... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, December 30, 2021

Palavras Doces

Quem já teve um namorado (ou namorada) de outra nacionalidade, sabe a comédia que, volta e meia, está presente nesse tipo de relações. Já escrevi sobre isso numa crónica que intitulei “A Comunicação”, onde conclui que quando nos dizem “o segredo de uma boa relação é a comunicação constante” certamente não estão a contar os casos em que é preciso aprender a gramática e vocabulário de outra língua antes de comunicar com o mínimo de inteligibilidade.

Também é difícil perceber piadas. Quanto mais dúbias são, mais difíceis de perceber. Um casal que não ri das mesmas coisas tem pouca longevidade na relação. Claro que há muitas pessoas que falam a mesma língua, mas não riem do mesmo e jamais sequer se percebem… Porém, o meu ponto é este: quem não fala a mesma língua, à partida, tem de fazer um esforço adicional para se tentar entender. Por um lado, é bom, porque logo se percebe quem está disposto a fazer esse esforço - que deve sempre ser mútuo, a não ser que haja uma língua franca que aguente as pontas. Mesmo assim, nunca deem valor a quem não se tenta esforçar. Por outro lado, em última análise, evitam-se discussões, pois não há discussão do que não tem possibilidade de ser debatido por falta de vocabulário.

No entanto, o meu tema de hoje são aquelas palavras doces que os casais usam para se chamarem entre si, caso não utilizem apenas os respectivos nomes. Por exemplo: querido/a, amor, fofo/a, e por aí fora, consoante os devaneios habituais de cada um. Cuidado quando estiverem a ensinar que “amor” pode ser usado como adjectivo, porque um estrangeiro imediatamente assumirá que “amora” é a declinação feminina da palavra. Falo por experiência.

Todos nós conhecemos sobejamente os termos que os anglo-saxónicos usam, ou não fossemos em todo o lado invadidos pela filmografia hollywoodesca e pela música pop, que nos bombardeiam com “baby”, “dear”, “darling”, “honey” e não muito mais porque o inglês também não é, convenhamos, das línguas mais imaginativas no que toca a afecto.

Na nossa mente, fazem sentido alguns dos termos espanhóis como “cariño”, “mi alma”, “mi vida”, “mi reina” (minha rainha), “mi cielo” (meu céu), mas outros soam bem mais estranhos como “gordo” ou pelo contrário “flaco” (magro), “viejo” (velho), “loco” ou até “pobrecito”. Enfim, os castelhanos têm certa vertente peculiar…

Do mesmo modo, os italianos. “Amore”, “tesoro”, “piccolina” (pequenina) soam bem, mas já custa a engolir termos como “cucciola” (cadelinha) e “topolina” (ratinha!!!) Muito há que dizer sobre as diferenças culturais. Ainda bem que o Topo Gigio fez parte da nossa tenríssima infância para percebermos que eles têm dos ratos uma referência muito sentimental!

Os franceses têm um lado romântico com “mon coeur” (meu coração), “ma belle”, mon bonheur” (minha felicidade), “ma mie” (meu miolo de pão), mon rêve (meu sonho)… A verdade é que podia ficar aqui todo o dia, porque raras línguas têm uma multiplicidade de vocabulário tão grande para denominar o ser amado. Mas quero deixar aqui alguns que desagradam ao portuga, como sejam “ma puce” (minha pulga), “ma biche” (equivalente ao Bambi, mas não soa bem), “ma crevette” (meu camarão), “mon chou” (minha couve).

Finalmente, que nomes doces usam os chineses? Em público, nenhum, jamais! Em privado, geralmente “baobao” (bebé) ou “baobei” (tesouro). Igualmente, “quin’ai de” (querido/a). Quase todo os restantes nomes carinhosos implicam o título acoplado de “marido” e “mulher” porque é uma cultura que dá enorme valor às relações comprometidas assinadas em papel. Tudo o mais são brincadeiras inconsequentes. Mas fiquem com estas pérolas, alegadamente carinhosas: “xingan” (meu coração e fígado), “xiao qiu yin” (pequena minhoca) e “ben dan” (tolinho).

Em suma, até para ser carinhoso com alguém, é preciso pensar bem no vocabulário, não vamos nós ofender o campo semântico interior de cada um. Como é fácil ofender mesmo quando não se intenciona! Nem quero imaginar a brutalidade de quando se insulta deliberadamente, dentro da Torre de Babel onde vivemos. Os intérpretes das Nações Unidas e outros do género devem ter muito trabalho a evitar confrontos.  

Thursday, December 16, 2021

Ninguém pediu para nascer

Se o leitor é médico, este artigo interessa-lhe. Sobretudo se é obstetra.

Há cerca de duas semanas, Evie Toombes ganhou um caso inédito num tribunal do Reino Unido onde tinha intentado acção judicial contra o médico da sua mãe por ter, literalmente, “deixado que [ela, Evie] nascesse.” Com a sua vitória, ganhou milhões como forma de compensação pelos seus 20 anos de vida - segundo ela, anos de sofrimento.

O requerimento judicial é ridículo, o julgamento é grotesco e a decisão ainda mais absurda. Mas o certo é que tudo isto aconteceu. No sistema judicial da Coroa uma sentença judicial tomada tem procedência total no sentido em que pode depois ser usada para justificar X decisões posteriores. Muito mais do que no sistema judicial romano, como é o nosso. Podemos, assim, esperar mais outras tantas decisões como esta no Reino Unido a partir deste ano. Médicos ingleses, ponham-se em guarda!

Poderíamos pensar que Evie Toombes até tem certas razões para se revoltar. Talvez viva amarrada a uma cama, ou tenha deficiências profundas mentais ou físicas, ou sofra dores constantes e outros tormentos. Deixem-me contar-vos quem é Evie Toombes e do que é que ela se queixa. Aos 20 anos, Evie é uma atleta de sucesso no hipismo de competição na modalidade de saltos. Convenhamos que não é o desporto mais simples nem tão pouco os saltos o fazem o mais suave para quem eventualmente sofra de alguma mazela. Apesar de ser considerada uma para-atleta, Evie compete tanto com para-atletas como com atletas que não sofrem de quaisquer deficiências físicas. Isto também nos indica que os seus problemas físicos não serão assim tão dramáticos. Mas, afinal, de que sofre Evie? Cortando o suspense, vamos ao que interessa: sofre de espinha bífida oculta e de dramas intestinais. Aos leigos, esclareço que há quatro tipos de espinha bífida, sendo que no mais grave o paciente pode deslocar-se apenas em cadeira de rodas ou ter mobilidade muito reduzida; no caso da espinha bífida oculta, os sintomas são tão ligeiros quanto praticamente indolores – como, aliás, o sucesso e o estilo de vida de Evie nos dizem (felizmente para ela!)

Porém, Evie é também uma influencer – o mesmo é dizer que tem umas páginas jeitosas nas redes sociais. Diz que os problemas de saúde arruinaram a sua vida. Dando uma olhada nas fotos, discordo. Tendo em conta que Evie tira várias fotos em que está a fazer tratamentos, e as usa com efeito promocional, parece-me que “a doença” até lhe tem dado imenso jeito para ser mais conhecida. Digamos que, não fosse a doença, Evie jamais seria tão lamentada, tão apoiada… e tão (re)conhecida como é!

No entanto, Evie processou o médico da mãe com o seguinte argumento cuja infantilidade tem que se lhe diga. Alegadamente pouco antes de engravidar, a Sra Toombes sénior dirigiu-se ao médico e disse-lhe que estava a pensar conceber. O médico, por seu turno, tem uma versão um pouco diversa até porque já não se recorda bem, afinal foi há 21 anos, e diz que pensa que a Sra Toombes já estaria grávida. Para o caso, pouco interessa. As Sras Toombes, sénior e júnior, alegam que o médico, Dr. Philip Mitchell, não aconselhou a Sra Toombes sénior a tomar suplementos vitamínicos extra (note-se, para além dos suplementos regulares) durante a gravidez. Em especial, aconselhou-lhe apenas a dose normal que todas as grávidas tomam de ácido fólico. Qualquer grávida e médico sabem ao que me refiro. Acontece que, por azar (e isto é, efectivamente, real) a deficiência em ácido fólico aumenta o risco de problemas no tubo neural – e logo, o risco de espinha bífida – em cerca de 70%. Até estou habilitada para falar pessoalmente do assunto, pois a minha segunda gravidez comportava este risco.

Acontece que, numa gravidez regular há 21 anos atrás, não seria estranho a Sra Toombes sénior tomar “apenas” a dose normal (já por si suplementar) de ácido fólico aconselhada a todas as grávidas. Só tomaria extras se o médico suspeitasse que o feto teria hipóteses de ter problemas o que, segundo todos os envolvidos, não era o caso!

Ainda assim, a juiz Rosalind Coe achou que o Dr. Mitchell era culpado de “wrongful conception” (concepção errónea). O nome também é giro, porque o pobre médico não terá sido, julgo eu, responsável pela concepção da criança. A língua é traiçoeira - ou a língua ou a Sra Toombes!

Assim (des)anda a justiça, desacreditando a medicina.

Thursday, December 2, 2021

Adolescente

O meu filho completou 13 anos. Desde o seu nascimento até agora, o tempo passou como um fósforo a queimar-se. Experimento esta sensação à medida que fico mais madura, porque na infância e na adolescência a sensação era diametralmente diversa: o tempo arrastava e nunca mais chegava a hora em que, finalmente, seria adulta. Depois, em adulta, descobri que a ideia de liberdade era marketing enganoso. Afinal, não traz tanta paz de espírito quanto isso: pagar contas, trabalhar e uma data de limitações impostas pelo sistema. É mais difícil ser revolucionária e manter espírito idealista quando se é adulta; apesar disso, para um visionário, a idade não importa – é uma questão de viver com um pé no futuro e outro na amplidão.

Aquilo que transmito aqui acerca dos adolescentes tem a ver com aqueles com quem convivo, nomeadamente o meu. Generalizo pela experiência. Convivo mais com rapazes do que meninas porque a idade imberbe ainda segrega ligeiramente o sexo oposto – quase tanto como se sente inclinada para ele.

Algo que acho muito engraçado são as expressões corporais recentes que observo nele, como o “rolar de olhos para cima” e “olhos-silenciosos-que-querem-dizer-jamais-farei-tal-porque-isso-é-inútil” (também conhecida como “obrigado pelos conselhos, mas vou fazer o que acho melhor”). Não me recordo de ter feito isto quando tinha 13 anos – aqueles que me leem e me conhecem desde essa idade, escusam de revelar intimidades, a bem da manutenção da nossa amizade!

Outro aspecto engraçado é que tudo gira à volta da internet. Esta geração já nasceu com o dedo conectado no telemóvel. Para eles, “comunicar” é mandar textinhos, mensagens de voz, vídeos curtos. O telefone já não serve para telefonar -isso é ideia tão antiquada quanto o Alexander Graham Bell. Suspeito que seja porque manter uma conversa exige um foco de atenção muito longo. O que observo nestes miúdos é que eles são muito rápidos, mais activos na vida, mais dinâmicos no conhecimento e mais urgentes em tudo. Já não suportam aulas com professores a falar durante uma hora ou escrever com papel e caneta – a verdade é que o mundo mudou radicalmente no ensino nos últimos anos, e ninguém teve de se adaptar tanto ao novo mundo como um professor. Os miúdos também já não entendem as comunicações ou relações como dantes: agora é conectar e desconectar, porque adiante há mais para descobrir. Ninguém tem paciência para ver filmes, porque demoram muito tempo e “nunca mais chega a mensagem essencial”. Os cursos têm de ser crash courses. Os vídeos têm de bombar com ângulos muito inovadores e cores muito diferentes (e durar pouco, sempre).

Ainda há poucos anos se fazia piadas sobre a geração Millenial. Porém, há dias, o meu filho disse, com grande descontracção, que eu não entendia a perspectiva dele porque eu sou uma Millenial e ele um Geração Z. De facto, eu nasci na virada do século e todos os que nasceram na virada do século vivem em inquietação filosófica permanente sobre a vida, o mundo e o mais além; mas os pós 2005, só pensam em “andar para a frente” e recusam prender-se a seja o que for que lhes tenha trazido sofrimento. Todas as gerações de virada de século apresentam grandes dramas existenciais – vejam Eça de Queiroz e a sua Geração de 70 do século XIX auto-intitulada “Os Vencidos da Vida”. Não deixa de haver certo paralelo com a grande busca de sentido revolucionária da minha geração um século depois. Já a geração do meu filho é bem mais optimista e seguramente muito mais concreta: em última análise, com a nossa revolução, devemos ter feito qualquer coisa de bem na criação destes buscadores da felicidade.

No fundo, tenho muita sorte, porque somos extremamente compatíveis e semelhantes. Digamos que, se fossemos um jogo, eu seria X mas ele seria a evolução de X, a versão aprimorada. É mais inteligente, mais aventureiro, mais corajoso. Mas também mais determinado, mais frontal. O que eu tenho de suave, ele tem de rasgado e pouco submisso. O que é natural, porque, de forma elementar, eu sou energia feminina e ele masculino.

Não raro perguntam se somos irmãos porque estamos naquele momento da vida em que temos a mesma altura e certo companheirismo vigoroso, resultado de muita luta conjunta. De resto, ele tem um ar maduro e sério, de voz muito grossa, ao passo que eu mantenho algo fisicamente juvenil de tempo por desabrochar. Mas nenhum de nós admite nunca essa ou outra confusão de papéis porque mãe é mãe. Mãe que é Mãe nunca será outra coisa.

Thursday, November 18, 2021

Autorização

 Todos os anos, em Novembro, se celebra o Dia Internacional da Erradicação da Violência Contra a Mulher. O nome do dia é mesmo assim: International Day for the Elimination of Violence Against Women. Porém, já vi que em Portugal há casos de organizações que se esquecem de traduzir a palavra “erradicação” (ou eliminação, como preferirem), e então exibem uns posters de bradar aos céus que dizem “Dia da Violência Contra a Mulher”. Não é grave, é só a ideia oposta! Há coisas que parecem comédia… mas que, na verdade, são trágicas pelo fundo conceptual e cultural que lhes deu origem.

Este ano de 2021, acompanhei o desenrolar de um caso que, não sendo dos mais graves (não envolve pancadaria, violações, clausura e tantos dramas que outras mulheres enfrentam), vem provar que, mesmo aos olhos daqueles que a nossa sociedade coloca num patamar mais elevado, a mulher ainda é vista como uma espécie de apêndice do homem.

Claro que seria interessante dissecar o que a nossa sociedade entende por patamar elevado e porque é que algumas pessoas são lá colocadas, eventualmente sem nenhum atributo que as faça sentar lá o traseiro, visto que o cérebro não acompanha. Mas isso será motivo para outro tema.

O caso foi divulgado este Verão, apesar de já ter acontecido seis meses antes no Brasil. Uma conhecida apresentadora de televisão de S. Paulo, cujo nome de estrela é Luísa Mell, foi fazer uma depilação laser às axilas numa clínica dermatológica que já visitava assiduamente. O médico falou-lhe de um laser novo, que seria “tiro e queda”, mas que exigia que o procedimento fosse feito sob anestesia por precaução. Seria ele próprio, médico, a executar tudo.

Aqui, faço um parêntesis. Não sei como é que se fazem as depilações a laser no Brasil, porque no restante deste mundo de Deus a gente entra numa dermo-estética e é servido por uma esteticista (se bem que tenha tirado formação para este efeito) e não por um médico. Porém, diferenças culturais existem! E económicas também! Pode dar-se o caso de ser uma dermo-estética da mais alta elite, que só serve os mais abastados (volto à conversa do patamar elevado…cof cof cof) Certo é que jamais ouvi que um médico realizasse depilações a laser, mas parece que no Brasil acontece. Também nunca ouvi que existissem casos de anestesia, mas admito sem custo que as haja para evitar sentir a dor. Enfim, drogas legais e questões financeiras à parte, nada disto é o foco desta história, portanto vamos em frente.

Luísa disse que sim ao super laser e foi anestesiada. Quando acordou, o médico tinha executado um bónus não requisitado: nada mais nada menos que uma cirurgia de lipo-aspiração naquela zona, retirando gordura da parte superior interna dos braços através das axilas.

Luísa não sabia que a cirurgia ia ser feita. Não a pediu e não a queria. Ao inquirir o médico, este respondeu que o marido de Luísa, um empresário chamado Gilberto Zaborowsky, tinha requisitado a mesma por considerar que a mulher estava “gordinha naquela área”. Obviamente, hoje este senhor já é ex-marido.

A questão aqui é o pensamento destes dois homens: o então marido e o médico. Ambos com pleno ideal de que o corpo da mulher não é dela, é do homem com quem ela está. Assim sendo, Luísa não tem de ser inquirida, tão pouco comunicada sobre procedimentos, cirurgias, invasões. A mulher existe em prol de alguém (pelo menos, fisicamente) e nessa senda é esse alguém que tem palavra única. Não ocorreu a estas criaturas dores de pós-operatório, cicatrizes, deformações. Também não lhes ocorreu o impacto psíquico. Pois tão pouco lhes ocorreu que Luísa tem vontade – ninguém lhe perguntou nada! E sequer lhes ocorreu informá-la! Sobre o próprio corpo de Luísa! Não estão muito longe de noções de escravatura… Estão, ao menos, a equiparar uma mulher a uma propriedade e a retirar-lhe qualquer qualidade de ser humano.

Esta história aconteceu no Brasil. Mas nas nossas elites e nos nossos bairros, este tipo de ideia também grassa como mato. Fica para uma próxima oportunidade.

Wednesday, November 3, 2021

Luzes

Chegados ao fim do ano no calendário gregoriano, é o tempo de muitas diferentes culturas espalhadas pelo mundo celebrarem a Luz. Diwali é o Festival das Luzes para os Hindus, Budistas e Sikhs; Hannukah é a Festa das Luzes para os Judeus. Sem querer ser extensiva, eis um rápido "toca e foge".

Diwali (cujo nome significa “uma série de luzes”) simboliza a vitória simbólica da luz sobre as trevas, e bem assim do conhecimento sobre a ignorância e do bem sobre o mal. A história do festival varia conforme as religiões. Por exemplo, no Hinduísmo celebra-se o retorno da esperança e dedicam-se vários rituais à deusa Lakshmi, iluminando tanto a casa como os espaços exteriores com luzes várias e brincando com bombinhas de artifício.

Hannukah ( a dedicação) é igualmente um festival de recuperação, após a destruição do segundo templo. Fala da re-edificação do templo, onde deveria haver uma luz a brilhar. Infelizmente, reza a história que só havia óleo para um dia devido à devastação da luta. Porém, deu-se um milagre e o óleo da lâmpada durou uma semana, daí que o festival também dure uma semana, onde se acende uma nova vela a cada pôr do sol.

O curioso dualismo luz e trevas está presente em todas as culturas e teologias: a luz associada ao divino, e bem assim à verdade, à inocência, à virtude; as trevas associadas ao pecado, e como tal à maldade, ao diabólico e à podridão.

A dualidade luz-trevas aparece nas mais antigas filosofias do Leste, como a de Confúcio, como uma metáfora para questões éticas, sempre o bem sendo simbolizado pela luz e o mal pela escuridão. Também no Ocidente, com Platão, esta dicotomia se apresentava do mesmo modo. De resto, os estudiosos de Pitágoras e da sua Tábua de Opostos também lá encontram “luz versus escuridão” como uma das questões filosóficas a explorar.

Ainda hoje, a nossa cultura tem bem enraizada esta ideia. Basta pensarmos que nos referimos à Idade Média como a Idade das Trevas e chamamos ao Séc. XVIII o Iluminismo; as injustas superstições relativas aos gatos pretos (um dos animais mais bonitos que existem) versus os gatos brancos; as vestes culturalmente observadas quanto ao luto no Ocidente por oposição às virginais roupas dos casamentos e angelicais brancos dos baptizados. O conceito está por todo o lado. Até os fãs de “A Guerra das Estrelas” não se esquecem de que existe um lado luminoso – o de Luke Skywalker – e um lado escuro – o do seu pai, Darth Vader, que se tornou num refrão em muito merchandising que ostenta “Come to the dark side”.

No Ocidente, a religião também teve um papel na criação do mito luz e trevas. É na narrativa da criação do mundo, vulgo Génesis, que se encontra a sua raiz. Logo no primeiro dia, a primeira acção divina é a criação de luz:“E Deus disse “Faça-se Luz”. E houve luz. E Deus viu a luz, que era boa, e Deus dividiu a luz das trevas. E Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. E no dia houve a manhã e também a tarde.” (Génesis)

Reparem que eu nunca disse branco e preto, disse luz e trevas. Esse não é sequer um debate. Embora esta metáfora tenha sido muitas vezes usada para intensificar racismos e outras ridicularias, não é isso que está na base do conceito. Nem poderia, porque a pele mais sedosa do mundo é a que contem mais melanina.

Importante a reter é que a Luz é algo a atingir enquanto claridade, visão, amplidão, verdade, alegria, prosperidade. Se trevas são equivalentes a ignorância e a escassez, quem quer associar-se com isso?

Thursday, October 21, 2021

Mutley, do something!

Quem leu Hamlet sabe que um dos problemas do príncipe da Dinamarca é que ele pensa, e volta a pensar, mas em termos de acção material, vai adiando, vai fingindo loucura, e pouco faz. Embora saiba exactamente o que tem de fazer (o fantasma do pai diz-lhe que ele deve matar o seu tio, o novo rei), Hamlet não se decide à execução, sem antes passar por enormes dramas mentais de todos os ângulos. A grande acção da peça de Shakespeare passa-se dentro da mente.

Na vida, “Ser ou não ser” é mais ou menos equivalente a “fazer ou não fazer” - porque, convenhamos, atitude é tudo e determina grande parte da existência. Os anglo-saxónicos têm esta boa expressão que é “you’re entirely up to you” que podemos traduzir por “só dependes de ti”. Não há nada de mais realista. Quem ainda não aprendeu esta lição, não chegou à maturidade. Claro que é muitíssimo importante termos a colaboração dos outros. Mas o nosso percurso evolutivo é sempre único e individual.

Muitos de nós têm dificuldade no agir, mesmo quando sabemos o que é melhor para nós. O próprio processo de tomada de decisão pode ser penoso, cheio de dúvidas. Entre a certeza do caminho e o primeiro passo dado levantam-se ainda vários obstáculos. É difícil perceber porque é que um animal tão inteligente como o ser humano se recusa a agir em seu próprio benefício e prefere persistir na modorra.

Uma boa maneira de dar à volta a isto é a Matrix de Eisenhower que consiste em desenhar um quadrado e rotular cada secção em “Urgente e Importante”; “Urgente mas Não Importante”; “Importante mas Não Urgente”; “Nem Urgente nem Importante”. Depois, inserir nestas categorias aquilo que temos como tarefas a realizar. As marcadas como “Urgente e Importante” são as prioritárias. A seguir vêm as “Urgente mas não Importante”, porque o relógio é um senhor implacável. Depois as “Importante mas não Urgente”. E finalmente, aquelas que podem ser deixadas para outros idos sem prejuízos.

Porém, quem tem tendência à preguicite aguda (poeticamente intitulada lazer compulsivo), não se sentirá muito motivado por esta jogatina cerebral. Nem por slogans que nos mandam levantar o rabo, como o famoso “Just do It!” de certa marca desportiva. Como disse Pressfield, nós temos duas vidas: a que vivemos na prática e a que está em potência dentro de nós. Entre elas, encontra-se a nossa resistência. É por isso que muitos de nós são artistas em potência, mas nunca expuseram o seus quadros nem publicaram as suas histórias; outros de nós poderiam ter relações incríveis, mas nunca tiveram força de vontade para deixar os padrões das velhas relações em que se metem constantemente; outros poderiam ser fisicamente saudáveis mas continuam a ter os hábitos menos saudáveis do mundo dia após dia. Agir dá trabalho. O nosso eu potencial está em dormência, dentro de nós. Já o conhecemos, mas fazê-lo vir cá para fora exige atitude.

A própria evolução é algo engraçado porque, não raro, obriga-nos a fazer exactamente aquilo a que tentamos resistir. Todos sabemos que a resistência tem grande energia, sobretudo quando provém do individuo na forma da sua personalidade comum. Trata-se essencialmente de melhorar o nosso carácter. É aqui que começamos a fazer jogos mentais. Há que recordar que a mente é um bom servo, mas não um grande senhor. Em regra, quanto mais resistimos a uma mudança benéfica, mais importante e necessária ela é.

Finalmente, temos de distinguir entre mudança e evolução: toda a evolução nasceu de uma mudança; todavia, nem toda a mudança trará evolução porque nem toda a mudança é necessariamente benéfica. Cuidado, e nada de entrar em vertigem. 

Wednesday, October 6, 2021

Técnicas de Manipulação - Parte II

Na última crónica, escrevi sobre as técnicas que o linguista e filósofo Noam Chomsky identificou como sendo as 10 técnicas de manipulação de massas, usadas por quem está no poder para manusear o pensamento do público sem que este se aperceba. Por questões de espaço, falei apenas das 5 primeiras na crónica anterior. Agora, vou explorar as últimas 5 técnicas que Chomsky identificou. Esta crónica fará mais sentido para quem tiver lido a última crónica. Re-começando, então, com a 6ª técnica.

6)Utilizar a emoção muito mais que a reflexão. Esta técnica não é exclusiva do discurso político nem da imprensa para manipular o público; porém, é bastante utilizada também nestes registos, simplesmente porque resulta muito. Ao utilizar um discurso amplamente emocional, neutraliza-se a parte racional, fazendo com que o público seja extremamente tocado na emoção e, paralelamente, anulado no seu raciocínio. Desejos, medos, compulsões, vontades, e toda a panóplia de emoções conscientes ou inconscientes do público são activadas por palavras, notícias, discursos que apelam à vibração emotiva. Sabendo nós hoje – porque já demonstrado pela ciência – que a força máxima do instinto activado nubla a razão, o sentido crítico do público fica absolutamente delegado para segundo plano, isto quando não desaparece completamente.

7)A sétima técnica consiste em manter o público no máximo de ignorância possível. A ignorância conduz à ausência de ferramentas para que o povo possa compreender os métodos, estratégias, tecnologia e demais desígnios que são utilizados para a sua manipulação, controlo, e – segundo Chomsky – “escravidão”. Se quando Chomsky empregou a palavra escravidão, ela pareceu exagerada, talvez nos últimos dois anos já seja interessante reflectirmos até que ponto somos livres perante a redução de liberdades drasticamente imposta a nível mundial. Chomsky também apontava fortes críticas à educação e à mediocridade que nela se vivia. Teremos avançado algo de positivo? Segundo o próprio, a educação é extremamente “classista”, ou seja, as classes menos economicamente favorecidas (no fundo, a maioria do povo) recebe propositadamente uma educação bastante pobre para que a sua ignorância seja mantida o mais possível e, assim, nunca exista verdadeira igualdade de oportunidade para todos.

8)A oitava técnica está intimamente ligada com a sétima. Trata-se de fazer crer ao público que a incultura está na moda. Por outras palavras, trata-se de estimular o povo a ser complacente com a própria mediocridade a tal ponto que a deseje. Isto atinge-se fazendo da vulgaridade uma moda desejável (vide reality shows, certos programas em que se explora a intimidade e o drama questionável, tudo é comum, tudo é banal, todas são potenciais prima donna, todos são potenciais Hulk, gritos são saudáveis, etc, etc). Outras formas são fazer heróis populares de pessoas que nunca seriam heróis no verdadeiro sentido da palavra, ou seja, pessoas sem real mérito nem talento, que são apenas personagens espalhafatosas. Com isto, se atinge outra questão importante que é: ensina-se a desvalorização do mérito, do espírito de sacrifício e do valor, visto que – para obter o que se designa por sucesso social – basta ser um pouco palhaço, e convém até não ter grandes qualidades.

9)A nona técnica é a de reforçar o sentimento de culpa individual de cada um de nós, fazendo-nos crer que cada pessoa é intimamente culpada pelas desgraças que o assolam (mesmo que estas sejam de cariz social, como o desemprego). Desta forma, em vez de se revoltarem contra o estado de coisas geral ou contra o sistema, as pessoas desvalorizam-se, inibem-se ou até caem em depressão. O mais importante é que não reagem e não se revoltam contra os poderes vigentes. A culpa será sempre dos indivíduos. Podemos facilmente observar isto na quantidade de livros de auto-ajuda hoje muito populares que fazem com que acreditemos que, se nos melhorarmos, teremos sucesso. Se não temos sucesso na vida é porque não fomos capazes de evoluir como seres humanos. O sistema, esse, diz que oferece as mesmas possibilidades a todos.

10) A décima técnica é a que permite que todas as outras sejam postas em prática. Segundo Chomsky, as elites têm acesso a todas estas técnicas porque conhecem em profundidade os avanços da psicologia, da neurobiologia, dos processos de marketing, ao passo que o homem comum os desconhece. Assim, os poderosos acabam por conhecer mais do povo, cientificamente falando, do que ele se conhece a si mesmo, permitindo-lhe manipular as massas de forma que a elite continue sendo elite e o público permaneça seu escravo.

Resta-nos, pois, conhecer para resistir.

Thursday, September 23, 2021

Técnicas de Manipulação - Parte I

Quão imunes somos à manipulação? A maior parte de nós gosta de pensar que somos bastante independentes do ponto de vista do pensamento, não cedendo a tácticas manipulativas que interfiram com a autonomia do nosso raciocínio. Será mesmo assim?

O “pai da linguística moderna”, Noam Chomsky, apontou dez estratégias usadas para a manipulação de massas por quem de poder. Vale a pena relembrar pois, ainda que o nosso brilhante cientista tenha identificado estas estratégias no século XX, elas não deixam de ser muitíssimo actuais. Devido ao espaço que me proporcionam aqui ser limitado, tenho de dividir a crónica em duas partes.

1)Manter a atenção do público desviada dos verdadeiros problemas sociais, e ao invés cativada por temas sem real importância. Convido todos a darem uma vista de olhos pelas notícias e a destrinçarem a importância daquilo que nos é oferecido como “notícia”. Vivemos de mente continuamente ocupada, quase fervorosamente preocupada com mesquinhices e dramas de trazer por casa que não valem um caracol e ainda com outras questões que antigamente se designavam por mexericos. Os verdadeiros problemas-notícias quase desapareceram. Porque será? Para que nos esqueçamos de lhes dar a importância que merecem. Esta táctica é a táctica da distracção ou táctica do dilúvio. De tal forma somos assoberbados com mil coisas que esquecemos o essencial. Há quanto tempo não falamos de desemprego, por exemplo? Assim, não identificamos os problemas sociais que nos assolam nem buscamos conhecimento pelas nossas próprias mãos.

2)Criar problemas e depois oferecer soluções. Esta táctica é a “Problema- Reacção- Solução”. Note-se que não havia nenhum problema, para começo de conversa. Mas é criado um problema que causa angústia no público. As pessoas, ansiosas, começam a tornar-se ávidas de uma resolução (recordemos: a solução para um problema que lhes foi imaginariamente proposto e feito crer da existência!). Aparecem, então, os salvadores da pátria que antes tinham feito correr rios de tinta sobre o suposto problema e que agora aparecem como cavaleiros com o Santo Graal carregando nas suas mãos a solução que a todos salvará. Por exemplo: fazer crer que existe uma crise, para que o povo aceite o retrocesso dos seus direitos; inventar que existe X para que se instale uma reacção; inventar disputas entre nós e o outro para que o outro se torne inimigo e só fiquemos a contar com esse tal salvador que nos há-de dar a pílula da solução mágica.

3) A terceira técnica é denominada estratégia da gradualidade. Medidas que seriam absolutamente inadmissíveis, devido ao seu teor autocrático ou mesmo ditatorial, são implementadas pelas figuras da autoridade num sistema conta-gotas, em prazo alargado, e de forma bastante gradual. Desta forma, e já motivado pelo espectro do “problema”, o público acaba por as aceitar, porque é muito mais fácil aceitar o radicalismo quando ele vem de mansinho. O que ganham os poderosos com esta medida? Tudo. Implementam a ditadura que procuravam, e evitam revoluções e revoltas que certamente teriam caso as medidas fossem aplicadas de chofre. Exemplos no momento em que vivemos há muitos, como “não saia de casa” ou “proibido visitar o seu avô”.

4)Outra forma de fazer aceitar medidas que seriam muito impopulares é a técnica do adiamento. O público vê com olhos mais favoráveis os sacrifícios se estes forem apresentados como algo não imediato, mas hipotético futuro, e além disso como algo doloroso mas necessário. Isto porque em cada um mora um secreto ser que acredita que é possível que, aceitando hoje um sacrifício a ser feito no futuro, é possível que a vida melhore até lá… e que nunca tenha de o fazer. É muito mais complicado convencer o público a fazer um esforço imediato, retirando-lhe a esperança. Mais fácil é cobrar-lhe a palavra dada num momento posterior.

5) A última técnica que vou apresentar hoje é muito usada: consiste em falar com o público como se fossemos todos crianças pequenas ou mesmo incapacitados mentais. O tom usado pelos políticos é frequentemente o de alguém que se dirige a um outrem desprovido de senso crítico ou de compreensão. Por conseguinte, pouco se explica e muito se paternaliza e ordena. Do outro lado, o público assim tratado tende a reagir como se, de facto, fosse débil, pouco dotado cognitivamente e necessitasse de um guia de vida. É um efeito psicológico comum.

Na próxima crónica, continuo. Os mais curiosos, leiam já Chomsky. Vale a pena.


Thursday, September 9, 2021

Energia

Há anos atrás, quando alguém falava de “energia”, isso soava a algo mágico, como se fora um truque circense ou um passe de feitiçaria. Hoje, porém, essa palavra “energia” já entrou no quotidiano rotineiro. Com a expansão científica do século XIX, a ideia de “energia” passou a ser associada ao progresso industrial, usado para o conforto do ser humano. Desde a energia elétrica à das ondas, todas eram capazes de contribuir para o bem-estar, aproveitando as forças da natureza. Mais tarde, descobriram-se outras energias, mais rebuscadas, ou até mais explosivas, caso da atómica – também chamada nuclear. Com tal força, surgiram os protestos, as energias renováveis versus as não-renováveis, e a ideia empírica de “boas energias” e de “más energias”.

Mas essa ideia não era peregrina. Voltando aos tempos antigos, onde as energias eram tidas como mais místicas e menos palpáveis, também a ideia de “bom” e de “mau” campo energético existia.

Actualmente, vivemos tempos onde a ciência pura e dura nos falhou enquanto redentora da Humanidade. Basta olhar para estes tempos de (pós?) pandemia. Porém, sem ciência ninguém vive, sobretudo sem tecnologia. Então, quando hoje falamos de “energia”, as forças invisíveis que nos ocorrem primeiramente são aquelas que nos fazem comunicar à distância, através de telefones celulares, internet, etc.

Porém, cada vez com maior intensidade, temos uma perspectiva metafísica da palavra “energia”. É comum usar-se hoje a palavra num sentido espiritual para referir certa força interpessoal ou essência única não-física do indivíduo, equiparável ao conceito de “alma” que ainda há pouco era o mais popular. Para tratar esta energia e as suas maleitas, vivemos hoje uma panóplia de serviços (dependendo da cultura e do país), desde Acupuntura, Aromaterapia, Kinesiologia, Reiki, terapia termal-auricular, Hipnoterapia, Óleos essenciais, TFT, jóias iónicas, meditação theta, florais, cupping, cristaloterapia, e dezenas de outros que eu levaria páginas a enunciar.

O negócio da medicina energética é fértil, diria mesmo que é o mais fértil deste século – por uma razão muito simples: primeiro, porque a esmagadora generalidade das pessoas não se sente bem, ou, em última análise, sente que lhes falta algo para atingir o máximo da plenitude; segundo, porque o ser humano está descrente dos tratamentos ditos tradicionais e, sobretudo, da terapia da alma e das terapias psicossomáticas tradicionais. Os psicólogos andam a perder terreno. Os imunologistas também. Isto porque já quase ninguém acredita nas suas abordagens demasiado massudas e puramente académicas. As pessoas querem resultados da Nova Era para estes mal-estares, da alma e do corpo, que estes novos tempos apresentam. Hoje em dia, vivemos tempos em que até o fisioterapeuta recomenda ioga ou tai-chi, e raro é o psicanalista que não indica meditação e exercícios respiratórios. Estamos todos virados para esse conceito de “energia” que pensamos ser novo, mas é mais antigo do que os nossos bisavós.

O que é essa energia transcendente? Para os asiáticos, “qí” (que, em português, se lê “chí”) corresponde a essa força vital, também vista como a força da vida. Tudo no mundo é composto de “qí”, desde o corpo físico aos sentimentos que experimentamos. Um desequilíbrio físico ou emocional provoca uma alteração no “qí”. O simples retorno a uma vida saudável leva à reposição do “qí”. O problema é que raras pessoas têm uma vida saudável – seja a nível corporal seja psíquico, quanto mais em ambos. Tudo no nosso ambiente também é composto por “qí” – daí as formas de harmonização de ambiente, como o feng shui ou mesmo a relação interpessoal através das artes marciais e meditativas. Mas isto é só o início de todo um leque de actividades que permitem a manipulação do “qí”, como se faz na acupuntura através dos meridianos. Além disso, neste mundo, também há o “qí” negativo, cujo curso é passível de ser mudado. Para tal, os asiáticos utilizam armas tendencialmente mais místicas, como seja a geomancia e outras artes divinatórias.

Energia, em si, é um conceito da Física, inegável e inescapável. É uma propriedade quantitativa e mensurável em joules, algo de que todos os seres vivos necessitam. Todavia, para quem acredita no que os olhos não vêem, energia é mais do que isso. Nas palavras do místico cabalista Isaac Luria, todo o nosso mundo sofre mudanças de renovação de energia – algo que nós, meros humanos, não somos capazes de ver, mas sentimos impercetivelmente, quando as civilizações passam de certo estado letárgico ou até comatoso e renascem como se bebessem da fonte original. 

Thursday, July 29, 2021

Assassina silenciosa

Tenho grandes reticências em relação aos números desta epidemia, por comparação a outras epidemias. O que é inegável é que uma das consequências deste vírus é a restrição de contacto entre as pessoas por todas as formas: não veja X, não toque em X, não se desloque até X, não receba X em sua casa, veja os seus parentes através de um vidro, toque nos seus amigos com luvas. Isole-se dos outros para evitar o “bicho” invisível. Um vírus que, supostamente, terá escapado de um laboratório e assim infectado o mundo inteiro, mas que nós acreditamos que as nossas máscaras vão manter à distância. Ou bem que a primeira premissa não é verdade ou bem que a segunda não é real; porque as duas juntas são absurdas.

O problema do isolamento é só este: a solidão (também) mata. Não precisa de outra co-causa para matar. Por si só, o isolamento e a solidão que daí advém são fatais. Há muito que a ciência o sabe.

A psico-biologia vem demonstrando desde os anos 50 do século passado que a solidão, muitas vezes apelidada “isolamento emocional”, em pouco tempo causa desregulamentos hormonais, desorganização molecular, e é causadora de doenças várias entre as quais Alzheimer, obesidade, diabetes, problemas de tensão e cardíacos, doenças neurovegetativas, já não falando de tumores (as metástases progridem a um ritmo muito mais acelerado nas pessoas sofredoras e sozinhas, o que não é segredo para ninguém). Depois, existe ainda uma vastidão de problemas psicológicos relativos a mudanças de comportamento, depressão, descontrolo de emoções, tendências (auto) agressivas, e todo um extremo que daí pode advir.

As pessoas podem sofrer de tudo isto quando acompanhadas? Com certeza. Mas muitas pessoas acompanhadas também sofrem de solidão, e não é pouco. Essa é outra conversa.

Nem sequer é necessário irmos desenterrar as experiências de Harry Harlow com macacos recém-nascidos para saber que a ausência de calor corporal carinhoso provoca danos irreparáveis. Nesses cruéis testes, Harlow colocou os bebés rhesus em isolamento tendo por companhia mães feitas de fio de arame que os alimentavam artificialmente. As necessidades materiais eram inteiramente providas mas o afecto, o aconchego, o calor, não. Não só estes bebés eram profundamente apáticos e tristonhos como se tornaram adultos desconfiados e socialmente incompetentes. Note-se que estas experiências datam dos anos 60 e que, entretanto, a tecnologia já as apurou – vejam as experiências de Suomi sobre a solidão e o isolamento que mostram que estas condições presentes na vida de um mamífero causam transformações imunitárias graves e até perturbações genéticas. Suomi apontou exemplos relativos à degeneração da matéria cinzenta do cérebro e da ligação entre a amígdala e o córtex pré-frontal. Em última análise, um isolado torna-se fatalmente doente (mesmo que antes fosse saudável).

Nos anos mais recentes, há vários estudos que confirmam que os seres humanos necessitam de outros seres humanos – e que a proximidade de um ser querido, tanto emocional como física, é importante para estruturar o equilíbrio e o bem estar. Por isto mesmo, Caccioppo e Hawkley da UCLA desenvolveram uma Escala da Solidão e descobriram, muito antes da pandemia, que o isolamento ceifava mais vidas do que qualquer outra coisa. Por isso mesmo se dedicaram a estudos mostrando como evitar o isolamento social e ensinando às pessoas como se conectar. Aliás, nem precisamos de estudos universitários pois basta olhar para os vídeos, livros, podcasts de hoje em dia para saber que tudo gira à volta de conexão, tranquilidade, união, vínculo.

Com tudo isto, não pretendo ser subversiva em relação às medidas oficiais tomadas hoje em dia para nos isolar. Mas é preciso ajuizar pela nossa cabeça e intuição, com lógica e sensibilidade, nestes tempos difíceis, o que realmente mata mais. Afinal, a solidão também se torna uma pandemia de séria fatalidade. Vale a pena pensar porque estamos a promover o isolamento e a obediência tão radicalmente. Voltando à subversão, o “Letreiro” de Miguel Torga condensa tudo: “Porque não sei mentir, não vos engano: nasci subversivo. A começar por mim, meu principal motivo, de insatisfação. Diante de qualquer adoração – ajuízo. Não me sei conformar. E saio, antes de entrar, de cada paraíso.”

É de partir o coração ver bebés nascidos no fim de 2019 que pensam que a única realidade deste mundo são pessoas com máscara, gente que morreu absolutamente só porque lhes foi negado o contacto de outro ser, e o esmagador número de deprimidos e de suicidas que este vírus causou. De novo: um vírus tão inteligente que contorna um laboratório mas tão frágil que sucumbe a um paninho à volta da boca e do nariz. Como diz Harari, quem me dera reencarnar para ler os livros de História daqui a cem anos, com a claridade que a distância traz.

Thursday, July 15, 2021

Dia dos Namorados tríplice

Já ouviram dizer “O Natal é quando um homem quiser”? Parece que o Dia dos Namorados também. Este último com maior razão, porque não tem a mesma data em todo o planeta. Namorados, atentai: caso queiram celebrar estas datas todas, saibam que elas estão convenientemente espalhadas no calendário para que nunca se apague a chama de que já falava Dido na Eneida.

A razão pela qual me lembrei disto agora é que o Dia dos Namorados se celebra no Verão aqui onde moro. Mas começo pelo Brasil, que celebra a data em Junho. Isto ocorre no país desde 1948; é uma tradição já bem enraizada. Não deixa de ser curioso que, estando os brasileiros bem próximo dos Estados Unidos, tenham escolhido outra data para a celebração do seu Dia dos Namorados, resistindo à invasiva e persistente influência americana.

Tudo começou por causa dos portugueses. Os lisboetas sabem a importância do Santo António, padroeiro de Lisboa, que dá à cidade o feriado municipal de 13 de Junho. Na noite anterior, as ruas de Lisboa estão cheias de balões, marchas, sardinhas assadas na brasa e manjericos com quadras populares. O Santo António é, tradicionalmente, o santo casamenteiro. Não só existe a tradição dos casamentos comunais que ainda hoje se practicam em Lisboa – as “noivas de Santo António” – como há diversas lendas que o catalogam como padroeiro dos casalinhos. É desta devoção ritualística ao Santo que nasce a ideia brasileira do Dia dos Namorados a 12 de Junho.

Porém, não podemos esquecer que o Dia dos Namorados tal como hoje se vivencia é puro marketing. A religião só deu o empurrão. A verdadeira motivação foi incentivar o volume de vendas das lojas, já que estas, em Junho, apresentavam o maior défice de todo o ano. Foi assim que em 1948, o publicitário brasileiro João Dória, dono de uma agência de marketing, organizou uma imensa campanha para promover esse Dia dos Namorados em Junho… com tanto sucesso que, ano após ano, o dia se vem mantendo no Brasil inteiro. Com criativos assim, não há depressões económicas.

Na China e em Taiwan, o Dia dos Namorados é no Verão. Aliás, na China há seis datas que configuram o “Dia dos Namorados” porque as mulheres chinesas não são para brincadeiras no que respeita a receber prendas materiais– mas isso demora muito a explicar. O que usualmente se designa como Dia dos Namorados é o “Duplo Sete” ou “Festival Qixi”, que calha no dia sete do sétimo mês – o calendário é lunisolar, portanto variável, porém geralmente até acontece em Agosto. Não é um Dia mas sim uma Noite dos Namorados, simbolizando o encontro de duas estrelas que são os namorados celestes: Vega e Altair, que “se olham sem poder comunicar”.

A lenda diz que Altair era um órfão que pastoreava uma vaca falante. A vaca disse-lhe que ele veria uma fada vinda dos céus. A fada, nada menos do que Vega, era uma tecedeira celestial, que o visitou, e que sempre tinha de regressar ao reino celeste. Os dois apaixonaram-se, mas o imperador dos céus proibiu-os de se encontrarem. Para melhor dificultar, colocou uma galáxia entre ambos. Porém, como Altair era persistente acabou por se transformar em estrela. Há apenas uma noite onde conseguem estar frente a frente. Essa é a Noite dos Namorados. Como veem, as lendas chinesas são muito dramáticas e nem sempre acabam bem.

Por último, não quero deixar de mencionar o famoso Valentine’s que, na realidade, começou por ser San Valentino, já que o Santo era romano e, inclusive, bispo. Contra as ordens do Imperador da época – que acreditava que o celibato tornava os homens melhores combatentes - Valentim celebrava casamentos e era muito apreciado por todos os parzinhos. Foi encarcerado pela sua desobediência e aqui começa uma lenda que nos diz que o próprio Valentim se apaixonou pela filha de um dos carcereiros. A jovem deixou de ser cega pela acção milagrosa do amor de Valentim. Isto não o livrou da morte, mas consta que terá escrito várias cartas à sua amada.

A tradição das cartas viria a ser recuperada na Idade Média, altura em que se começou a celebrar o Dia dos Namorados na data da morte de Valentim, data que, em Fevereiro, coincidia com o acasalamento dos passarinhos e anunciava a fecundidade. Daqui até ao marketing de cartões, flores, bombons e cupidos de hoje foi um beijinho.

Não faltam, assim, dias para celebrar o namoro… ou os namoros. Isto porque, se algum dos leitores for como o meu avô, que chegou a ter três namoradas ao mesmo tempo, a logística complica-se. Sobretudo agora com a internet. É um passaporte via única com destino à desgraça.

Thursday, July 1, 2021

Free Britney

Desde há algum tempo que o slogan “Free Britney” aparece. Mas afinal o que é este complexo caso de Tribunal sobre o qual as opiniões públicas (e algumas púdicas) tanto mudam? Não sendo fã de Britney Spears, acho incrível que tal se passe num país do primeiro mundo.

A maior parte das pessoas sabe quem é Britney Spears. Uma cantora americana, hoje com 39 anos, que no fim dos anos 90 e princípios dos anos 2000 era apelidada de “Princess of Pop”, tal foi o seu estrondoso sucesso mundial durante a sua época teen. Britney guarda até hoje o recorde de ter sido a artista teenager que mais discos vendeu: só numa semana e só nos E.U.A. chegou a vender mais de 1.3 milhões. Dançava, fez um filme, beijou a Madonna numa entrega de prémios escandalizando meio mundo, e apostou numa imagem metade adolescente naive metade símbolo sexual, mistura que fez a cabeça de muita gente andar fantasiosamente à roda.

Em meados de 2000, Britney tinha coisas em excesso, nomeadamente dinheiro e gente atrás dela. Não se deu bem nos casamentos – não consta que seja crime. Em 2006, numa fuga aos paparazzi, Britney apareceu numa foto com o filho pequeno ao colo, guiando um carro. Foi o princípio do fim, pois logo ali se disse que Britney era inconsciente, péssima mãe e pouco faltou para ser assassina em potência. É curioso que nós, infância dos anos 80, vivemos essas situações aos olhos de hoje ditas perigosas. Claro que, na época, os nossos pais não viviam a ameaça social do online (só os mexericos das vizinhas) e havia talvez menos interesse, para o mal e para o bem, no drama doméstico. Voltando à Britney. Nos dois anos subsequentes, Britney tornou-se irreconhecível. Rapou totalmente a cabeça, perdendo o ar de ninfeta angelical e tornando-se militarizada. Perdeu a custódia dos filhos para o ex-marido – não foi revelado o porquê. Internou-se voluntariamente em centros de terapia após a morte da sua grande amiga. Ficou mesmo um dia único num centro de reabilitação de drogas. Porém, foi sempre continuando com álbuns e espectáculos… ou seja, fazendo dinheiro abundantemente.

Em 2008, Britney recusou entregar os filhos ao ex-marido após uma visita. Aqui, começa uma história que não tem ponta racional por onde se pegue. Dada a sua recusa, foi levada para um Hospital e diagnosticada como estando sobre a influência de algo. O mais interessante é que o Hospital Cedars-Sinai (que é uma instituição de renome na Califórnia) não foi capaz de especificar a substância que tanto teria alterado a cantora. Não sou médica, mas a ciência de hoje em dia, num local que se preze, e tendo em conta a situação, não pode simplesmente dar respostas destas. Ou bem que identifica a substância – o que certamente pode fazer, dentro do país e recursos que tem – ou então não pode afirmar que a pessoa está afectada por gambozinos. Segue-se que Britney foi então colocada na psiquiatria do Ronald Reagan UCLA Medical Center por ordem do Tribunal, ou seja, foi compulsoriamente internada pelo Tribunal numa ala psiquiátrica. Cinco dias depois saiu. Isto foi apenas o começo.

Britney continuou a fazer milhões e a ganhar prémios. Porém, desde que fora compulsivamente internada, o Tribunal colocara Britney, a fazedora de milhões adulta e vacinada, sob uma “conservatorship”, figura legal que atribui um guardião a alguém como se esse adulto fosse um menor. Pode acontecer porque a pessoa é muito idosa, incapaz ou deficiente mental. No caso de Britney, qualificaram-na como “louca”. Então, o guardião apontado passou a ser o seu pai bem como o advogado deste. Havia duas questões nesta tutela: uma era administrar o dinheiro de Britney; outra era administrar todas as decisões relativas à sua vida pessoal. Isso mesmo. A partir daí, e até hoje, esta mulher – a quem, sublinhe-se, nenhuma perturbação mental ou vício foi diagnosticado – não pode namorar, usar anti-concepcionais, mudar de casa, mudar a decoração da sua casa, mudar o estilo da sua imagem, viajar, etc, sem que o pai ou o advogado deem autorização. Pequena nota relevante: é também do dinheiro que esta mulher faz que estes gajos vivem diariamente.

Em 2019, o pai de Britney confessou ter problemas de saúde e pediu para que a tutela passasse para outro tutelar – mas não que acabasse, porque interessa dominar a moça! E só aí Britney veio a público confessar que gostava de ter filhos, mas o pai não lhe permitia retirar o DIU, e outras atrocidades que nos fazem pensar se não será caso para avaliar o Sr. Spears em vez da filha, cujo maior “pecado” é claramente viver em fusão com um pai ultra dominador.

Como é que estas coisas se passam no século 21? Afinal, a escravatura não acabou, só mudou de forma.

Thursday, June 17, 2021

EURO à distância

Como me encontro a viver fora da Europa, resta-me ser observadora internet do Euro 2020. Longínquo me parece Julho de 2016, quando Portugal se sagrou campeão europeu de futebol num jogo contra a França e eu estava na Alameda, frente a um ecrã gigante, com a cara pintada de vermelho e verde, e uma camisola da selecção vestida. O lapso temporal e geográfico é cortante e difícil de explicar. Porém, não tão difícil de explicar como a “trip” psicadélica que é estar a ver um campeonato que se intitula Euro 2020 mas acontece no ano de 2021. Isso sim, é um caso à escala planetária que faria um extraterrestre que nos visitasse pensar “Estes tipos não são bons em calendários!” A UEFA poderia ter intitulado isto Euro 2021, só para ficar menos psicótico? Podia, mas não o fez porque o campeonato era para ter sido em 2020 e optaram por manter o nome. Ok, entendo, mas cada vez que vejo toda a gente a dizer “2020”, algo dentro de mim se interroga se realmente vivi o ano passado, se estou em sono criogénico, enfim, se estou realmente em 2021. Veremos como se vão intitular os Jogos Olímpicos. Pouco falta para nos enganarmos todos na nossa idade, só porque não vivemos plenamente durante a quarentena.

É muito divertido escutar os comentários dos experts internacionais sobre os jogos. Apanho-os quase sempre, em registos de antevisão, a queixar-se que Portugal é uma frustração e uma surpresa. É a velha história: uma equipa cheia de potencial, que podia fazer maravilhas, marcar imenso, jogar brilharetes, mas depois não concretiza. Parece-me que escutei isto sobre Portugal toda a vida, independentemente da constituição da equipa. Podiam arriscar mais, mas jogam muito à defesa, fecham-se e esperam, e depois sim, lá partem para o contra-ataque quando abre uma brecha. Do ponto de vista extra-muros, esta é a visão que se tem sobre Portugal, década após década, entra craque e sai craque, gente brilhante existe, mas o estilo da equipa permanece cuidadoso e sem dar azo a grandes rasgos.

Há equipas – como o Brasil, por exemplo – que se divertem muito a jogar. Nós olhamos e vemos que eles estão a levar aquilo com leveza e alegria, como se fossem miúdos a brincar. Mas o português, a jogar, não está ali para se divertir. O tuga joga como vive, de acordo com a sua personalidade cultural. Por mais brilhante que seja, faz parte da sua natureza resguardar-se, ter cuidado, esperar até poder avançar com maior certeza, e raramente embandeirar em arco. Além disso, enquanto equipa, não costuma vivenciar momentos de pavão, porque o português não é exibicionista por natureza - o francês e o alemão, por exemplo, ainda que possam não ser os melhores, dirão que são. Note-se que estou a falar da equipa como um todo e não de estrelinhas.

Outra coisa intrínseca é que o português encara os resultados quase de forma fatídica. Enquanto que outras nacionalidades, no fim do jogo, começam por analisar se jogaram bem ou mal, ou talvez por culpar circunstâncias externas ou até o árbitro, o português – se perdeu – suspira melancolicamente e – caso tenha ganho – faz festa, mas em qualquer ocasião, dispara a mesma frase: “O futebol é assim”. Como quem diz “A vida é assim”. Ou seja, nada a fazer, estava tudo destinado, eu fui só um agente destes fados, foi Deus que ditou tudo, a sorte estava escrita.

É talvez por acreditar que existe uma componente grande de inescapável destino em tudo que o português se protege tanto, jogando tanto à defesa, mesmo quando tem brilhantismo mais do que suficiente para arriscar ataque ou, simplesmente, divertir-se a jogar. O tuga é um pouquinho como os judeus: confia… mas nunca fiando, vamos com calma, sabe-se lá quando vem outra desgraça.

A personalidade cultural de cada país influencia no modo de jogar – isso foi óbvio em anos anteriores: os alemães organizados e agressivos, os ingleses rápidos e sem problemas de partir para o embate físico, os franceses orgulhosos e detalhados, os italianos matreiros e atraentes, os espanhóis criativos e confiantes, e os gregos que jogam de forma mais semelhante a Portugal.

Prognósticos? Difícil, não é? Mas o orgulho do galo foi por nós ferido há quatro anos. Pode ser que ele agora cante… se assim estiver fadado! Calma, Portugueses, calma. Já dizia o Fernando Pessoa que tudo está destinado a Portugal. Porém, desconfio que Pessoa estava a falar de várias coisas, que não de futebol. Alea jacta est.

Tuesday, June 1, 2021

Ofendidos e ofendidas

 Poderia ter intitulado apenas com a palavra “ofendidos” pois todo aquele que fez a instrução primária saberá que o plural masculino da língua portuguesa encerra em si o conteúdo semântico capaz de se referir ao conjunto masculino e feminino, ou seja, ao dizer “ofendidos” posso estar a falar de homens e de mulheres no seu conjunto global. O mesmo acontece quando dizemos, por exemplo, “os avós” que são o avô e a avó. Porém, ultimamente, há um certo drama tanto em termos de substantivos como de adjectivos, apesar das bem claras regras da língua portuguesa. Dada a crise de sensibilidade aguda dos seres humanos no período histórico actual, há que explicar muito bem que estamos a incluir toda a gente no nosso discurso, não vão as pessoas ficar… ofendidas! (e ofendidos! dirá alguém que acha que não estou a ser inclusiva, agora de modo oposto.) Acontece que tenho de conjugar concordantemente em género e número o adjectivo com o nome “pessoas” que é feminino, logo há que dizer “ofendidas” neste caso; quem não percebeu, volte para a escola, por amor de Cristo.

Relendo agora, reparo que devo também esclarecer mais dois pontos em relação ao discurso do parágrafo anterior, para não ofender ninguém. Primeiro, apenas referi a escola primária, porque na minha época ainda era assim que esses primeiros anos de ensino se denominavam. Bem sei que hoje em dia se chama ensino básico. Até assisti a uma discussão de ofendidos sobre “não ser professor primário, muito menos ser primário!” mas confesso que não vejo onde está o aprimoramento em passar de “primário” para “básico”, sobretudo porque a palavra “básico” tem uma conotação de pouca inteligência no calão actual. Em segundo lugar, quando usei a expressão “por amor de Cristo” fi-lo por simples bordão linguístico, e não com o intuito de usar o nome do filho de D-us em vão – o que, de imediato, me colocaria em desrespeito das leis mais ortodoxas para os que as seguem e se sentiriam ofendidos. Devo ainda esclarecer que isto não significa que eu seja contra o amor de Maomé, de Buda, de Shiva, de Adonai ou de qualquer outro. Ou mesmo de nenhum. Embora, caso dissesse “de nenhum” isso seria a negação do próprio amor porque não pode haver amor com origem no nada, o que me colocaria alguns problemas de sentido não só na frase mas sobretudo na essência. Enfim, ser completamente inclusivo na linguagem torna-se, por vezes, um roçar do absurdo!

Por esta altura, já a ironia se tornou óbvia, mas a realidade é esta: a vontade desmedida de ser linguisticamente inclusivo pode levar a tolices gramaticais e a estupidez semântica.

Numa entrevista de televisão em 2018, aquele que é provavelmente o psicólogo e professor mais visto no Youtube, Jordan Peterson, causou celeuma quando interrogado sobre as suas afirmações muito directas, potencialmente ofensivas, sobre os direitos dos transsexuais. Peterson disse “Para podermos pensar, temos de arriscar ser ofensivos.” Em boa verdade, sempre que há uma discussão mais ou menos acalorada, com troca de opiniões, este risco existe sempre. Para abdicarmos dele, a solução é sermos hipócritas. O cultivo de uma volúvel e saltitante hipocrisia garante-nos o compadrio e a tolerância da convivência com quase todos – o que não significa que tenhamos nem a sua camaradagem (muito menos amizade) e nem tão pouco a sua admiração. Pois quem no seu perfeito juízo ou carácter teria um pingo de consideração ou daria valor a quem não tem a verticalidade de assumir as suas questões, sejam elas quais forem?

Não se trata de ser contundente nem propositadamente sarcástico – embora, pessoalmente, eu seja frequentemente acusada de ser sarcástica e irónica, o que talvez seja verdadeiro (acuso-me!). Trata-se de dar espaço às ideias e ao debate, ao invés de começarmos a ter comichão sempre que alguém abre a boca e imediatamente nos sentirmos ofendidos pela hipótese das palavras ou das ideias, ou até da ausência destas, nos magoarem. Afinal, ao longo da História, os realmente ofendidos tiveram razões bem mais fortes do que discursos para sentirem mágoa. Sentir-se ofendido pela simples opinião de alguém não será dar-lhe muita importância? O importante são as condições reais da nossa vivência, para a qual opiniões alheias pouco deveriam importar.

Matutando neste assunto, acabei por descobrir um remédio que serve a todo o ofendido – e toda a ofendida. Ao sentir-se prejudicado por palavras, reze um Pai Nosso e carregue forte na intenção naquela parte onde diz: “Perdoai-nos as nossas ofensas… assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido.” Confio que isto há-de acertar as nossas contas, por força maior.

Thursday, May 20, 2021

Dá-me música

Quando pensamos em estratificação social, pensamos na palavra “classe”: uns são da classe média, outros da “alta” e outros da “classe baixa”. Hoje em dia, não é politicamente correcto utilizar estes conceitos - a não ser que se seja marxista ou sociólogo, bem entendido. Caso contrário, é menos polémico falar de racismo ou de sexismo do que de desvantagens ligadas à classe social. Isso tem muito a ver com a lavagem cerebral dos filmes de Hollywood que nos mostram que o “self-made-man” é uma realidade potencial. Neles, qualquer tipo pode começar numa empresa como limpador de vidros e chegar a CEO da mesma empresa dois anos depois. Estes sonhos do ecrã fazem o cidadão médio pensar que algo está errado consigo porque não consegue atingir a mesma subida económica. Assim, na dúvida de saber se tem alguma problemática e da culpa ser sua, cala-se sobre o conceito de “classe”.

Apetece dizer “Só na América!” porque aqui, nesta geografia, o Will com capacidades intelectuais acima da média, sendo pobre, órfão e varredor da Universidade, bem se podia dedicar a resolver equações durante a noite, que nunca ninguém havia de reparar nele – sim, é o enredo do filme “Good Will Hunting”. Conclusão: existem diferenças culturais importantes no que diz respeito à estratificação social, nomeadamente às variações de mobilidade social. Se é verdade que nos E.U.A., e de forma geral em todo o Mundo Novo, a mobilidade social intrageracional pode acontecer, a verdade é que no Velho Mundo a possibilidade de um indivíduo ascender socio-economicamente é quase nula. Porém, em ambas as geografias, a mobilidade entre-gerações é bem possível, ou seja, há vários casos em que o avô era de uma classe social baixa e o bisneto ascende a uma classe social desafogada.

Tal acontece no Velho Mundo porque aqui ressoam os ecos feudais, algo que no Novo Mundo não se aplica porque, historicamente, não viveram o Feudalismo. Nessa época, quem nascia senhor da terra, morria nessa condição e os seus filhos herdavam o título; quem nascia servo morria servo e os seus filhos seriam servos. Era um sistema de estratificação social baseado na atribuição de um título que se cristalizava na hereditariedade. Incluo no Velho Mundo as sociedades muito antigas, como sejam as asiáticas, onde podemos exemplificar com o sistema de castas da Índia: só se pode casar com pessoas da mesma casta e certas profissões estão reservadas para determinadas castas. Este tipo de sistemas é completamente oposto a um sistema baseado no mérito, onde a ascensão social se faz por reconhecimento de capacidades.

O conceito de “classe” é bem mais do que uma questão monetária. Tem muito a ver com poder e com a capacidade de influência que uma pessoa pode exercer. Em suma, tem a ver com estatuto. Como exemplo: na Austrália e na Nova Zelândia, os trabalhadores que recolhem lixo são soberbamente pagos mas não são considerados classe “alta” apenas porque não são gente poderosa nem influente. Sobra-lhes em dinheiro o que lhes falta em aristocracia. Assim, as dimensões não económicas do conceito de classe são socialmente tão importantes como o dinheiro para distinguir entre os vários grupos sociais. Senão vejamos: qual a representação política de cada uma das classes da nossa sociedade? Ou dito de outra forma: qual o background dos nossos políticos? Se não é igual, é bastante semelhante.

Certa figura disse, recentemente, que isto acontecia porque certas “classes” não tinham nem bom senso nem bom gosto. É cómico porque tentou citar Antero de Quental, só que ao contrário. Deixo-lhe aqui um estudo de1984 de Pierre Bourdieu que diz que, realmente, a “classe alta” prefere o Cravo Bem Temperado de Bach e a “classe baixa” prefere a Rapsódia em Blue de Gershwin, invariavelmente, quando confrontamos os indivíduos provenientes destas origens com estes dois tipos de música. Mas, caríssimo orador, não é porque a “classe alta” seja mais sensível ao contraponto e à fuga, típicos da complexidade musical barroca, ao passo que a “classe baixa” já vai com sorte de captar o dinamismo do jazz (que, aliás, não tem por que ser um estilo de música inferior a Bach, atenção, é apenas um estilo musical diferente).É simplesmente porque, durante o seu percurso educativo, os indivíduos da “classe alta” foram expostos a Bach e o seu ouvido aprendeu amor à sua sonoridade… enquanto que os da “classe baixa” nunca o tinham ouvido. A conclusão é generalista? Claro. Mas muito mais generalista é dizer que a classe baixa não tem “bom gosto cultural”, quando, na realidade, nunca na vida lhe foi dada a oportunidade para usufruir daquilo que “outros” usufruem. “Outros” nos quais se inclui aquela pseudo-elite que temos e na qual tantas das nossas figuras de proa se incluem.

Friday, May 7, 2021

A sociedade e o homem

 No fim do século XIX, um senhor chamado Émile Durkheim começou a coçar a cabeça com a questão do suicídio – não porque estivesse a pensar nisso para si mesmo mas sim porque o preocupava o facto das pessoas se matarem bem como a ideia então em voga (e ainda hoje popular) de que o suicídio se dava em pessoas que eram psicologicamente doentes, coisa na qual ele não estava inteiramente disposto a acreditar. 

A lógica de Durkheim era simples e matematicamente incontestável: se fosse verdade que eram as pessoas “loucas” quem se suicidava, então a estatística de suicídios seria maior onde a estatística de doença mental fosse maior e inversamente seria menor onde a segunda também fosse menor. Como tal, decidiu analisar as taxas governamentais europeias de suicídio e de doença mental da época. A primeira coisa que lhe saltou à vista foi que os hospitais psiquiátricos tinham consideravelmente mais mulheres do que homens lá internados. Porém, contrariamente a esta estatística, para cada mulher suicida havia quatro homens que cometiam suicídio. Também verificou que a doença mental ocorria mais frequentemente na maturidade dos indivíduos, ao passo que o suicídio tinha maior taxa de incidência na terceira idade. Durkheim vivia na França, pelo que as suas conclusões incidiram mais particularmente sobre este país, e algumas curiosidades foram mesmo muito específicas, por exemplo, os judeus eram o grupo étnico com maior taxa de doença mental; porém, eram o grupo com menor taxa de suicidas. Em conclusão: claramente, a doença mental e o suicídio eram questões absolutamente independentes.

Durkheim promoveu, então, a ideia de que o suicídio tinha a ver com a solidariedade social. Quanto mais um grupo partilhasse valores e crenças, quanto mais interagisse intensamente, e quanto mais solidariedade existisse entre os seus membros, menos hipóteses haveria de ocorrer suicídios no seu núcleo. Isto porque quando os indivíduos fossem atingidos por grande adversidade, seriam socorridos por aquela âncora de contexto social estável.

Assim, e de forma muito sumária: as pessoas casadas (obviamente em relações de companheirismo e não de fachada!) tinham uma taxa menor de suicídio do que as solitárias porque o cimento da amizade ao longo dos anos lhes permitia um enquadramento de estabilidade e de poder contar com outro alguém; as mulheres suicidavam-se menos porque a sua vida social era, quase sempre, mais preenchida e naturalmente mais intimista do que a dos homens, tradicionalmente seres mais fechados e distantes e com maior dificuldade na expressão de sentimentos; os judeus suicidavam-se menos porque séculos de perseguição os tornaram um grupo muito coeso socialmente; os idosos suicidavam-se mais frequentemente porque eram o grupo mais solitário, sem emprego, muitas vezes já sem família e sem amigos, vivendo sós, e tendo perdido o contacto com a tal âncora a que Durkheim chamou solidariedade social.

Assim, o suicídio variava de acordo com a (des)integração do individuo na sociedade. É importante notar que isto não nos explica as razões particulares de cada suicídio individual, onde cada um terá as suas questões diferentes. Porém, esta teoria ressalva e valida que a segregação versus a inclusão social é um factor determinante para determinar do apoio de alguém, influindo fortemente na sua decisão de continuar a viver.

Entretanto, havia outras questões mais complexas, até porque Durkheim também considerava haver vários tipos de suicídio, incluindo o suicídio altruísta (a pessoa que deixa de viver por devoção ao interesse de outro alguém, por exemplo em cenários de guerra) e o suicídio anómico (quando a pessoa vive num ambiente onde os códigos de comportamento estão tão mal definidos que tudo é desordem, pelo que se torna complicado até perceber as implicações da sua tomada de decisão). Estes são diferentes do suicídio egoístico.

Mas o importante a reter é o que Margaret Mead, antrópologa americana, também disse, anos mais tarde, quando lhe perguntaram qual era o primeiro sinal de uma civilização que ela tinha encontrado nas suas pesquisas. Mead não falou de cerâmicas antigas, mas sim de um fémur partido e sarado. “Porque”, disse ela, “antigamente, quando alguém partia o fémur, era deixado para trás como um animal inútil. Mas o facto de que um ser humano perdeu tempo a cuidar de outro até ele ficar com o fémur em bom estado – e isso leva tempo! – é sinal de que a civilização chegou à Humanidade.”

Friday, April 23, 2021

Joguinhos à média luz

Neste momento histórico em que boa parte dos seres humanos estão a entregar-se às mais desesperantes torturas mentais ou estão a contas com o seu karma (dependendo da filosofia de cada um), é boa época para falarmos de jogos de manipulação – aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “mind games” e os políticos e os advogados chamam “trabalho”.

Parêntesis: consigo sempre fazer novos amigos logo no primeiro parágrafo. Nem sequer é de propósito. Fim de parêntesis.

Vou debruçar-me, porém, em jogos mentais de menos tribuna e maior depravação.

Há jogos extremamente perversos nos quais uma das partes (seja um individuo, seja um grupinho) manipula psicologicamente alguém para o fazer duvidar de si mesmo, incutindo-lhe subtilmente, e às vezes até docemente, cenários que fazem a pessoa começar a questionar a sua própria memória, a sua cognição, percepção e julgamentos. Este famoso “gaslighting” inclui, muitas vezes, a construção de complexas tramas onde o manipulador faz crer ao manipulado que este está a enlouquecer e que aquilo que ele vê/ouve/pensa/acredita não é real mas fruto da sua decadente imaginação. Nestes casos, não raro o manipulador finge-se muito preocupado com a saúde mental da pessoa que manipula e, ao mesmo tempo que faz crer ao próprio e a todos que “X está muito doente e a enlouquecer a olhos vistos”, pode também oferecer-se para se responsabilizar por X, seja legalmente seja como seu cuidador no intuito de o dominar completamente. Mata, deste modo, dois coelhos com uma cajadada: coloca o manipulado em estado de ruptura nervosa enquanto faz crer à sociedade que ele, manipulador, é um indivíduo do bem que, ainda por cima, se dispõe a arcar com as responsabilidades de semelhante criatura. Se não conseguem imaginar uma trama tão maquiavélica, vejam um filme com Ingrid Bergman chamado precisamente “Gaslight”, onde o seu terno marido manobra as luzes e sons em casa até convencer a pobre de que ela está a endoidecer e conseguir interna-la “para seu próprio bem” (sendo que, no fundo, o “bem” seria dele que ficava com a casa livre para melhor se dedicar às suas actividades criminosas).

O termo “gaslighting” ficou famoso desde os anos 60 e vem sendo utilizado nas Ciências Humanas precisamente para descrever a manipulação que alguém faz sobre outro na tentativa de alterar ou mesmo destruir a percepção que esse outro tem da realidade. O nome vem das “luzes do gás” que se usavam antigamente e que eram acendidas nas ruas assim que começava a escurecer – nalgumas cidades europeias ainda se veem esses românticos candeeiros tipo lanterna, cuja luz fraca e subtil provocava imagens imprecisas e difíceis de descortinar a olho nu.

Gaslighting não é apenas feito por esposos abusadores, embora seja comum nesses casos (outros filmes que exploram isto são The Girl on the Train ou Les Diaboliques). É também bastante comum que crianças abusadas sejam vítimas de gaslighting para que sejam convencidas que nada lhes aconteceu – sendo que, neste contexto, pode tratar-se de todo o tipo de abuso, desde o físico ao emocional, seja ele perpetrado por pais ou por mães. O mais importante é controlar o manipulado, coisa que se faz por meio de minimização e trivialização, esconder, abuso verbal contínuo, isolamento, debilitar o processo de pensamento e de confiança pessoal. Um indivíduo sem confiança é fácil de ser sugado por um narcisista.

Gaslighting também pode ser usado na política, embora não muito, porque este é um jogo que funciona bem nas sombras mas que quando trazido para o esplendor da luz tem tendência a mostrar-se ridículo quando exposto ao grande público. Lembremos que a ideia é enlouquecer um indivíduo, e que é difícil enlouquecer uma multidão com esta técnica. Porém, vejamos um exemplo de gaslighting político: vários discursos de Donald Trump. Quando ele dizia recorrentemente “Y é fantástico” e mais tarde referia publicamente “Eu jamais disse que Y é bom. De facto, seria absurdo eu dizer algo assim”, estamos perante um exemplo de gaslighting. Claro que aqui usei o exemplo Trump porque tenho amor à vida, e não me apetece agora usar exemplos de pessoas a quem já apertei a mão… não fossem apertar-me o pescoço.

Caros leitores, abram o olho e não se deixem manipular nem tão pouco enganar. Nem sempre o louco é aquele que aparenta sê-lo.

Friday, April 9, 2021

Se eu fosse eu

Que grande preocupação é a liberdade. O ser humano preocupa-se com a liberdade tanto ou mais do que a exerce. A liberdade não é um assunto moderno; é questão tão antiga quanto o primeiro homem. Aplica-se aquele provérbio chinês “moderno é a palavra mais antiga que existe.” Todas as religiões, todos os sistemas filosóficos, todos os paradigmas governativos se debatem com a liberdade como tema central – isto já para não falar dos sistemas legais e abstracções morais que regem a sociedade. Se até há ano e meio atrás a liberdade era uma questão teórica, hoje ela revela-se uma prioridade concreta com a realidade dos confinamentos e das máscaras e da (ir)racionalidade que está na base das regras a serem cumpridas.

Claro que numa crónica de poucos caracteres não vou dissecar a questão, que julgo ser a grande reflexão de todos nós a nível individual e colectivo. Desde os primórdios dos tempos que o ser humano vem reflectindo sobre isto. Veja-se que tanto o Islamismo como o Judaísmo acreditam de modo igual no livre-arbítrio (“o método divino de educação do homem”, “essa bênção e maldição colocada por D-us diante do ser humano”) e que a liberdade é também o pivot do Cristianismo (“Vós fostes chamados à liberdade. E que ela não vos sirva de pretexto [para outras coisas] mas sim para que estejais ao serviço uns dos outros”) e até uma das maiores crenças do Espiritismo (“A liberdade humana é o instinto mais natural, mas que não se confunda com libertinagem”).

Também os filósofos se debateram com a liberdade enquanto herança humana concedida fatalmente por estarmos vivos mas também anseio constante impossível de realizar devido aos condicionamentos do que é alheio a nós. Uma das correntes que mais abertamente foca o problema do homem livre é o Existencialismo que advoga que o homem é, ao mesmo tempo, condenado e livre: “Condenado porque não é o seu próprio criador; porém, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é ele o responsável por tudo aquilo que fizer” (Sartre). Quer acreditemos que a liberdade é a busca da verdade por meio da reflexão pessoal, o mais possível livre de dogmas (Sócrates), ou que liberdade é viver na graça divina escolhendo o bem sobre o mal (Santo Agostinho) ou ainda que liberdade é um desafio numa vida necessariamente limitada e absurda (Camus), o certo é que todos aspiramos a ser livres e esbarramos com limitações.

O inalienável direito a igual quinhão de liberdade por todos os seres humanos determina que a minha liberdade não possa interromper a liberdade do próximo pelo que toda a vivência livre exige ajustes com as nossas parcerias, para que ninguém sofra violações à sua liberdade. Daí que invadir a área de decisão de outrem seja um assunto de grande repúdio, “castigado” por quase todos os sistemas, senão vejamos, e tomando como exemplo as religiões (em si mesmas sistemas filosófico-culturais): todas as religiões monoteístas têm a frase “D-us é o único juiz”, independentemente da forma como agem ritualisticamente no aplicar ou não desta premissa. Reflectindo por dois segundos, verificamos como é correcto não tentar impor a nossa vontade ao Outro. Pois se nem sequer, quantas vezes, exercemos a nossa verdadeira vontade ou sabemos qual é! Quantas vezes não sabemos usar da nossa própria liberdade! Como podemos ousar escolher o caminho de outra pessoa se até sobre o nosso hesitamos?

Deixo aqui um poema de Clarice Lispector, que se intitula “Se eu fosse eu”:

“Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu” que a procura se torna secundária e começo a pensar. Diria melhor, sentir! E não me sinto bem! Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento. A mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto, já li biografias de pessoas que passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei! Metade das coisas que eu faria, se eu fosse eu, não posso contar! Acho, por exemplo, que por um certo motivo, eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu, daria tudo o que é meu e confiaria o futuro ao futuro. “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo! Bem, sei, experimentaríamos enfim, em pleno a dor do mundo. E a nossa dor! Aquela que aprendemos a não sentir! Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo. E também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais!”

Thursday, March 25, 2021

A cegueira revisitada

“O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos […] Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” Quem leu “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, reconhece esta citação.

Raros livros descrevem tão bem a crua brutalidade e o egoísmo feroz como “Ensaio sobre a Cegueira”, provavelmente o livro mais adequado para estes tempos em que vivemos, até porque fala de uma pandemia inexplicável. De facto, contrariamente à experiência de uma humanidade onde todos se estão a ajudar para o desenvolvimento da grande família feliz (como se ouve muito dizer pelos apologistas da sociedade glamour), acredito que este é um momento de grande cegueira. No geral, o ser humano tem muito pouco de bondade inata e é preciso coragem para o reconhecer. A cegueira não é apenas a incapacidade de ver (ainda que, como disse Saramago, “um olho cego transmite a cegueira ao olho que vê”); são também as falsas ideias e os falsos conceitos que a sociedade impõe como se fossem verdadeiras, e que dissimulam a transparente realidade.

Nessa parábola onde todos vão sendo acometidos por uma treva branca que os deixa cegos, damo-nos  conta do agreste mundo de luta humana, onde o egoísmo constante é exacerbado pela ausência de restrições que  tristemente nos damos conta  não serem uma obrigação da ética íntima de cada ser mas apenas e só uma questão de receio de punição social que se torna inexistente dada a cegueira. Assim, sucedem-se os casos animalescos de brutalidade, de luta pela comida, de desprezo total pelo asseio, e, finalmente, de invasão da liberdade alheia e de descaso pela dor de outrem como são as lutas físicas, as violações e os homicídios.

Quão generoso é o ser que nada tem a ganhar com isso? E, por outro lado, quão hipocritamente sinistra é a falsa dádiva do ser que pretende com o seu cinismo de falsa generosidade obter algo?

Nada é mais perigoso que a tentação desse pacto com aquele que nos oferece uma mão mas que pretende retirar-nos a cabeça.

O ser humano ali descrito é um animal, bem ou mal domesticado conforme as situações e as conveniências, porque o comodismo, certa fatalidade, o receio, e, no fundo, a satisfação das necessidades mais básicas e de conforto do ser humano levam a que este a tudo se habitue, mesmo que esse “tudo” seja degradante ou lhe retire completamente a memória da sua vida passada. Neste particular, há um momento bem revelador quando a criança para de chorar convulsivamente a morte da sua mãe porque tem fome e o cheiro da comida traz-lhe o instinto feroz e urgente da saciedade que ele tem de satisfazer.

Afinal, o que buscamos? Saciar o corpo ou o coração? A breve prazo, a recordação da mãe voltará e, com esta memória, mesmo já saciado com pão, os olhos cegos voltam a encher-se de lágrimas, provando que a cicatriz do amor perdido não se atenua nunca, antes se agudiza com certa culpa.

 Enfim, no meio de todo o apocalipse, há uma esperança “A cegueira também é viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” No caso deste Ensaio, a única não cega é a mulher do médico, que é também a única figura de abnegada generosidade, de grande capacidade de organização e também iluminada com o perdão (perante quem merece) e com uma raiva feroz (perante quem só é digno desta).

 No fundo, o que é estar cego senão ser (in)voluntariamente vendado perante o manicómio de contradições que nos rodeia, teimosamente persistir no teatro do absurdo em vez de encarar a realidade com clareza, e ignorar aquela centelha de fogo interior que nos eleva a sermos mais que animais?