar ou, bem pior, para ter acesso a privilégios, a população, por sua vez, é apática ou envolve-se em manifestações cujo ruído é maior do que o sentido e que têm provado não conduzir a muito mais do que fotografias para colocar no Facebook.

Se alguém se dedicar a estudar hoje o Modo de Ser Português terá motivo para umas boas gargalhadas. Que outra nação teria perdido meses e meses a decidir se o ex-autarca (agora encerrado num estabelecimento prisional) Isaltino Morais podia ser cabeça de lista nestas eleições? Enquanto se pensava, fez-se a campanha com Isaltino em cartaz e discutiu-se como seria quando Isaltino re-assumisse a Presidência da Câmara, mas desta vez estando preso… Repare-se como estas realidades, que noutros locais seriam quase esquizofrénicas, encantam o povo português e, longe de o escandalizar, nem sequer o surpreendem! A possibilidade de eleger um preso foi encarada com naturalidade. Fiel a si mesmo, o povo não demorou para colocar Isaltino à frente nas sondagens.

Há um lado profundamente masoquista no português típico - um aspeto que ainda hoje foge à minha compreensão, mas que existe. Roubam-no, maltratam-no, mas ele dá a outra face e ainda desculpa o criminoso com um “coitado, tem cara de bom homem…” Que outro povo tem um provérbio ao bom estilo de “Quanto mais me bates mais gosto de ti?” Só o português… Ora, uma sociedade onde impera um fundo de masoquismo será bem governada por sádicos, criando-se, assim, uma relação simbiótica muito pouco saudável mas essencial. Por uma certa preguiça, o português, lato sensu, nem sabe bem o que faria se lhe fosse dada uma real oportunidade de mudar as coisas. Mudar?! Mas que sabemos nós do desconhecido?! Outro provérbio que só em Portugal se ouve é “antes diabo conhecido do que bem desconhecido”, o que sempre me fez pensar que qualquer espírito aventureiro morreu nas Descobertas.

Seria impensável o caso que se deu em Inglaterra com Chris Huhne, Ministro da Energia. Em 2003, era ainda deputado, teve uma multa por alta velocidade, assumida pela sua mulher. Anos depois, já Huhne era Ministro, a senhora lembrou-se de contar toda a verdade. Acontece que em Inglaterra é crime mentir à Justiça (em Portugal nem sequer levantam a sobrancelha, tal é o hábito), de modo que Huhne se demitiu, o casal foi condenado a 8 meses de cadeia e a uma multa de 120 mil libras cada um. Em Portugal pensava-se logo numa conspiração contra o Governo e contra o bom nome de Huhne -  coitadinho, só estava a andar depressa…  Mas  o Primeiro Ministro inglês só comentou sobre o caso que “era bom que todos soubessem que, por mais poderoso, ninguém foge ao braço da lei”. Até parece que David Cameron não conhece aqui o retângulo…

Custa-me entender os meus compatriotas. Mas, com estes espíritos acríticos, não me custa entender o Ministro Crato quando disse, sexta-feira, que o Inglês deixa de ser obrigatório no primeiro ciclo, mas afirmou na terça seguinte, que é absolutamente obrigatório. É que o Senhor Ministro parte da ideia correta de que o português engole tudo – quiçá até nos possa convencer que temos um prolema auditivo e “não o ouvimos bem”. Ainda bem que conservamos intactas as capacidades gráficas que nos permitem fazer um X nos boletins de voto, já que de mais, pelos vistos, não precisamos, para que continue tudo em paz e sossego.

Friday, September 13, 2013

Brincar às Casinhas


Ultimamente, voltaram à baila as notícias sobre meninas forçadas a casar na infância em alguns países islâmicos, nomeadamente o Iémen. Não é que a situação alguma vez tivesse parado de acontecer e agora ressurgisse em pleno… Simplesmente, isto das notícias também tem as suas modas e o que hoje faz parangonas amanhã deixa de ter interesse porque a sociedade per si é um bicho sedento de novidade, não propriamente de justiça.

O escândalo recente da noivinha de 8 anos, cuja noite de núpcias com o marido de 40 conduziram à sua morte em consequência de lesões sexuais, não tem nada de novo. As próprias Nações Unidas dizem que um quarto das meninas do Iémen casam na infância e é sabido que muitas morrem em consequência desses casamentos; outras, com mais sorte, lá vão (sobre)vivendo … já sem infância, naturalmente. Se perguntamos às Nações Unidas o que é feito do respeito à Carta Internacional dos Direitos da Criança, a resposta é que nem todos os países têm a mesma noção do que é uma criança. Embora esta resposta possa ser aceitável – ou, pelo menos, discutível - para jovens de 15 anos, não me parece possível que algum país detenha o conceito de que aos 8 anos já se é adulto! A problemática parece antes assentar numa tentativa de justificação do injustificável – fossem as meninas do Iémen poços de petróleo e o problema já estaria resolvido há muito…

Aqueles que chamam a atenção para o problema (e há mesmo estudos feitos no terreno pela Human Rights Watch) dizem que a maior parte das meninas casam com familiares, o que, longe de constituir agravante, parece tornar o caso mais aceitável aos olhos do poder instituído. Para além disso, as próprias meninas são educadas na ideia de que casar é o seu objectivo de vida e que, se não casarem cedo, nunca conseguirão fazê-lo, falhando assim toda uma existência, inclusive porque o seu casamento ajuda ou mesmo permite a subsistência das suas famílias de origem. Há quem chame a isto venda de carne humana ou prostituição forçada de menores, mas parece que também se pode chamar “casar com o tio para garantir o sustento do pai”. Morrer em consequência disto é uma honra. Aliás, estas mortes precoces (sacralizadas pelo casamento) previnem ainda, segundo dados do mesmo estudo, que se venham a verificar casos deploráveis de jovens que possam perder a virgindade sem estarem casadas, desonrando as suas famílias para sempre e privando-as de dinheiro. Portanto, “honrarás pai e mãe” mas pais não são obrigados a honrar os filhos – afinal,  o Corão e a Bíblia não são assim tão diferentes, tudo depende da interpretação, extrema ou suave.

No Iémen, a lei diz que, ainda que se tenha casado com uma criança, só se pode consumar o casamento quando ela chegar à puberdade. É uma lei utópica. Todo aquele que decide casar com uma criança tem, certamente, a vontade implícita de exercer poder sobre um ser mais fraco e não vai esperar pela satisfação de uma vontade tão básica quanto sádica.

Nujood Ali, com 10 anos de idade, tornou-se a mais jovem divorciada do Iémen em 2008 quando se queixou num Tribunal (aonde foi sozinha!) de que era violada repetidamente há um ano. O Tribunal lá lhe deu ordem para divórcio, mas teve de indemnizar o ex-marido – a quem nada aconteceu por violar uma criança.

Portanto, a lei do Iémen acredita que, lá no fundo, há crianças que consentem em atos sexuais, ou até que os provocam. As Nações Unidas acreditam que há locais onde aos 8 anos já não se é criança. E nós olhamos para as armas químicas da Síria porque o Presidente Obama disse que era para lá que devíamos todos olhar agora. Não há espaço para mais nada nas nossas cabeças porque ninguém nos deu ordem de pensamento – quanto mais de acção.


Friday, August 30, 2013

O grande problema do nosso tempo

Perguntaram-me "Qual acha que é o grande problema do nosso tempo?" e isto veio na sequência de uma daquelas conversas sociais onde toda a gente diz pequenos nadas com grande distinção, parecendo todos nós de repente muito importantes e eloquentes como se as nossas opiniões – que não passam disso mesmo – fizessem alguma diferença ao mundo.
Bastaram-me dois segundos para dizer: "É a indiferença."
O meu interlocutor fez aquele ar sério e levemente enfadado das pessoas que, contrariamente ao Sócrates grego, sabem sempre muito e logo ali me fez um rol das misérias deste mundo (as quais, claro, nunca experimentou, mas citou-me vários autores e suas panaceias a aplicar a essas desgraças), provando-me, pois, que a minha resposta era “fantasiosa, apressada e até indigna de uma rapariga que parece tão inteligente.”
Não tive oportunidade de explicar a minha perspetiva – que em nada mudará a vida de ninguém, mas acho que podíamos pensar um pouco sobre isto… Quanto mais não fosse para não corrermos o risco de sermos indiferentes.
Já nada choca a esmagadora generalidade das pessoas. Nada as comove. Nada as motiva a agir, em nome de um bom sentimento, da justiça, da verdade, e muito menos para o outro.
Habituadas que estão a um constante bombardeamento de imagens de miséria, e, sobretudo, apavoradas com a possibilidade de perderem o que têm e virem a enquadrar-se no rol dos miseráveis, já poucos abrem a mão para ajudar o semelhante. Pelo contrário. Viram a cara, e não é por nojo. É por receio de estarem a olhar a sua futura imagem. É também por medo de que a pobreza seja contagiosa, como uma doença.
Aos mais doentes e mais fracos, o mesmo exato sentimento é reservado. Repulsa a que não é alheio receio do futuro, acidental ou natural. Basta ver o modo como são tratados os idosos, os acamados, os hospitalizados, os deficientes mentais – e recordo aquela absurda carta anónima que foi notícia a semana passada nos E.U.A., assinada por “uma mãe de um filho normal” que criticava a sua vizinha cujo filho autista a incomodava com “os seus ruídos animalescos” e lhe sugeria “metê-lo num zoo” ou eutanasiá-lo. Foi uma mãe a sugeri-lo a outra. Certamente uma mãe que desconhece o que é sê-lo.
Quando há conhecimento de uma maldade extrema como esta ou bem pior, que inflige sofrimento profundo, psíquico ou físico, a alguém, viram-se as caras. Os vizinhos dos maltratados nunca ouvem nada, mas queixam-se se a música está alta. A polícia não chega a tempo de ver crimes, e é admitido que, portanto, não aconteceram (como se um criminoso minimamente inteligente cometesse ofensas em público). Os médicos receitam Ritalina aos meninos que se magoam muito porque são hiperativos e não questionam os pais sobre tanta ferida. Os professores querem é que estejam todos calados – à semelhança do que querem os governantes. Toda a gente tem os seus próprios problemas e “não está para arranjar mais”.
A maldade aproveita-se deste sentimento de indiferença e floresce. Sempre foi assim ao longo da História da Humanidade. Uma colega minha que viveu a II Grande Guerra em criança num campo de concentração conta que após ver tanta morte, fome e dor, os miúdos já passavam pelas pilhas de mortos sem sequer levantar os olhos. Só davam graças por não estar lá. A verdade é que o instinto de sobrevivência é o maior instinto do Homem e, em situações de extrema crise, ele vem ao de cima da forma mais egoísta e selvagem.
Nada está mais sujeito a ruir do que um mundo onde todos tentam sobreviver isoladamente. É este, onde estamos agora.


Friday, August 16, 2013

Vida II

O Supremo Tribunal de El Salvador recusou a Beatriz (22 anos e grávida de 23 semanas) a interrupção da gravidez que ela pretendia. Beatriz sofre de uma forma de lúpus cujas manifestações põem em risco a sua vida durante o parto e, além disso, ficou provado que o bebé sofria de anencefalia, o mesmo é dizer que ia nascer sem uma parte considerável do encéfalo e que sobreviveria apenas algumas horas após o nascimento.
O Tribunal disse a Beatriz que os direitos da mãe nunca prevalecem sobre os da vida que ela gera. Se eu não soubesse qual era a história, a frase parecer-me-ia correcta.

Porém, esta mãe não estava apenas em risco de vida. Ela já sabia que o filho ia morrer (se é que viver sem cérebro durante umas horas se pode chamar viver inteiramente). Portanto, o  Supremo não condenou Beatriz apenas à hipótese de morte própria mas também à certeza de dar à luz um filho que só acalentaria por umas horas, vendo-o gemer e ter reflexos, com uma depressão côncava no sítio onde é suposto estar a cabeça. Não sei se o Supremo entende a ideia de tortura nos tempos modernos, mas é mais que certo que condenou à tortura uma pessoa que não fez um crime. Além disso, Beatriz já tinha um filho de um ano; se morresse, deixava um órfão, demasiado jovem para viver sem mãe.

 Se Beatriz desobedecesse à ordem incorria em 50 anos de prisão. Por contraste, o médico que fizesse o aborto teria apenas 12 anos de encarceramento. A disparidade da pena existe porque Beatriz é a mãe, porque lhe compete estar atenta à pílula ou talvez porque a apregoada igualdade dos direitos femininos só existe em teoria.

A Igreja de El Salvador congratulou-se por esta decisão pró-vida (???) do Supremo Tribunal. O Governo, na pessoa da Ministra da Saúde, autorizou uma cesariana pré-termo a Beatriz.

Faço parêntesis, pois ainda me surpreende um Governo ter de autorizar cesarianas em caso de risco ou, como recentemente aconteceu em Portugal, o Tribunal ordenar laqueações de trompas. Mas adiante, que nem é a liberdade que discuto mas sim e tão só o direito à existência.

Beatriz sobreviveu; a criança morreu cinco horas depois. Não houve aborto, a bem da nação.

Mas podia não ter corrido tão bem – “bem” porque isto foi o melhor possível, dentro de uma situação que os poderes instituídos tornaram bem pior do que era à partida.

Na Irlanda, Savita Hallapanavar, numa situação similar, não sobreviveu. Mas a Igreja ficou descansada, pois um anjo subiu ao céu em vez de permanecer no limbo; e o Tribunal suspirou de alívio porque se cumpriu a lei. Não houve pecado nem desobediência civil. Só dor e violência gratuita, acobertadas por uma sociedade evoluída. Mas antes isso do que derrubar ídolos com pés de barro.


Talvez o grande desafio da nossa época seja percebermos que não pode haver uma lei para todos os casos, cegamente analisados pela mesma regra. Independentemente de convicções ou crenças, cada caso é único, e deve merecer atenção e decisão individual. É um erro comum pensar-se que igualdade é o mesmo que justiça. No entanto, a justiça pode e deve contribuir para a igualdade. 

Friday, August 2, 2013

As solitárias moderninhas

Tenho uma colega já de certa idade que não tem família, e, portanto, passa as férias a viajar por onde lhe apetece. Por mais livre que a sua vida pareça, ouço sempre comentários  sobre a “solteirona” e isso levou-me a pensar: porque é que, numa sociedade que se diz igualitária, os homens celibatários são sempre tidos como interessantes e até “bons partidos” enquanto que as mulheres são vistas como frias e desesperadas? Pela mesma razão que os cabelos brancos dos homens dão charme e os das mulheres mostram a idade. A nossa cultura deu à menopausa um enorme peso, e tornou muito dura a passagem desse período para alguém que não chegou a ter filhos. Aliás, em inglês o termo “spinster” (solteirona) é reservado apenas para quem nunca casou nem teve descendência e traduz uma falsa ideia antiquada de virgindade preservada e de rigidez, tanto física como de ideais. O termo “bachelor” (solteirão) não tem qualquer conotação pejorativa e, embora designe quem nunca deu o nó, nada tem a ver com filhos – porque os homens não sabem ao certo quantos filhos têm (?)

Estou longe dessa realidade, mas há outras das quais posso falar com maior conhecimento. Por exemplo, ainda hoje, uma mãe sozinha é vista como alguém com um comportamento irregular. Aqueles que já estão a torcer o nariz, experimentem arranjar emprego, alugar casa, pedir empréstimos e qualquer questão legal ou burocrática comum. Quem não tem companheiro é, em primeiro lugar, vista como alguém desesperada por tempo, por dinheiro e por apoio porque “coitadinha, tem uma família sozinha” e, em segundo lugar, promíscua pois o suposto desespero mencionado aliado ao facto de se ter separado voluntariamente (no caso de não ter enviuvado) dá a ideia de que “atenção, está à procura de alguém”. Raros são aqueles a quem ocorre que uma mulher racional é perfeitamente capaz de organizar a sua vida, a curto e a longo prazo, da mesma forma que um homem (ou melhor, se não tiver de tratar de um homem dependente ou se tiver de suportar um violento). Para além disso, se já era ela que tratava da família antes de se separar, qual a diferença, excepto o facto de que agora tem menos trabalho e preocupações? E porque havia ela de estar à procura de um marido se abdicou dessa realidade?

Claro que estes exemplos se reportam a mulheres inteligentes. Concordo que não há muitas – nem há muitos homens inteligentes, embora de um e de outro existam imitações, que estão para os casos reais como o jogo electrónico d’Os Sims está para a vida…

Também admito que é mais difícil para as inteligentes terem companheiros. A nossa sociedade coloca o homem na eterna posição de professor e a mulher na de aprendiz, pelo que é necessário um homem muito seguro de si para perceber que esses papéis inflexíveis são absolutamente  irrealistas e que, por conseguinte, onde há duas cabeças pensantes há sempre dois professores e dois aprendizes que se vão revezando consoante os momentos. Porém, quando uma cabeça insegura se sente ultrapassada só tem uma forma de se fazer obedecer: submeter pelo domínio, seja manipulativo e astuto, seja por meio da força bruta. Essas tentativas de submissão são válidas tanto para homens como para mulheres – pois também há mulheres imensamente dominadoras,  que se escudam numa capa “soft” de eterno feminino para melhor dominar.


Voltando ao início: a mulher conseguiu, seguramente, muitas coisas na nossa sociedade. Mas, do ponto de vista cultural, ainda é olhada de lado se decide não ter par. Já o homem, par ou ímpar, continua a manter bom status. Ainda consideramos que a mulher jamais pode ser alguém sem um homem porque o papel primordial da mulher é “ser mulher de alguém” e o do homem é ser ele próprio.  

Thursday, July 25, 2013

O amor exigente


“Explica-me sucintamente em que é que os açorianos diferem dos continentais.” Pediu-me o meu colega, sofregamente académico, com uma caneta na mão em posição de tomar notas.

Gostava de saber condensar a minha experiência de um ser ilhéu, seguramente uma experiência afetiva e vivencial, mas depressa me dei conta que essas são as experiências mais difíceis de conseguir transmitir. A experiência de se sentir açoriano é uma ligação telúrico-cultural difícil, que Nemésio exprimiu muito bem em quase todos os seus escritos, sobretudo (ou talvez exatamente pela máxima razão de) ter sido um homem que viveu maioritariamente afastado dessas ilhas, embora nunca se tenha conseguido desprender delas.

Como em todos os imigrantes, há uma sensação de desterro e de prodigalidade muito fortes, acompanhados por uma ideia de eterno retorno que nunca é concretizável porque a terra que se perdeu está, efetivamente, perdida para quem a deixou. Mas nestes contornos, quase filosóficos, não seria o açoriano desterrado muito diferente do conceito mítico do judeu errante. E, na verdade, há lados bem diversos no que constitui o sentir açoriano que, aliás, só se define conjuntamente se apresentarmos os Açores como um todo frente à porção de terra peninsular.

Pois a primeira coisa que um açoriano sabe é que os Açores dificilmente se unem. “Tu de onde és?” é pergunta frequente para se saber a que porção de terra diminuta se pertence, logo nos colocando etnográfica e culturalmente numa realidade de ilhéus que nada tem a ver com as outras oito ilhas. Outra pergunta que ainda se vê nas gerações mais antigas é “Tu de quem és?”, prova mais que provada que um ser solitário não é ninguém nessas ilhas, onde o ostracismo ainda é arma de eleição.

Muitas vezes se fala da condição de ser açoriano misturando-a com a defesa dos Açores. Mas isso é governança autonómica. A condição de se ser açoriano é, hoje como ontem, ser picaroto, micaelense, terceirense, florentino, e restantes… antes de se sentir açoriano. Há nove identidades a constituir uma – tal nem sempre tem sido fácil de gerir e acredito que seja difícil de compreender para os que nunca vivenciaram os Açores.

Claro que todas as geografias deste mundo condicionam os indivíduos, moldando ou mesmo determinando a sua História. Creio que a açorianidade se torna tão intrínseca pelo tal “sentimento de solidão atlântica” de Roberto de Mesquita. É o isolamento –ou melhor, o insulamento - que define o açoriano, a tal clausura aprisionante de quem se sente definido pelo “mormaço nas pedras e fastio de morte nas almas”. A fuga marítima é tão natural para o açoriano como respirar, porque o próprio mar é o seu oxigénio. Para lá de todos os condicionantes climatéricos e geo-estratégicos que definem a psique açoriana, é aquele olhar o mundo a partir do mar que assume importância capital.

Se bem que não faltem ilhas por esse globo fora, talvez nenhumas sintam com tanto peso a ambiguidade irónica que sentem as dos Açores – plantadas no meio de um Oceano, entre os dois continentes mais influentes do mundo, poderiam ser ponte (o que, mesmo assim, invalidava que fossem destino) mas continuam a ser pedacinhos de terra encarcerantes com um infinito à frente. E é, com certeza, por isso que o açoriano é naturalmente fragmentado, quer o evadido quer o que permanece.

Transgressores que partem ou quietistas que se acomodam, todos continuam unidos pela Ilha que carregam, sedutoramente cómoda ou impiedosa asfixiante, sentindo-se, curiosamente, todos um pouco estrangeiros, um pouco sem lugar.

Como poderia eu explicar tudo isto a quem nunca vivenciou os Açores? Difícil. Limitei-me, pois, a falar da imponência da montanha vulcânica, do romantismo das lagoas, do basalto escuro, da aridez da urze e do calor da vinha, dos frutos do araçá, dos cheiros únicos das grutas e das cores transformantes da maresia. “Mas isso é tudo amor à terra” respondeu-me o meu interlocutor. Talvez seja, precisamente. Mas, como dizia Margarida Clark Dulmo ao embarcar no paquete para a Europa no fim de “Mau Tempo no Canal”, “o amor à nossa terra é o mais exigente.” Esse amor duro, que tem dificuldade em perdoar as traições de personalidade, guarda os recalques, tem repentes de rebeldia, e encontra guarida na recordação do cheiro do tempo da flor e da baleia, apesar de preferir apartar-se deles, é um amor de complexa definição. “O mais exigente” como disse Margarida, que, ao deixar a terra, não hesitava em fazer “uma cruz no cais… para sempre.”


Friday, July 19, 2013

Ecrã

Um dos aspetos negativos da nossa atual tendência para viver com as últimas caixas que mudaram o mundo é a dependência emotiva que criamos delas. Numa Ted Talk intitulada “Alone Together”, fala-se de como, hoje, as relações afetivas se vivem através da internet e do telemóvel. Sherry Turkle diz que, a primeira vez que deu uma conferência, a sua filha estava na primeira fila. Anos depois, a filha mandou-lhe uma mensagem de telemóvel a desejar boa sorte antes da conferência que a mãe ia dar… Essa mensagem foi para Turkle tão importante e real como um abraço: “Como veem, sou uma vítima dos aspetos que estudo”.

As pessoas mandam mensagens no telemóvel e no Facebook em todo o sítio, mesmo em funerais, à mesa do pequeno –almoço e em reuniões. Há quem mande mensagem a quem esteja sentado ao seu lado, em vez de lhe falar. Turkle, que estuda o impacto da tecnologia nas relações humanas, diz que a maior parte das pessoas se sente mais confortável a conversar no computador do que a dar as mãos.

O que os seres humanos pretendem é estar ali, junto do outro, mas também estar em todos os outros sítios onde não estão. A tecnologia permite criar a ilusão de que se está em todo o lado ao mesmo tempo e de que não perdemos quase nada dum mundo que queremos abarcar o mais possível.

A questão mais profunda é que o ser humano é obcecado pelo controlo. Usar os meios tecnológicos permite acessar aos botões “edit” e “delete” para retocar ou apagar coisas que dissemos e que correram mal. Mas nas conversações do dia a dia o que é dito… fica dito. Hoje, as pessoas têm medo de conversar sem o conforto da borracha tecnológica. Perdendo o hábito da conversação sem rede, perdem-se também os perigos e alegrias que ela encerra. Nomeadamente, o perigo de ter uma relação humana completa, ainda que com asneiras pelo meio.

A substituição da conversa frente a frente pela conversa tecnológica é tão comum que a generalidade dos adolescentes já tem dificuldade em conversar. Não o aprenderam e têm medo de se encontrar sem antes iniciarem contacto pelas redes sociais. A consequência psicológica disto é muito grave: implica solidão e uma falsa ideia de que o conhecimento de alguém faz-se com uma proteção de permeio.

A comunicação tecnológica obteve tanto sucesso porque o sentimento de que ninguém nos ouve é colmatado por redes sociais criando uma ilusão de ouvintes enquanto que também protegem de desilusões profundas. De fato, a tecnologia é tão poderosa que já existem os chamados “robots sociais” para acompanhar velhos e crianças, exatamente as camadas da população que estão mais sós.

A tecnologia apanhou-nos pelo lado mais vulnerável: estamos sozinhos mas temos medo da intimidade. É por isso que nos viramos para o ecrã, com as suas ilusões de intimidade e de controlo. Perdemos, portanto, a confiança de que os seres humanos estarão lá uns para os outros… mas a máquina amiga vai sempre lá estar, e com menos exigências.

A ideia de que nunca estaremos sozinhos com tecnologia é tão real que os solitários nas mesas e filas agarram-se logo aos telemóveis; têm pânico de serem vistos desconectados.

E, assim, como já ninguém sabe estar sozinho também já não se sabe estar acompanhado na vida real. Conversar com alguém ou refletir é complicado e é arriscado… mas bem mais compensador do que nunca se conhecer por dentro e do que romances e amigos num plano virtual.


Friday, July 12, 2013

Saskia Guhl - a German teacher at Corvo

Saskia Guhl is 27 years old and she was born in Berlin, where she graduated in English and P.E. She arrived at Corvo through the European program Comenius and has been on the island since the 14th September. 
We wanted to know what is Saskia giving to Corvo and what is Corvo giving to Saskia.


CC- You are working with all the teachers of English, in their classes for every school year. What exactly is the work you are doing with them? And isn't it hard to work with such different years?  

SG- Since this is a very small school with only 38 students in total there is only one English teacher. I support the teacher in preparing and teaching the lessons. This way we learn from one another, but I mostly learn from her. Moreover we give each other ideas for projects and lessons. Specifically I work with students that have special needs or need more attention. I teach some classes or parts of classes. Afterwards I get a feedback from my colleague teacher.
We teach in seven different groups since the first and fourth as well as the second and third grades are being taught together.
Teaching in all those grades gives me a wide range of experience which I appreciate a lot. It is very interesting to see the students and their English competence through all those grades.
One of my values to the English lessons is that I only started learning Portuguese a few weeks before I came to Corvo. Therefore the students were only able to communicate with me in English which was a great motivation for some of them. And they keep talking in English with me today :) 


CC- You are also starting a German workshop. I heard this is your first experience ever teaching German. How is it going? 

SG-I have started teaching the German workshop, open for the community, in November last year. I have to admit that I was struggling a lot in the beginning. I really didn’t expect to be teaching German in Corvo because I couldn’t imagine that people would be interested in learning it. So I was taken by surprise that I would actually be teaching my native language.
Especially teaching grammar items led me to reflect on my own language from a learner’s point of view which I have never done before. It broadened my language teaching skills. I feel that I will be able to use the gained knowledge a lot in my further teaching career. But more than teaching German it became a mutual learning experience meaning that I learned Portuguese and gained much more from the participants in return.
I feel highly honored to be able to pass on my mother tongue and I am grateful for the participant’s interest in me and my country. 



CC- You designed a project called "Let’s Discover Europe" aiming the students. What is it? Has it been well received by them? 

SG-The project consists of a passport that everyone of the students made by themselves. They filled in their personal identification card and some questions in English. Further it provides space to answer questions which are asked on a poster in the schools hallways. After answering the question concerning the European Union (in English) in their passport, they can hand it in in the according mailbox. For a correct answer they will be rewarded with a stamp in form of a star. At the end of the school year the student with the most stars will have won the journey. Most of the students have been excited about this and participated very well. As we are getting closer to the end of the school year and final tests the interest is slowing down a little bit but we are constantly working on trying to bring them back to answer our questions.


CC –Changing subject: why did you choose such a remote destination as Corvo? 

SG-Actually I didn’t choose Corvo. It feels like Corvo chose me. Originally I applied for an English speaking country or one of the Scandinavian countries. But the COMENIUS Program couldn’t offer me a spot in those countries. Instead, they asked me whether I would accept an assistantship in Portugal. More specifically Corvo, Azores. Embarrassingly enough, the first thing I had to do was to look up the Azores which I so far only new from the Azorean High on the weather report. Finding Corvo on the map was the next “journey”. I had already wondered, why the COMENIUS agency had asked me whether I could imagine an assistantship under such extreme circumstances…
Of course I googled it up and found the most remote, smallest, most isolated island I could imagine. I was shocked and thrilled at the same time.



CC- What did you know about Corvo before your arrival? 

SG- It took me a few days to decide what to do. What if the people would be totally strange, and didn’t like me? I could not imagine staying in an environment like that. But on the other hand I thought that the experience would be most unique and offered me a once in a lifetime chance to dive into a completely different lifestyle. I tried to find out as much as I could about the Island which was basically nothing. My agency couldn’t tell me whether there had been an assistant before (as I now know there was)… I was very happy when I found the schools homepage. There I could see a few pictures of young teachers teaching in a modern teaching environment with onlineconferences. So there is internet on the island, I thought relieved.
I finally decided against all odds that I would be taking this unique chance. I mean who can say they have lived on a tiny island with only 450 inhabitants in the middle of the Atlantic Ocean.
I couldn’t imagine anything here. So the first things I asked my principal were whether they had cash machines and where I could be living. She took a lot of time to answer my questions, very kindly, which reassured me in taking this adventure.



CC- Has it been easy to adapt to the isolation, nasty weather and all the conditions of a small and far out island? 

SG- I was very surprised how easy it was for me to feel at home in this place. I was very warmly welcomed by all the people I met. Especially the school that gave me all the help I needed to get settled in. But everywhere I went people would be smiling at me, even though they might not be able to understand me.
Instead of missing what I knew from a big city life in Berlin I learned to treasure the things you have in a small place like Corvo. I realized how little one actually needs to live a good, decent life. Instead of spending time riding trains from one end of the city to the other I get time to spend with friends every single day. The beach is only 10 minutes away as well as the airport and the harbor. You can take beautiful walks up and around Caldeirão and really get to know the people you share your life with. In Berlin I didn’t know my next door neighbors. Here the mailman knows me personally and tells me when I have got a letter. Everyone here is very connected.
Adapting to the winter storms really demanded some positive thinking. I was always cold. People here would ask me how this was possible and said I couldn’t be a real German because in Germany it was way colder. And it was. But we have heating in every building. So I only need a warm coat for outside. Here I was warm outside and freezing inside the buildings. During really cold days I would warm up my clothes with my hairdryer. Desperate times call for desperate measures.
But on the other hand I found it very humbling to feel the strong winds and rains and to be reminded how dependent we are on weather and nature, for example when there was a storm or rough sea, it would prevent the boat or plane from landing on Corvo.
Another interesting topic for me was cooking. I am used to get whatever I want to buy on basically every time of the week and day. Here you have to cook from what the store has got to sell. When the boat comes everyone goes to buy some of the few vegetables, fruits and yoghurt we get. Two days later hardly anything is left. I had to learn new recipes and when and where to buy what. Thanks to the great
colleagues and neighbors that helped me out whether it was cooking fish or getting rid of ants in my bed and kitchen I learned fast.



CC- Where had you taught before cominh here? Had you been elsewhere outside Germany? 

SG- My only prior teaching experience abroad was in Austria where I taught skiing for several weeks over different winter seasons. But what probably helped me adjusting to this new life was the fact that I have always been travelling a lot. To travel and get to know countries, people and cultures is a value that has been passed down to me from my parents who took me and my younger brother on trips around Europe every school holidays. During high school I participated in a language program which made it possible for me to stay with a host family in California for a total of 2 months and after graduating from high school I spent five months in Australia doing Work and Travel.



CC- As a teacher, do you find big differences between here and your country concerning teaching conditions and methods? 

SG- Since I am not yet a fully trained teacher in Germany I haven’t taught fulltime in Germany yet. I feel that one of the biggest differences is the conditions for teachers. As I heard so far it is very tough for Portuguese teachers to get a job let alone have a steady position. Many teachers only stay for a year and are constantly changing their place of living. This is not very common in Germany.
Concerning the teaching methods and conditions I only feel that teachers have to stick closer to curriculums. In my opinion German teachers seem to have a little more pedagogical freedom.



CC- What about the students? Are there big differences? 

SG- Especially with these students the difference are very noticeable. Students here are extremely friendly and well mannered. But I would not ascribe this to a difference between German and Portuguese students but rather to the big differences in their social and economic environment.



CC- What are your plans for when this experience in Corvo ends? 

SG- At the moment I am applying to the second part of my teachers training, the in-school training (Referendariat). I really hope to find a spot and finish my education in Germany so I can apply everything I learned and experienced during my COMENIUS Assistantship to my teaching in Germany.



CC- What advice would / could you give to the next Comenius teacher who is thinking about coming to Corvo? 

SG- Allow this amazing place to reveal its beauty and enjoy and learn from the people around you. They have so much to give. Also bring your warmest sweater for the cold winter nights without heating and try to talk and interact with as many people as you can.

Friday, July 5, 2013

Parabéns,você vai ter um negrinho!


Há uma campanha recente para a igualdade de direitos relativamente ao casamento que tem feito furor na Austrália. Este país reconhece as uniões de facto entre casais do mesmo sexo mas não permite o casamento. Entretanto, uma associação chamada PFLAG (Australia’s Parents and Friends of Lesbians and Gays) lançou a campanha para chamar a atenção das famílias compostas por casais de sexos diferentes para que “tenham a noção de que esta é uma questão que diz respeito a todos” e que “ser homossexual não é uma escolha; é o modo como nascemos”.

Acontece que o anúncio é, a meu ver, bastante infeliz. Apresenta uma grávida a fazer uma ecografia, acompanhada pelo seu radiante marido. A médica diz que está tudo bem com o bebé e depois pergunta ao casal se eles querem saber o que vão ter (subentende-se “menino” ou “menina”) e o casal diz que sim. Então, a médica diz “Parabéns, vão ter uma lésbica!” ao que se segue o casal em êxtase de felicidade pré-natal.

 É só a mim que isto me parece francamente tolo? Começo a compreender porque é que os sexólogos fazem tanto dinheiro hoje em dia: as pessoas estão obcecadas com a orientação sexual. É moda. Tão obcecadas que querem fazer acreditar que o próprio feto, com 3 meses de gestação, já terá claramente essa motivação.

Na rádio, perguntaram a Júlio Machado Vaz, aquele sexólogo português que se contorcionava todo no seu programa de televisão, o que pensava sobre o anúncio, e, curiosamente, o médico também exprimiu que era uma tolice pegada. A importância desmedida que as pessoas davam até há pouco tempo à formatação do ser humano em hetero é agora a mesma importância que dão à questão de se poder ser homo. Apetece dizer (comentou, com ironia): “Você vai ter um filho homossexual? Porreiro, eu vou ter um benfiquista.” Porque, reparem, a quem é que a sexualidade interessa a não ser aos próprios e a quem com eles se relaciona?

A nossa sociedade tornou-se tão especialista em publicidade que esqueceu que há coisas íntimas: é o Facebook, é o Big Brother, são bandeiras diversas que não deixam lugar para a intimidade de cada um.

Já para não falar no disparate subjacente que é a ideia subliminar de que podemos saber tudo sobre os bebés antes de eles estarem cá fora, para nos habituarmos ao suposto filho dos nossos sonhos… Como se fosse possível ter filhos formatados (agora sim, o verbo faz sentido), consoante os nossos apetites, sejam eles tradicionais ou de vanguarda –  até conheço uma mãe que quer que o seu filho seja, por força, homossexual embora ele não manifeste inclinação. Mas isso dava-lhe (a ela) um ar de tolerância e liberdade, para quem acreditar que a liberdade é uma via única.

Para quem me diz que estou a ostracizar um anúncio brilhante que fala dos direitos iguais para toda a humanidade, respondo: e se o anúncio fosse em tudo igual mas acabasse com a médica a dizer “Parabéns, você vai ter um negro!” Não achavam ridículo e até ofensivo? Todos sabemos que a cor da pele ainda é estigma, apesar de tudo. Mas não será que quanto mais importância lhe dermos não estamos a acentuar a própria estigmatização? Se sou igual, não tenho de me colocar à parte, de altifalante em punho.

Ainda a este propósito, muita gente se insinuou contra uma notícia de jornal sobre um “travesti” porque ele não devia estar mencionado como tal. Mas há dezenas de notícias sobre “estrangeiros” ou “repatriados” e ninguém acha que isso é discriminação. Como é? Só quando se fala da orientação sexual é que é discriminação? Estranha maneira de salvaguardarem os tais direitos iguais para todos…


Thursday, June 6, 2013

O jornalismo

Há já bastante tempo que “O Provedor do Ouvinte” (programa da Antena 1 da RDP) me levantou uma questão interessante. Neste programa, os ouvintes têm o direito de se manifestar por carta, pedindo contas ao “Provedor” sobre o que não lhes parece muito correto e gostariam de ver esclarecido. No caso, um ouvinte escreveu a perguntar se era eticamente correcto e profissionalmente não reprovável que a jornalista Eduarda Maio continuasse a coordenar as manhãs informativas, mesmo após a publicação da biografia do então Primeiro Ministro José Sócrates, da sua autoria.

A jornalista deu uma resposta muito interessante: ressalvou que a biografia tinha sido um estudo e não uma apologia; que a pergunta do ouvinte derivava da pouca tradição biográfica que havia em Portugal, onde qualquer biografia era vista como um elogio ou uma crítica, sem imparcialidade; que por ter feito a biografia de um socialista não tinha de se converter ao socialismo (citando a este respeito a boa biografia de Álvaro Cunhal, feita por um social democrata reconhecido do qual não há memória que se tenha tornado comunista) e acabou dizendo que, dentro deste prisma, ainda bem que não fizera um tratado de culinária pois corria o risco de se transformar em breve num formoso repolho.

Mas tudo isto levanta uma questão maior: porque é que se desconfia tanto dos jornalistas? Lato sensu, do jornalismo?

Há algum tempo atrás, o jornalismo era o quarto poder e havia respeito por ele, como existia por todos os poderes instituídos, mitificados ou exercitados. No entanto, actualmente, há descrédito acerca da classe e do trabalho jornalístico.

A verdade é que a notícia é feita para o público e esse bicho volúvel e esfomeado não está muito preocupado com a verdade e nem sequer com a veracidade – interessa-lhe mais a polémica circense.

Será inteiramente justo criticar o jornalista per si ou aquilo em que se transformou o jornalismo? Ele não é mais que um reflexo da sociedade e do que esta quer. Será que o jornalista vende um produto (o órgão de comunicação social para o qual trabalha) ou informa? Põe à frente o dever público ou o dever comercial?

Dúvidas metódicas à parte, se se modificou a escola jornalística é porque assim o quis a maioria social. Quando ouvimos dizer que o (tele)jornal se transformou na crónica do crime e no relato diarístico dos partidos, convém também pensar que a esmagadora maioria das pessoas só fala das desgraças deste mundo e das “caras conhecidas” – que substituíram, desde há muito, as conversas de janela das vizinhas de antigas gerações.

Outra questão obtusa é a enorme confusão que se anda a fazer – até por parte de muitos media – entre o jornalista e o comentador / analista. Vemos analistas convidados a pronunciarem-se sobre determinado assunto a dar notícias em primeira mão enquanto os jornalistas exprimem abertamente a sua opinião, misturando papéis lamentavelmente. As colunas de opinião dos jornais e os editorais deixaram de ser os únicos sítios onde há opinião – ela pulula como ginjas nas notícias propriamente ditas; onde os factos são acontecimentos que “podem” ser, cheios de reticências e exclamações. Como é que um emissor de opinião se pode permitir andar a distribuir pseudo-notícias? E porque há-de um jornalista dar as suas opiniões?


Há qualquer coisa que ficou esquecida no fundo da gaveta, como a naftalina… Se a deontologia é a “ciência do que convém” (e aqui não há qualquer tipo de “conveniência” tal como hoje a entendemos, mas sim elevada à conduta útil) está seguramente ligada à ética, à “maneira de fazer”. Hoje, estas palavras pouco designam o modo costumeiro de fazer da maioria… são conceitos pesadões e quase sem sentido. Mas onde reside, ao certo, a responsabilidade? 

Friday, May 24, 2013

Rói as unhas? Ups…



Acaba de ser lançado o DSM-5. Parece uma bomba mas não, é um livro. O Diagnostic and Statiscal Manual é uma publicação americana que se converteu na Bíblia da Psiquiatria em quase todo o mundo. De vez em quando, sofre alterações, porque as mudanças da sociedade implicam que algumas coisas deixem de ser consideradas perturbações enquanto outras assumem esse estatuto e, para maior confusão, algumas perturbações são incluídas noutras e ainda há as que mudam de nome. Portanto, mal comparado é como fazer acordos ortográficos só que na Psiquiatria.

O problema é que não estamos a falar de como se escreve, mas sim de como se classificam pessoas. Ora, colocar um rótulo numa pessoa pode ser definidor de tudo o que lhe vai acontecer depois. Não é pois de estranhar que os psiquiatras não se entendam sobre as alterações e da mesma forma que há ferrenhos adeptos há também os que discordam por completo das novas directivas. Não sendo eu do ramo, só me surpreende a facilidade com que hoje se (des)atribuem “problemas mentais”, numa sociedade onde a ideia de doença mental é um estigma.

Vejamos: você tem dificuldade em desfazer-se dos seus objectos, independentemente do seu valor real? Saiba que agora isso é um distúrbio mental, e você tem “distúrbio de acumulação” (hoarding disruptive disorder; estou a traduzir do inglês, pois não vi a versão portuguesa). Você ingere comida excessivamente, num período de duas horas, de vez em quando? Saiba que passou a ser classificado mais um distúrbio alimentar, o da “Alimentação Compulsiva” (que deve ser o de quase todos os portugueses ao jantar…) Terá você a mania de tirar as pelinhas junto à unha? Ah, meu amigo, isso é “skin picking disorder” e fique sabendo que é, desde a semana passada, uma doença mental. Há mais, mas já estou cansada de debitar normalidades.

Para além disso, as pessoas com Síndroma de Asperger já não o têm; agora têm “espectro autístico”; os bipolares têm uma nova classificação (aliás, sempre que esta Bíblia muda, os bipolares têm uma nova classificação, o que me faz pensar que está um bipolar a fazer o manual!); e, para gáudio dos pais que recorrem a medicamentos para manter as crianças caladas e quietas todo o tempo, incluem-se os critérios de “disruptive mood disorder” (a birra infantil transformada em bipolaridade infantil com direito a tratamento!) Para cúmulo, as parafilias foram todas (des)ordenadas outra vez, sendo que agora a pessoa pode ter um comportamento parafílico e isso não constituir um distúrbio –  já se está a ver o grande aproveitamento que os pedófilos podem fazer disto…

É grave. Por um lado, abriram-se de tal modo as portas do comum que se fez de qualquer pessoa um potencial doente mental (eu, que sempre roí as peles das unhas, descobri hoje que tenho de me pôr a pau!); por outro lado, desvalorizou-se tanto o comportamento incomum que os verdadeiros doentes são relativizados, e quiçá podem ser despenalizados de crimes, se este manual for seguido à risca.

 Por isso, enquanto leiga, gostava de ver uma nova classificação: todo o doente mental seria aquele que deliberadamente faz mal aos outros, i.e. as pessoas sem empatia, que é marca de todo o psicopata perigoso. Para mim, isto é somente maldade pura, mas já que a doença está na moda…

Entretanto, gostava de dizer que não sou minimamente contra a Psiquiatria. Pelo contrário. Acho que os médicos (incluindo psiquiatras), têm uma vocação e uma grande dose de bom senso e de humanismo. O problema é haver muitos licenciados em medicina e poucos médicos.