... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 30, 2016

Pasta de Arquivo

Esta semana, ocorreu-me um pensamento que, teimosamente, não me largava. Aconteceu quando vi uma secretária, muito profissional na sua função, a catalogar pastas de arquivo. Sou de natureza observadora e não consigo evitar fazer ligações entre as coisas, quase intuitivamente. Foi assim que me veio à mente a ideia, talvez despropositada, talvez  sentimental, mas o certo é que cá continuava: em que pasta de arquivo estaria eu guardada?

E foi assim que, quando entrei na reunião, já tinha colocado em segundo plano o motivo inicial da mesma. Já, quase inconscientemente, procurava no meu interlocutor sinais que me permitissem descortinar qual era a minha etiqueta, qual era, enfim, o rótulo com que ele me tinha colocado na sua estante arrumada. Seria eu um “protocolo”? Seria uma “entrada”? Se sim, para onde? Ao certo, o que queriam dizer essas palavras no seu léxico pessoal?

“Está incomodada?” perguntou-me o senhor, admirado com a minha postura, tão diferente do ar reservado e levemente distante que tenho (quase) sempre no trabalho.

Mas a ideia não me deixava. Alastrava, tomava forma. Fiquei a pensar em que pasta de arquivo me guardariam as pessoas de cuja vida deixei de fazer parte. Aqueles cujos projetos profissionais já foram também meus e dos quais me retirei, aqueles que moram ainda nos países e locais onde já vivi, aqueles que já foram meus alunos, aqueles que já foram meus vizinhos, colegas de escola, amigos de todos os dias ou de todas as horas, aqueles que dividiram comigo casa e outros leito, aqueles a quem mudei fraldas um dia apesar de não ser muito mais velha do que eles, aqueles que já não são.

Onde me guardam? Para onde fui depois da pasta de arquivo “saída”? Ou fiquei nos “pendentes”? Comecei a fazer o perigoso jogo de adivinhar o que pensariam os outros das suas memórias. Felizmente, depressa me dei conta da inutilidade de tudo isto quando, passados os portões do trabalho, me deram a mão.

Não posso perder tempo com arquivos (cold cases, como dizem os anglo saxónicos) quando tenho a vida entre as minhas mãos. 

Tudo isto me leva à ideia da passagem de ano, um momento que, enquanto tradição, sempre me provocou um certo torcer de nariz porque não aprecio datas marcadas em que me colocam a obrigação de me divertir. A diversão é como as restantes emoções da vida – não se marca por calendário como função compulsiva ou então… deixa de ser divertida, porque se constituiu em dever.

Porém, enquanto pretexto para celebrar a vida, adoro a ideia do Ano Novo. Na verdade, não necessitamos do 1 de janeiro para mudança porque, todo o ano, o próprio ciclo das estações nos recorda que a renovação é uma constante. Mas talvez um calendário novo seja uma ótima desculpa para deitar fora as pastas de arquivo que já têm teias de aranha e cujo pó só nos causa espirros e nenhuma recordação de alegria ou de calor. 

Friday, December 16, 2016

O último tango para Maria

Recentemente, o premiado realizador Bernardo Bertolluci veio a público dizer que a famosa “cena da manteiga” no seu filme “O último tango em Paris” não estava no guião. Consequentemente, foi uma total surpresa para a atriz Maria Schneider, na época com 19 anos, quando tudo aconteceu. Bertolucci combinou toda a ação com Marlon Brando, então com 48 anos, e encenou com o ator principal, e apenas com ele, uma violação anal que não revelou à atriz como se iria passar. “Não queria que ela atuasse, queria captar a verdadeira emoção de uma real humilhação.” Quando perguntaram a Bertolucci se estava arrependido de não ter dito nada a Maria Schneider, ele disse que arrependido não estava porque “há que fazer sacrifícios em nome da arte”, mas que é pena que a “pobre Maria tenha morrido cedo demais e sem nunca me perdoar”.

Sou cinéfila, mas não tenho paciência para o filme – não porque este pertença a uma geração anterior ao meu nascimento, mas porque o plot “americano de meia idade conhece francesa juvenil ansiosa por viver relação erótica com ele” pode ter tido muito sucesso quando foi lançado pelas cenas (então) ousadas mas hoje é um filme demodé para homens em crise.

Das afirmações de Bertolluci, muitas coisas se depreendem. Primeiro, ele sabe que pode fazê-las com absoluta impunidade. Nunca acontece nada a um tipo que é famoso, premiado e velho, confortavelmente instalado em 75 anos de prémios da Academia. Uma só destas premissas bastaria para o ilibar, mas as três juntas são imparáveis. Depois, repare-se no irrealismo e na arrogância do tal “sacrifício em nome da arte” que o realizador menciona, pois ele não fez sacrifício algum! Foi a atriz que foi humilhada pelo realizador (como ele mesmo reconhece), pelo ator com quem trabalhava e perante toda a equipa que assistia à cena… sendo que tais imagens ficaram para a posteridade num filme que pode ser repetido até à exaustão por quem quiser visionar a cena. Ademais, o sacrifício não foi consentido, pois não lhe foi perguntado se ela acedia à cena e nem tão pouco lhe foi dado recusar porque ela ignorava o que se ia passar!

No entanto, o mais curioso de tudo isto é que durante toda a sua (curta) vida – Schneider morreu na meia idade ainda, após internamentos psiquiátricos e problemas severos – a atriz proclamou isso mesmo: que não tinha sido avisada dessa cena, onde se sentira “humilhada e um pouco violada” por um “homem manipulativo e sujo” (Bertolucci), pessoa com quem aliás cortou contacto quando as filmagens terminaram. No entanto, nunca ninguém acreditou em Maria Schneider apesar dela manter sempre a mesma versão coerente da história. Talvez porque não era famosa, porque era mulher ou porque não convinha manchar a reputação e imagem de Bertolucci, o certo é que Schneider se converteu no elo mais fraco e foi conveniente não acreditar nela – de todas as inúmeras vezes em que contou o sucedido. Mas bastou uma única entrevista de Bertolucci a dizer que isto aconteceu para ninguém mais duvidar! E ademais, não o criticar: pois se o grande Bertolucci o fez, o certo é que ele teve uma boa razão -  foi o seu amor à arte… Vale a pena estragar uma vida para fazer um filme(zito).


O público alimenta o narcisismo de poderes tóxicos, não vê falhas nos seus ídolos mesmo quando estes apontam para os seus pés de barro, desculpa-os com bonomia e encontra razões para as suas perversidades, sublimando tudo numa espécie de força maior, o que só vem abrir caminho para posteriores e maiores venenos. A culpa não é só de Bertolucci. É de todos os que o apoia[ra]m, mesmo que apenas calando. 

Friday, December 2, 2016

Ilusionista crónica


Era uma vez um rapaz. Há alguns anos que não o vejo, talvez quinze ou dez, talvez apenas cinco, talvez muitos mais. Não sei se mudou. Pode estar mais gordo, mais moreno, pode ter mudado o corte de cabelo, ter feito a barba, e, portanto, eu não estou certa se aquele rapaz que eu recordo e procuro é o rapaz que hoje anda por aí. Aumenta, por isso, a minha dificuldade em encontrá-lo.

Certa vez, encontrei o nome dele na internet. Era uma exposição de fotografias dele. Fui. Ele não estava. Por um lado, achei mais fácil porque não tinha ideia nenhuma do que lhe dizer quando o encontrasse e ele então… pior ainda! Já o conheço. Ia começar a sorrir, muito atrapalhado, e com tanta vontade que eu por lá ficasse como vontade que eu me fosse embora. Ele nunca foi uma pessoa muito decidida nem com grandes capacidades verbais. "O mestre da fuga, o mago supersónico."

Vi a exposição e até reconheci algumas. Tudo tão bonito. Tão cheio de silêncio e de equívocos. Os pequeninos detalhes em que ninguém reparou. Mensagens que tanto podiam ser assim como não ser para quem não intuísse nem conhecesse o significado escondido.
Mas aquela atenção ao pormenor, à claridade, à sombra, o cuidado que punha em tudo.
Não assinei o livro da exposição; tive vergonha. Saí.

Depois, subitamente, voltei atrás, entrei e assinei. Então, dirigi-me à rapariga que lá estava e perguntei-lhe quando é que podia encontrar o fotógrafo e ela disse-me "Hoje não, mas amanhã ele passa por aqui ao fim da tarde."
Sou incapaz de esconder a minha ansiedade de ver alguém e muito menos o meu interesse. A rapariga - cujo laço ao fotógrafo devia ser mais íntimo do que o meu agora é, coisa que percebi imediatamente por uma intuição feminina intemporal - perguntou-me, de forma ligeiramente agreste: "Conhecem-se?"
Era uma pergunta cheia de direitos. E eu respondi, quase alheada:
"Sim, somos como irmãos. Não te importas de lhe dar isto?"
Entreguei uma fotografia gasta que tinha tirado da minha mala e a rapariga, já simpática, aceitou-a, esperando que eu escrevinhasse uma mensagem à pressa. Umas palavras sem nexo que não queriam dizer nada. O importante era o tempo condensado de memória que lá pus. Espero que ele tenha gostado - se é que alguma vez recebeu.
Ele nunca me respondeu. Não fiquei surpreendida porque não esperava retorno. Foi tal qual como quando, em criança, escrevi ao Pai Natal, desconfiando da utilidade do gesto.

O que o rapaz não sabe é que não se passa uma única semana em que não me aconteça este estranho fenómeno visual: estou na rua, no autocarro, num corredor da universidade e vejo um rapaz de costas, um rapaz a andar, em tudo igual ao que ele é. Perdão, ao que ele era (porque não sei se já disse, eu não o vejo há alguns anos). E é como se me acendessem um fósforo debaixo dos pés, cresço uns centímetros, estico o pescoço, sobe-me o ritmo do coração e penso "É ele!" e não é raro apressar o passo e chego a ir tocar no ombro moreno ou no cabelo espesso desse rapaz alto que vislumbro, e virá-lo e depois... nunca é, nunca é ele, é sempre outra barba mal feita, outras unhas roídas, outro riso claro, outro rapaz, enfim, a quem peço desculpas desajeitadamente.

E o que me vai acontecer quando for velhinha e andar de bengala é isto: andarei ainda a observar os rapazes de 20 anos, pensando "é ele" porque só me resta a memória, como uma fotografia gasta. Tal como uma pessoa desaparecida, para mim ele nunca vai envelhecer. Rendo-me, assim, à realidade de que já o perdi. Porque mesmo que um dia o reencontre, já não o irei reconhecer.

Friday, November 18, 2016

Diálogo (A)Político

-Obama amigo! Não é fácil falar contigo, pá! Já sabes que inglês não é o meu forte, mas é para isto que estão aqui os tradutores simultâneos. Vou explicar qual era a minha urgência. É que nós temos a solução para o problema do Trump.
- Nós quem?
- Nós, portugueses. Enfim, nós governo de Portugal.
- Ah sim? Um momento. (Oh, Biden, tu verificaste se isto não era da Candid Camera? Parece-me que tem todo o aspeto… Ah, é mesmo do Primeiro Ministro de Portugal… Ok) Desculpem, coisas internas. Então, têm a solução. Vamos lá saber. Convém que seja rápida que janeiro está quase aí.
- Precisamente, amigo. Não tem nada que saber. Aqui em Portugal eu sou Primeiro Ministro e não ganhei as eleições.
-… Come again?!
- Again e quantas mais vezes forem precisas, amigo. Vocês têm é que aprender connosco. Nós por cá não percebemos qual é o problema de mandarem esse tipo embora. Vai de carrinho. Ganhou? E então? Tu estás que nem podes de o ver entrar pela Casa Branca dentro. Tens de arranjar maneira de o meter fora. Não há-de ser difícil. Uma treta qualquer constitucional, uma brecha legal que se aproveite, enfim… Mas quem é, ainda por estes dias, o Presidente? És tu, aproveita enquanto podes.
- Eh…. Pois. Não pode ser. Nós aqui não fazemos as coisas dessa maneira.
- Bem vi, pá. Tu a recebê-lo, todo gentil, na Casa Branca, a dizer que há que perceber que a democracia é soberana, etc, etc, parecia que estavas a engolir 500 sapos enquanto apertavas a mão ao platinado cor de laranja. Epá, não pode ser. Vocês têm de largar essa onda de tentarem parecer gentlemen e essa coisa da democracia. Isso são cenas absolutamente ultrapassadas. O povo vota e tal, nhanha. Olha o povo vota e depois ganham gajos destes. O povo interessa mas é quando interessa, amigo.
- Na verdade, o voto popular deu a vitória aos Democratas. O Donald Trump ganhou porque o nosso sistema é um pouco diferente, existe a questão do Senado.
- Olha o Senado! Essas coisas legalistas são outra coisa que interessa apenas e quando joga a nosso favor. É como digo: vocês têm imenso a aprender com os latinos, caramba. Estão aí tão perto do Brasil, do México e afinal nunca se contagiam… Olha, cuidado, que já se ouviu dizer que a Rainha de Inglaterra mandou umas bocas sobre a democracia estar em queda nos EUA. Ainda vos apanha de volta para a Monarquia. Então agora, que estás a promover essas virtudes anglo saxónicas de bom perdedor e cavalheiresco…
- Há um tempo para tudo. A verdade é que não ganhámos.
- Arranja-se maneira de ganhar! Desenrasca-se!
- ….O tradutor não percebeu.
- É natural, pá. Dá-se um jeito, faz-se um arranjinho.
- … Continua a não perceber.
- Epá, salta-se para a cadeira. Não ganhar é irrelevante. O importante é sentar no spot. Olha, já te aconselhei, meu velho. Faz o que puderes que nós por cá assim que o Trump ganhou metemos logo cartazes por Lisboa inteira a mostrar que não somos lá grandes amigos dele. Sem hostilizar, claro. Cenas com piada. Nós, aqui, somos um país cheio de piadas. Até um dia, companheiro.
- Bye… (Oh, Biden… Vocês passam-me cada telefonema! Afinal, isto era ou não uma gag? Era, não era?)


Saturday, November 5, 2016

Amor

Um amigo meu, grego ortodoxo de origem, disse-me que o seu nome significa "aquele que é amado”. Com este significado, eu só conhecia o nome judeu "David" mas ele explicou que o seu nome – “Agapitos” - contem a mesma semântica.

Apaixonada pelas línguas, perguntei-lhe como se dizia "Amor" em grego. "Mas qual das variantes?" questionou ele. Não percebi. Ele insistiu: “Qual das variantes de Amor?”

A língua grega distingue vários tipos de Amor. Porque uma língua reflete uma cultura e a verdade é que usamos a mesma palavra Amor para sentimentos tão diferentes. Os ingleses, então, exageram! Love serve para tudo desde "I love coffee" a "I love walking in the rain" a "I love you" - e a facilidade com que dizem este "I love you" é mesmo impressionante... sem o peso, quase sentencial, de "Eu amo-te". Os portugueses não gostam de "Eu amo-te". Parece muito definitivo e comprometedor. Mas mesmo usando o subterfúgio "Eu gosto de ti" não há volta a dar quanto ao sentimento porque estamos sempre a falar do substantivo Amor

Os gregos não. Os gregos não ignoram a realidade. Aos vários tipos de Amor deram palavras completamente diferentes. Arrumaram o assunto sem confusões. 

Agápe é a raiz do nome do meu amigo. Agápe é o Amor por excelência, o Amor incondicional, a afeição profunda, a paz no Amor, a partilha no Amor, o Amor que não se incomoda por fazer sacrifícios, o Amor que está presente, o Amor, ponto final. É possível senti-lo por um Deus, um filho, um companheiro, um cão. Na língua grega, não há distinção de por quem se pode sentir este Amor assim. É o sentimento que conta, não o "objecto" dele.

Mas há outros tipos de Amor e todos sabemos disso. Talvez se misturem, por vezes. Atire a primeira pedra quem nunca fez confusão ou até se iludiu durante anos.  

Eros é o Amor que inclui desejo e, logo, vontade de proximidade e intercâmbio físico. O Amor íntimo. Os gregos acreditam que o corpo é uma celebração, nunca uma vergonha, jamais um pecado e que a intimidade é a festa da vida. Logo, Eros é a força da vida por oposição à força da morte que existe em todos os seres humanos e que é preciso combater. É muito complicado definir o Eros grego porque, instintivamente, pensamos em sexo. Mas isso não resume a essência. Eros implica querer. Mas o querer grego não se resume a tocar um corpo - ou a dar (d)o seu. É a busca da beleza enquanto ideal de perfeição e, nessa senda, a sensualidade acaba por ser uma forma de comunicação para chegar ao não-corpóreo, ao plano transcendente. A Beleza, para os gregos, equivale à Verdade, porque são Absolutos. E chega-se ao Absoluto por meio de Eros. Mas nem todos são capazes de viver Eros desta forma tão completa e profunda. Então, Eros pode ainda dividir-se em vários planos menores.

Philia seria um Amor de companheirismo. Implica conforto, familiaridade e lealdade. Não existe nele paixão, mas existe constância. É o tipo de Amor que une ao longo do tempo. Não é encarado apenas como aquele cimento entre amigos e família, mas também como aqueles amores que nutrimos por algo que gostamos muito de fazer (daí philosophia, amor pela sabedoria). A lealdade solidifica-se numa base regular e contínua, quando a compreensão intuitiva e o gosto comum existem entre pessoas de quem gostamos muito. 

Ainda há um amor a que se chama Storge, espécie de afeição costumeira, isto é, adquirida pelo costume de estar com alguém. Uma afeição que nasce do hábito apenas. 

Se já acham que o Amor é complicado (ou que o Amor em grego é complexo) deviam ter ouvido a conversa. Então" pensei "No meio de tanta designação, torna-se mais fácil ou mais difícil explicar a alguém o que sentimos?"

"Explicar não é importante. O importante é que tu saibas o que sentes. Isso nem sempre é fácil e, por vezes, muda. Há que aprender a ouvir o próprio corpo. Mas quase todos têm uma dificuldade enorme em ouvir-se e, contrariamente, vivem cheios de pesos.” E como eu retorqui com ironia, ele calou-me daquela forma unificadora e cativante com que os gregos encaram a vida:O corpo não é um vaso da alma, como diz a vossa cultura. Trata-o bem. Escuta-o. Não está lá dentro uma substância estranha, não competem os dois… Toda tu és essa alma. És uma só." 

Por vezes, fico com a sensação de que não devia (ainda) ser professora. Afinal, sou estudante.


Friday, October 21, 2016

Fábio


Muito discreto e sem estender a mão: "Tem dinheiro para eu comprar um bolo?" Completamente honesto, quase infantil. 

Foi como um portal no tempo. Regressei imediatamente à primeira infância, arrastada por uma mão que me apertava o músculo do coração sem qualquer piedade. Regressei à minha escola, ao Lar das Meninas, a mesma cara envergonhada, o mesmo destino de quem come porque pede dinheiro ou então rouba, os mesmos olhos que seriam tristes se não fossem acomodados, que seriam assustados se não fossem já inertes de tanto apanhar tareia, as mesmas mãos cheias de cicatrizes. Tive a mesma sensação, inteira e avassaladora, de desespero e de mágoa. 

Ele tinha uma expressão de miséria completa - de dinheiro e da outra, miséria de vida desprezada. Misérias disfarçadas por roupas dadas que até estavam em estado decente. Hesitei um momento sobre como o abordar. “Não devias estar na escola?”

Encolheu os ombros e foi até ao bar, onde começou a comer e a beber com muita sofreguidão uma sandes, um sumo e um bolo que lhe venderam mais barato porque era de ontem e estava muito duro. Sem creme, sem açúcar, só massa, nada de doce. Tratavam-no com familiaridade. É o mendigo habitual das 4h30. 

Deixei, como que por acidente, 2 euros em cima da mesa e tudo por comer.
Ele veio atrás de mim:
"Esqueceu-se do seu dinheiro ali. E da comida também. Se já não quiser, eu como."
Empurrei o dinheiro e o sumo para o lado dele e disse "podes ficar". 
Já antes tínhamos olhado longamente um para o outro mas ninguém soube o que dizer. Não nos ensinaram muitas palavras de boa vontade. Ele tinha tido muito tempo para apanhar o dinheiro se quisesse.  Não havia mais clientes e a rapariga do café estava de costas. Mas não o fez.
Cheguei injustamente a recear os olhares... Quando lhe disse "podes ficar", não olhou mais para mim, mas disse "obrigado". Verdadeiramente envergonhado da sua pobreza material. 
Todo este regresso ao passado e às anteriores sensações de sinestesia de espelho causaram-me uma perturbação forte. Voltei a ser eu pequenina.

No dia seguinte, à mesmíssima hora, mas num sítio completamente diferente da cidade, é nítido que o Universo procura dizer-me algo porque o encontro novamente. Está vestido com roupas dadas; ficam-lhe umas grandes e outras pequenas. Conheço o estilo, que já foi o meu. A princípio não o vejo e é ele que me cumprimenta. 
"Menina, tudo bem?" 
E fala-me de uma data de coisas, metade das quais miseravelmente não percebo. Não pede nada, não invoca nada. Mas sou eu, memória apertada a escorrer sangue, alma e coração como que sofrendo a carnificina do que já foi e volta a ser, sensações físicas que me torturam até ao espasmo das mãos que se contorcem, que lhe digo, embora sofra de uma enorme vergonha "O que é que posso fazer por ti?" 

E esta mesma pergunta o faz pensar que sou uma “menina”. Mas sou barro da mesma lama, madeira da mesma árvore. "Da mesma árvore se faz lenha para a lareira e um santo para o altar". Somos os dois lenha de lareira, mas um foi salvo da fogueira para enfeitar um arranjo de outono e o outro olha-a como se de santa se tratasse.  


Friday, October 7, 2016

Rapariga perdida [de si mesma] no metro


A mulher bem vestida entra no metro com uma criança e senta-se no único lugar disponível. E aí está a outra, sentada em frente. Faz tanto calor que a outra não pode evitar trazer um mínimo de roupa. Vêem-se-lhe o pescoço, os braços, todas as veias marcadas pelo (ab)uso de seringas. Até poderia apostar que barriga, tornozelos, e pernas também estarão assim, mas ela veste calças. Tem o cabelo sujo e a cara magoada. Tem feridas no corpo, próprias de quem se coça com escova. Os lábios com cicatrizes estão tão marcados de golpes que lhe deve ser difícil comer. Um olhar parado, de ausência. 

As pessoas olham-na com um misto de curiosidade e de nojo. E aquela rapariga esburacada, cuja palidez de cadáver sobressai num transporte onde quase todos são morenos de um Verão tórrido, tem, de repente, um lampejo de lucidez quando o homem que está ao lado dela a mira mais demoradamente. Senta-se direita e vira-lhe as costas, como se lhe dissesse que também ela tem o direito de o desprezar a ele. 

Nessa altura, o metro pára e na janela vê-se um anúncio que diz "Produto X mata piolhos e lêndeas". A criança da mulher bem vestida pergunta: "O que são lêndeas, mãe?" A mulher hesita e a rapariga esburacada, que despertou da sua letargia, responde primeiro "Lêndeas são os filhotes dos piolhos!" A mulher não esperava que aquele cadáver ambulante falasse e tartamudeia: "Pois... é isso." A criança questiona muito audivelmente (porque as crianças são assim, não conhecem as convenções sociais apropriadas) "Mãe…Quem é esta?"

A rapariga olha-a, interessada, porque depois de ter reparado no olhar de asco do homem quer saber como vai esta mulher responder. Heróinomana será, mas ainda lhe interessa isto, ao menos neste momento. "É uma senhora", diz a mulher. A rapariga sorri (uma senhora!), e diz à criança "Sabes que os piolhos gostam de cabeças limpas? As pessoas pensam que os piolhos só andam em gente suja mas não! Eu morei cinco anos na rua e nunca tive piolhos. Mas quando era criança e andava na escola, morava numa boa casa e tive a cabeça cheia deles!" Dita esta sua sentença - e disse-a muito alto porque era para as pessoas do metro que falava, queria que soubessem um bocado da sua história, a pele toda esburacada como uma renda teria, mas piolhos não e já não morava na rua - olhou para a mulher, esperando concordância. Que havia a outra de dizer? "Na verdade não sei... Suponho que pode acontecer" disse a mulher, aparentando naturalidade. "Pois é mesmo assim" continuou a esburacada, que entretanto se tinha virado para a bem vestida desde que esta a presenteara com o antroponímico "senhora". 

"Agora vou ter de sair do metro" explicou a rapariga, continuando a falar muito alto, e era com tanta raiva como com altivez e orgulho que falava à sua assistência de passageiros (embora só olhasse para a mulher) "porque tenho de ir trabalhar!" rematou. 

Levantou-se e colou-se à porta, porque em pouco tempo estaríamos perto de uma estação, numa zona da cidade famosa por muitos tipos de comércio, inclusivé o da própria carne, que suponho ser o que a rapariga vende - para depois comprar o que a entope. E eis que a criança pergunta à mãe "Onde é que esta senhora trabalha?" A mulher ficou de novo em cheque, sobretudo porque a rapariga a olhava desafiadoramente a ver como se ia safar. Consciente de que a rapariga esperava uma resposta sua tanto como a criança, a mulher disse "Ela pode fazer muitas coisas... Neste sítio, há muitas lojas e cafés... Se calhar, trabalha nalgum!" A rapariga sorria melancolicamente, e não a contradisse. Antes de sair do metro, recuperou o seu ar ausente, que lhe dava muito jeito - já que ia trabalhar e há tarefas das quais convém estar alheado. De facto, a julgar pelo ar dela, a rapariga vivia alheada de toda a sua vida. 

"Espero que não trabalhe nalguma loja horrível. Porque ela não está nada feliz. E não cheira muito bem" disse a criança.  

A mulher bem vestida nada tinha em comum com a rapariga esburacada. No entanto, quando saíu na paragem seguinte, apertando com força a mãozinha da filha na sua, tinha uma ruga sombria na sua expressão sensível que parecia indicar o quanto sabia como era fácil poder ser ela a estar no lugar da outra, caso a roda da fortuna tivesse girado de forma diferente nalgum dos momentos da vida.


Friday, September 23, 2016

Competir


A única coisa que me entristece no início de um novo ano letivo é saber que começou mais uma competição. Cada ano, este espírito se intensifica. Os alunos da Universidade competem entre eles, mesmo que digam que não. Por seu lado, os docentes, árbitros no jogo dos alunos, também competem! Chegados ao fim do ano, se estamos no top dos professores, muito bem. Se não estamos no pódio, é como nos Jogos Olímpicos: de pouco nos serviu participar.

No entanto, o que mais me preocupa como ser humano não é esta competição de gente adulta. É a competição que se instila nos miúdos desde o primeiro dia da sua vida (pré)escolar.

De forma generalizada, ser “o melhor da sua aula” é a ambição incutida em toda a criança por pais e professores. Saudável e desejável se estivermos a falar da ampliação de conhecimentos. Porém, o mais comum é estarmos a falar tão somente da obtenção de uma nota. Há crianças portuguesas que fazem festa de graduação da Pré – parece piada, mas não… A Pré é levada a sério. Como se não tivessem muitos anos para serem sérios sem terem de começar já aos 5, de beca fingida e capelo.

Os exames nacionais começam no 2º ano de escolaridade. Há crianças que passam verdadeiros tormentos por causa disto, não tanto pelo que significa (todos nós fizemos exames e sobrevivemos) mas pela pressão que os pais lhes incutem – “Vê lá não fiques atrás do João!” “Não apanhes pior nota que a Maria!” De facto, há pais que, como treinadores desportivos nunca iam fazer fortuna, tal é a ansiedade que vertem. São os mesmos que stressam imenso com os trabalhos de casa e os de férias - não há maior contra senso do que a frase “trabalhos de férias”, aliás.  Levantaria burburinho de sindicato caso a criança fosse um trabalhador, mas toda a mãe e todo o professor sabem do que falo.

 A criança trabalha mais do que um adulto, se formos a pensar corretamente. Deveria dormir bastante mais do que um adulto e ter mais horas de lazer porque, literalmente, aprende com a experiência da brincadeira. Mas a Educação está cheia de “metas” e corremos tanto para lá chegar, carregados de livros – em cada ano que passa, é maior o peso destes e mais a soma do dinheiro que se gasta neles. Livros são sabedoria mas quando saboreados com intenção, entendidos… Haverá tempo para tal quando os consumimos como pastilhas?

Nesta confusão, os alunos, como atletas magoados, irritam-se. Os professores, como treinadores, mal compreendidos, fazem o mesmo. Os pais, que são os mais fervorosos adeptos, invadem o campo. Não é raro jogarem todos contra todos.

As próprias férias são competitivas. Pergunta-se aos miúdos que férias tiveram e o desgraçado que não viajou, que não consumiu, é um falhado social. Como o é aquele que não tem Iphone ou Ipad ou roupa de marca. Desde cedo se ensina que a escadaria social importa.


Vivemos uma competição desregrada, mas sobretudo inútil porque estéril. O meu filho perguntou-me (por ocasião do desaire escolar de um amigo) se eu gostaria dele igualmente caso ele não fosse bom aluno. Ele gostaria de mim se eu não fosse professora da universidade? Ele ficou muito surpreendido, porque gostar de mim não tem nada a ver com a minha profissão. Pois eu gostar dele também em nada se relaciona com ele andar na escola a aprender… e a brincar, esfolar-se, arranjar namoradas, confundir vespas com abelhas, brigar e fazer as pazes com amigos e estragar as calças e os sapatos mensalmente. Ainda que eu dispensasse este último item. 

Friday, September 9, 2016

Agora que tenho a vossa atenção...


O boom que se deu no turismo em Portugal nos últimos anos teve consequências, sobre as quais já muito se escreveu – acerca dos prémios (Portugal, melhor destino turístico da Europa; Lisboa, melhor cidade europeia para viver; Portugal, país que mais prémios de turismo acumulou); acerca dos preços que aumentaram exponencialmente (nomeadamente no aluguer de apartamentos para quem quer viver cá e não é turista, ganhando um ordenado tuga!); acerca da diversidade cultural com que nos vimos a braços – embora os imigrantes já a tivessem, de pleno (eu diria de maior) direito, instaurado.

Isto tem piada quando se mistura aqui a questão do burkini. Primeiro, e para que a questão fique arrumada, esclareço que não sou nem contra nem a favor do burkini. Porque não tenho de ter nada a ver com a maneira como alguém se veste. Seria tão ridículo eu pronunciar-me contra ou a favor do burkini como contra ou a favor da gravata ou da minissaia. O resto é ruído à volta do assunto.

Há questões de bom gosto na(s) roupa(s)? Com certeza. E de bom senso também. Mas umas e outras ficam com quem as veste. Pessoalmente (sublinho que é “pessoalmente”) eu não gosto de ver homens com camisolas de clubes de futebol (exceto se forem mesmo jogadores) nem homens de gravata, ou mulheres de lantejoulas nem com padrões de zebra. E também não gosto de ver homens de lantejoulas e zebrados embora já ache uma certa piada a mulheres de gravata, dependendo do estilo.

 Mas, essencialmente, e aí é que está a questão: eu não tenho nada a ver com isso. Porque raio haviam os outros de se vestir para me agradar? E, mais importante, porque tenho eu de policiar a aparência alheia?

Disse-me um colega que a questão é as pessoas estarem vestidas na praia, o que já foi amplamente rebatido com o argumento dos mergulhadores, dos surfistas e das mulheres da Nazaré que andam mergulhadas na água com os seus saiotes. “Ui, mas a cara tapada”. Pura ignorância. Não existe cara tapada num burkini – nem na maior parte das vestimentas muçulmanas para mulheres, aliás.

“Ah, mas aquilo é um símbolo religioso.” Mas esperem!... O Estado não é laico? Então, se os Estados europeus são laicos permitem o uso de todo e qualquer símbolo religioso. Eu uso uma Estrela de David ao pescoço e nunca fui atacada por usar um símbolo judeu (sendo que sempre o usei, inclusive em país muçulmano); andei numa escola católica e a profusão de cruzes na parede era notável e notória. Quem não queria olhar, virava a cara.

“Oh, mas tu és feminista! Devias estar alegre por ver um homem a defender o direito à mulher não ser oprimida. O burkini é uma opressão.” Outra ignorância. O feminismo defende igualdade de direitos, e não é isso que vejo quando observo uns tipos fardados a obrigar uma mulher a despir-se porque os outros também estão despidos (nota: os polícias estavam vestidos na praia; deviam ter-se despido, segundo a regra “na praia não se pode ter tanta roupa”!). Suspeito que falamos de pessoas que gostam de controlar e não de ajudar a desoprimir… E qualquer controlador é perigoso – começa pela roupa, acaba não sabemos onde.

Mas se há homens tão subitamente preocupados com a opressão que algumas mulheres alegadamente sofrem por vestirem burkini, fico bem feliz. Porque seguramente esses homens estarão também muito interessados em combater os direitos desiguais que as mulheres sofrem a nível laboral e salarial (aí mesmo ao vosso lado), ao nível da justiça, o número incrível de violações e abusos que existem, a violência doméstica e sexual que passa impune, etc, etc. Ah… era só a roupa a mais na praia que incomodava? Bem me parecia. Eu compreendo. Eu também gosto de olhar para gente bonita. Mas elas têm o direito de querer que eu não olhe.


Friday, August 26, 2016

Elementar, meu caro...

Interroguei-me certa vez nestas crónicas sobre os anúncios de jornal explícitos e não raro acompanhados de imagem que prometiam satisfazer “todas as fantasias” dos que para lá telefonassem – sendo a prostituição ilegal em Portugal, como eram tais anúncios possíveis, ademais com número de telefone, o que desde logo facilitava à Justiça encontrar estes “fora da lei”? Outra situação igualmente estranha do ponto de vista “ilegal… mas não tanto” é esta de que hoje vos falo.

A profissão de detetive privado existe em Portugal. Não pensem que é uma coisa ao estilo Sherlock Holmes, porque o detetive privado em Portugal não é chamado pela Polícia para resolver os casos que ela não consegue resolver nem retira fios de cabelo ou de roupa para chegar a conclusões dedutivas brilhantes sobre quem assassinou Y ou raptou X. De facto, e como consta do próprio adjetivo que os define, são contratados por privados. E para quê? Para (per)seguir pessoas. Há blogs na net – o que tem piada dado o suposto secretismo da profissão - em que revelam que a esmagadora maioria do seu trabalho é desvendar suspeitas de adultério, sendo quase sempre contratados por ex ou atuais maridos para saberem todos os passos das ex ou atuais mulheres no medo de que estas tenham outros companheiros.  Enfim, são cães de fila. Esperam à porta da escola, de casa, vão consigo no comboio e andam atrás do seu carro, sentam-se ao seu lado no café, espreitam pela sua janela e incomodam as suas crianças.

Pensarão alguns: qual é o problema? Cada um gasta o seu dinheiro como quer. Isto até cria postos de trabalho. Além do mais, estes homens (e mulheres, pois também há detetives mulheres, embora menos) podem até comprar tecnologia se quiserem ser verdadeiramente new wave  – gadgets para tirar fotos disfarçadamente; chips para entrar no seu computador;  formas de aceder ao seu telemóvel e fazer escutas (estas últimas coisas já entram no âmbito de ilegalidades que têm de ter a ajuda de terceiros, mas desde que haja pessoas dispostas a agir por dinheiro neste cenário de crise económica já para não falar do cenário da crise de valores…). Convenhamos, fazem andar a economia.

O problema é simples. Se calha ser você a pessoa que está a ser visada, você é objeto de perseguição. Ora, a perseguição tornou-se, recentemente e em boa hora, crime em Portugal (Lei 83/2015 de 5 de Agosto). “A perseguição ou o assédio podem ocorrer por qualquer meio, direta ou indiretamente, desde que seja uma forma adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da pessoa alvo desse comportamento.”

Certamente, a profissão de detetive, que está enquadrada legalmente, até tem uma Associação Nacional, código deontológico e cujos membros até podem passar recibos dos valores que cobram à hora, se salvaguarda. Quando você - a visada, pois são quase sempre mulheres - fizer queixa na Polícia e identificar o indivíduo que a (per)segue, o detetive não tem mais que fazer do que identificar, posteriormente, o seu cliente.

Isto porque nunca é demais dizer que todas as obsessões acabam mal e que numa obsessão nunca há traço de inocência. Recorde-se que em 2015, 27 mulheres e seus filhos foram assassinados por “crime passional” - nome contraditório que se dá ao crime que é feito por quem, diz a Justiça mata por amor. Grande parte delas se queixavam de serem perseguidas por quem as assassinou, mas se há coisa que confirma que a Justiça é cega é esta mania de achar que faca, pistola e amor combinam porque “o drama faz parte do amor português”.


Voltando à metáfora canina anterior, bruta mas real, eu desconfio de todo o cão que não larga o osso. 

Friday, August 12, 2016

Silly season # 2

Diz-se maldosamente que em Agosto ninguém trabalha – é mentira, até porque com a quantidade de turistas que Agosto significa há muita gente cuja única coisa que faz em Agosto é trabalhar. No entanto, operadores turísticos à parte, há um certo sentimento de folga que se estende pelo país inteiro. Por isso, quem tem urgência em fazer algo, depressa descobre que não vai conseguir.
Tivemos disto exemplo quando eu e um grupo de amigos fomos, armados de boa vontade (todos) e músculo (alguns, porque eu não…), ajudar um de nós a mudar de casa. À hora marcada, lá estávamos, depois de termos feito uns quantos kms de carro – porque esta coisa dos “arredores de Lisboa” é um conceito muito vasto.

O primeiro desaire aconteceu quando não apareceram os homens das mudanças. Teria a carrinha dos móveis tido um acidente? Ter-se-iam perdido? As horas iam passando e as hipóteses iam-se tornando mais fantásticas. Teriam sido assaltados na estrada? Teriam aproveitado para surripiar os velhos móveis da avó e vendê-los a um antiquário? Por fim, para acabar com o nosso sofrimento, ao fim de algumas horas (durante as quais não atenderam o telemóvel nem telefonaram), lá contactaram a esclarecer: “Desculpe, mas não nos é possível aparecer hoje porque tivemos um problema com a viatura. Agora, só amanhã.” Só isto. Queres reclamar? Serve-te de alguma coisa? Queres os móveis, não queres? Os móveis estão connosco e damos-tos amanhã. Sem mais explicações. A ver se não te exaltas nem chateias.

Um bocado aparvalhados com esta falta de bom “customer service”, engolimos em seco e lá voltámos a fazer o caminho todo para voltar no dia seguinte. Mais aventuras nos esperavam. Nesse segundo dia, enquanto arrastávamos móveis e transpirávamos como miseráveis, foi a casa de eletrodomésticos que não entregou os ditos. Esperámos até à noite e já considerávamos dormir todos ali, como se fosse um festival de música improvisado mas com tecto (porque duche também não havia nesta casa). Depois de vários – mais de uma dezena, embora eu não tenha escutado todos – telefonemas para a dita empresa, onde sempre asseguravam  a pés juntos que o serviço “estava a caminho”, acabaram por dizer que “não, afinal parece que não é possível efectuar a entrega hoje, o que lamentamos” e “gostaria de agendar para outro dia?”

Para além do inqualificável serviço que aqui se denota, é bom notar que entre tantas chamadas de telefone e custos de gasolina, facilmente se chega à conclusão que o cliente podia ter comprado uns eletrodomésticos mais caros e melhores…

Mas a saga ainda não terminara. Entramos agora no departamento das ditas utilidades básicas. Muito antes de se mudar, já o meu colega tinha pedido as devidas instalações. Se a da água foi rápida, o mesmo não se poderá dizer das restantes. É o agendamento que não é feito e tem de ser o cliente a ligar e a insistir; é o técnico que não aparece e tem de ser o cliente (que passou a tarde em casa, à espera) a insistir com a companhia; é o técnico que vai e se esquece de fazer uma parte importante da ligação… 

Problemas do Primeiro Mundo, dirão, mas convenhamos que parece um Primeiro Mundo bastante atrasado! Sobretudo no que diz respeito ao tratamento de quem paga um serviço.  O cliente tem sempre razão? Só se for… turista. 


Friday, July 29, 2016

Silly season


A silly season não me preocupa. Preocupa-me o silly world. Vem a propósito de uma notícia que vi na net (agradeço ao Facebook de Leonor Sampaio) em que Robert Swartz, Professor Emérito da Universidade de Massachussets e Director do National Center for Teaching Thinking, revela um estudo no qual diz que “90% a 95% da população mundial não sabe pensar adequadamente”. Não é novidade; já a minha avó o dizia. Aliás, todos nós o podemos comprovar quando pensamos num fenómeno de escala tão ampla e tão assustadoramente estúpido como seja o fenómeno Trump, cujo risco de vir a governar este planeta não deixa de constitutir realidade. Portanto, empiricamente estamos bem servidos de exemplos actuais que comprovem a Academia. Mas é doloroso ver que apenas 5% a 10% pensa. Pior: a hipótese desses 5% a 10% fazer lei, governar ou ter papel de peso social é… mínima.

Swartz põe a ênfase do problema na escola, cujo foco está na memorização e não no raciocínio e cratividade e acredita que uma mudança no sistema educativo na direcção do pensamento crítico e da comunicação (já que, segundo o mesmo autor, 99% dos problemas humanos são primariamente linguísticos) vai resolver, pelo menos parte, da questão.

Não sou tão optimista nem acredito que a raíz da questão resida na escola (embora parte do assunto passe por lá). Vejamos: a primeira parte de uma ideia é o próprio gerar desta. Ora, a génese ninguém ensina a ninguém – embora se possa dar liberdade para tal ou mesmo para a multiplicidade de ideias. Perdoem-me se vos choca, mas nem todos temos a mesma capacidade geradora de pensamento. Da mesma forma que uns nascem fisicamente fortes e outros fraquinhos, uns altos e outros baixos, também temos de admitir que uns nascem intelectualmente mais robustos do que outros. Há hoje a ideia falsamente democrática de que temos todos as mesmas capacidades. Não temos. Eu gostava de ter ombros de nadadora, mas tenho literalmente uns ombros de tísica. Isto é aceite socialmente. No entanto, se falamos de capacidades mentais, certo é que é politicamente incorrecto referir que há  pessoas mais dotadas do que outras. Mas que as há, há. Atirem-me pedras.

 O que não consigo explicar é porque é que há cada vez menos pessoas mais dotadas. Exemplo: quando chegámos a George Bush Jr, todos pensámos que os E.U.A. estavam no limite da tolice. Agora, estamos capazes de erguer uma estátua ao homem que até já disse publicamente que não apoia Trump. Será a falta de capacidade intelectual humana uma degeneração genética? Eu não sei. Mas ela anda aí. Outro exemplo: há alguns anos atrás, toda a gente se ria de algumas instruções tolas que apareciam em certos produtos como “Do not iron clothes on body” (nos ferros da roupa), “may cause sleepiness” (nos comprimidos para dormir) ou “warning: contains nuts” (num pacote de amendoins)…  mas hoje são  instruções obrigatórias por lei. Assustador. Raciocinar começa a ser fora da lei.

Analisar, inferir, deduzir, comparar, clarificar, sequenciar… acredito que a escola pode e deve ajudar em tudo isso e ademais desde tenra idade pois quanto mais cedo se aprender a pensar e a pensar criticamente melhor. Planear, resolver problemas, tomar decisões, em tudo isso há certamente um papel crucial dos educadores (seja em casa seja na escola). No entanto, parece-me que esta é a construção da casa. Há que ter matéria prima para construir. Idealmente, será da conjunção de ambos – boa matéria prima e boa construção – que sai um excelente resultado. Assim, poderemos um dia (?) deixar de ver aquelas fabulosas e ao que parece essenciais instruções com que nos brindam os pacotinhos de aperitivos da American Airlines: “1) open package; 2) eat nuts.”

Friday, July 15, 2016

Sente-se a Voz

Domingo passado, o pastel de nata venceu o croissant, com grande ajuda do chocolate importado da Guiné. Foi isto que eu disse no meu Facebook na altura. Calma; gosto de futebol e reconheço-o como símbolo da cultura de um país, usado como bastião de glória, provocando em todos uma justa sensação de superação e de excitação. Vou saltar por cima das explicações bio-endorfínicas e de psicologia das multidões que explicam porque a redução de pessoas diferentes no mesmo abraço desportivo é explicável e determina o poder cativante do desporto, nomeadamente do futebol. Gostava antes de me debruçar sobre o lado psico-cultural de cada nação que está espelhado na maneira como esta joga futebol.

Por exemplo, os ingleses. Quero dizer, o Reino Unido. Deixa de ser Unido no futebol, repararam? Nem tão pouco é Grã Bretanha. Desune-se todo. Passa a ser País de Gales, Escócia e Inglaterra. Não há cá confusões. Na verdade, eles não gostam assim tanto uns dos outros que queiram partilhar uma taça. Ainda que partilhem um Primeiro Ministro, vá lá suporta-se… Mas uma taça de um campeonato, nem pensar! O futebol é a oportunidade para passarem rasteiras e darem caneladas à vontade uns aos outros. E chamarem nomes às suas mães (N.B.: o próximo que me vier dizer que um pai é tão importante como uma mãe na vida de alguém, mando-o logo a um jogo de futebol… nunca ninguém insulta o pai do árbitro!) Malgré – fica bem falar francês – a desunião ilhoa, os brits partilham todos aqueles passes compridos que nunca mais acabam. Uma pessoa vê um jogo de futebol entre britânicos e percebe que eles chutam a bola logo a km; não há passes curtos como o pessoal do sul. Porque o brit pensa “in the long run”.

Poucas coisas são tão curiosas de se ver como um jogo Itália vs Alemanha. Os italianos intimidam o adversário em cima da cara deste, têm aquela atitude de bravata como  rapazes que levam tudo à sua frente. Os alemães são frios e controlados, esquemáticos em vez de apaixonados. Insultam baixa e veladamente, mas têm muito a certeza da sua superioridade.  

Interessante também é ver Portugal vs França. Os franceses gostam de fazer jogos bonitinhos. Há dois tipos de homens franceses (qualquer mulher confirma isto): ou são muito gentis ou são muito brutos; não conhecem meio termo. Vemos no campo este tipo francês também. Quer fazer uma coisa bonita. Se não conseguir, parte para a violência e manda o CR7 embora. Mas, em boa verdade, querer fazer bonito acaba por ser um ponto fraco francês. O português não está assim tão preocupado com o floreado. A única coisa que realmente caracteriza o português é que ele não desiste. A outra coisa é que o português sempre precisou de heróis. Daí que endeuse pessoas e ainda espere pelo D. Sebastião quando está nevoeiro. O português acredita que num herói mítico reside a força de um povo. Neste momento, o português endeusou o CR7. Quando ele saíu de campo, o português muito justamente fez o que faz melhor: não só não desistiu como acreditou que ia miticamente ganhar… por ele. Veja-se o que diz Éder (provavelmente o herói injustamente mais esquecido, e Portugal historicamente está cheio deles) “Ronaldo disse-me que eu ia marcar!”. Portugal tornou-se maior sem CR7, mas pensou que era por ele e para ele, porque isso é a maneira de ser do português. Nunca, que eu tivesse visto, jogou de forma bonita. Mas jogou sempre daquela forma que o português tem de querer, com fibra de vontade.

Outro ponto interessante é este Éder guineense, este Quaresma cigano, o CR7 da Madeira e, por exemplo, os antigos Eusébio de Moçambique e Pauleta dos Açores. Esta vitória europeia, a primeira internacional de Portugal, foi em Paris, a segunda cidade no mundo (depois de Lisboa) onde habitam mais portugueses devido ao fluxo de emigrantes. Portugal cumpre, ainda hoje, um destino fora do quadrado peninsular. “Heróis do mar” não é um hino ultrapassado. 

Friday, July 1, 2016

"Europa, Nossa Mãe Rasgada"

Há cinco anos atrás, escrevi aqui um artigo intitulado “Estados Unidos da Europa” onde, entre outras coisas, afirmei que a “Europa se incompatibiliza[va], pouco a pouco, entre si.” Na época, um senhor disse-me peremptória e publicamente que eu devia ser pouco inteligente e certamente não percebia nada do que era a Europa. Tendo em conta o rumo que as coisas tomaram, a ironia do assunto é demasiada para que eu não o mencione, contrariamente ao meu hábito de não trazer mesquinhices ao papel. Mas esta era mesmo irresistível. 

Vou repescar algumas ideias, a ver se ainda são verdade nesta “baixa” Europa onde me encontro. É que existe a Europa de cima e a Europa de baixo. Mal comparado, é como as ilhas de cima e as ilhas de baixo – sabem todos do que falo. Eu só dei pelo facto de estar na Europa de baixo quando em Maio de 2008 fui em viagem de trabalho à Bélgica e ao aterrar no aeroporto dei de caras com um cartaz que ostentava as estrelinhas da União Europeia (não, não é “a estrela fria a vinte pontas nos céus de aço” contrariamente ao que disse certo político que afirmava que Nemésio elogiava a UE!!!...).  O cartaz dizia “Bienvenue à l’Europe” pelo que nos aguardava como se viéssemos de outro continente. “Mas nós não viemos da Europa?” perguntei, incrédula, ao meu colega, que era açoriano. “Parece que não… Olha, viemos! Mas foi da Europa de baixo!” E foi assim, a rir, que cunhámos o termo com que nos brindou a Europa dos que não são pobrezinhos, ou, se quiserem, a Europa dos que mandam. 

O ideal que esteve na construção de uma união de estados europeus não só era louvável mas era também pragmático. Devastada por duas Grandes Guerras, a Europa sentia que devia unir-se em ideais comuns de tolerância fraterna, em políticas que a tornassem militarmente unida e economicamente mais forte. Em suma, que a Europa não se dividisse – porque a Europa sempre foi um continente convulso. Apesar de pequeno em tamanho relativamente aos restantes, é, indubitavelmente, pleno e vasto em diferenças culturais, difíceis de harmonizar quantas vezes mesmo dentro daquilo que constitui um só dos seus países (veja-se o Reino Unido, a Espanha, e não falemos já do que até há pouco tempo era país e deixou de ser para se dividir em dois ou vários, como a República Checa e a Eslováquia, o mosaico jugoslavo ou a parte europeia da antiga URSS.) Uma união de estados europeus, um pouco similar à estrutura americana, era um sonho prático para evitar a aniquilação que as Grandes Guerras trouxeram à Europa. 

De facto, a Europa tem sido o palco de guerras muito sangrentas e não tão longínquas assim. O horror da Segunda Guerra Mundial acabou em 1945, ou seja, ainda hoje existe quem tenha passado por isso. Mesmo depois, nos anos 90 e até 2001, recordemos a guerra da ex-Jugoslávia, que fraturou completamente toda aquela área que é hoje Bósnia, Kosovo, Montenegro, Croácia, Eslovénia, Macedónia e Sérvia. E agora, a guerra que existe entre a Rússia e a Ucrânia e da qual não se fala. 

Porém, a União Europeia foi uma federação unida de estados europeus, cumprindo esse sonho? O Reino Unido nunca aderiu à moeda única e para aumentar a confusão há países fora dos estados membros onde o euro é moeda oficial: Montenegro usa o euro há anos, apesar de encavalitado no centro dos Balcãs e de não pertencer à UE. O Espaço Schengen, i.e. a abolição de controlo fronteiriço, nunca teve ligação direta com a União Europeia, pois há países que não pertencendo à UE pertencem ao Espaço Schengen, como sendo a Suiça, a Islândia, o Liechstein e há outros que sendo da UE determinam fechar o Espaço Schengen conforme se sentem ameaçados (como exemplo a França, a Alemanha, a Bélgica na sequência dos ataques terroristas deste ano). 


Os nacionalismos têm crescido avassaladoramente na Europa, dentro dos países – vemos como agora os escoceses apelam novamente à sua independência do Reino Unido – e fora destes – em manifestações da extrema direita que ascende. Foi este mesmo fator, o nacionalismo, que sempre levou a Europa à sua destruição. A Europa morre sempre por suicídio e nunca porque alguém a ataca. Certo é que sempre renasce, como fénix das cinzas. Mas primeiro morre como escorpião, mordendo a sua própria cauda.