... "And now for something completely different" Monty Python

Saturday, December 20, 2014

Eu vou contigo


Segunda-feira, um homem armado invadiu um café no centro de Sydney e fez reféns dos ocupantes durante 16 horas.  Tudo acabou com a morte do dito homem e também com as mortes de dois dos reféns.

O suposto “terrorista em nome individual” chamava-se Man Haron Monis, tinha 50 anos, e era islâmico, tendo, inclusive, uma posição clerical no Islão. De facto, Haron Monis obrigou alguns dos reféns a segurar uma bandeira de simbologia islâmica à janela do café. A partir deste momento, todos os islâmicos que vivem em Sydney começaram a recear generalizações e retaliações. Para complicar o assunto, Haron Monis não era um imigrante qualquer. Era um iraniano que procurou asilo politico na Austrália e cujo estatuto de refugiado politico lhe foi concedido por alegada perseguição do regime iraniano às suas (também alegadas) convicções liberais. Outra razão para que os imigrantes islâmicos começassem a ver esta história com outro contorno.

Não levou muito tempo até que o Primeiro Ministro Tony Abbott fosse interrogado pelos jornalistas quanto a esta tragédia e claro que lhe perguntaram exactamente como era possível que um refugiado politico, um estrangeiro protegido pelo país, se revoltasse em actos terroristas contra esse mesmo país. Qualquer PM encurralado teria respondido o mesmo à nação: que a Austrália talvez tenha de rever a sua política de imigração pois talvez esteja a ser demasiado tolerante.

O fim da frase foi como música festiva para todos os radicais e como um requiem para os islâmicos residentes em Sydney que pensaram, justamente, que terça-feira ia ser o primeiro de muitos dias de inferno que os esperavam na sua cidade.

Vivemos num mundo de redes sociais. Por isso, Michael James, reporter em Sydney, fez tweet de um episódio que se passou no metro: devido ao recente ódio inflamado contra os islâmicos, uma mulher islâmica com receio de ser atacada tirou o seu hijab para se tornar menos reconhecível. Enquanto o tirava, chorava. Então, uma rapariga não-islâmica levantou-se para ir atrás dela e disse-lhe “Põe-no outra vez. Eu vou contigo.”

Esta história simples entre duas estranhas gerou um enorme movimento que se chama “I’ll ride with you” (Eu vou contigo). O movimento começou no Twitter quando outra jovem, Tessa Klum, decidiu que esta era exactamente a opção a tomar e escreveu: “Se receias pela tua segurança nos transportes públicos porque usas símbolos islâmicos, eu posso ir contigo. Vamos combinar horário. Melhor, vamos fazer um movimento. Alguém se quer juntar a I’ll ride with you?” E sim, em 12 horas milhares de pessoas se juntaram.  Milhares de pessoas não-islâmicas se voluntariaram para acompanhar islâmicos, combinando horários ou simplesmente aparecendo nos transportes públicos com uma pulseira, um saco, um banner identificativo que diz “I’ll ride with you.”

O que isto quer dizer não é apenas que na Austrália há muitas pessoas que sabem distinguir entre o que é um homem louco – e já conhecido dos tribunais, por diversas acusações de violência, de perseguição e de crimes sexuais – e o que é um grupo de pessoas que não o reconhece como seu representante nem se identifica nas suas acções desumanas. Isto quer também dizer que a resposta de um país a um acto de violência feito por um imigrante só pode ser esta. Por duas razões: primeiro, porque a resposta de um país a actos de violência feitos por um seu cidadão nunca é ostracizar a nação toda (e reparem que a lógica seria igual) e segundo porque este movimento desencoraja completamente qualquer atitude dos grupos extremistas.

Sydney disse-nos esta semana que o sistema falhou, não porque acolheu um refugiado mas porque deixou um criminoso como Monis fora da cadeia. Mas duas raparigas anónimas criaram um movimento. Estas raparigas são a vida da cidade. E talvez venham, um dia destes, a fazer parte do grupo que decide.


Friday, December 5, 2014

A História da Lisa


Há um video popular nas redes sociais que foi distribuído para efeitos educacionais (assim diz o “disclaimer”) e que é a transcrição de uma chamada que uma menina de 6 anos fez para o número de emergência quando o padrasto estava a bater na mãe e na irmã bebé. O telefonema demonstra a perturbação e a impotência da criança que pede para as autoridades virem resolver a situação e que não consegue explicar mais do que “ele está a magoar a minha mãe, e agora tem a minha irmã e já atirou a minha irmã ao chão”. Ouçam os gritos da menina a pedir para ele parar, e a determinação que ela tem quando deixa o telefone para ir verificar quem se magoou e, no fundo, tomar conta da situação – com 6 anos…

Isto é importante porque, na nossa sociedade, está na moda a ideia de que as pessoas que batem nos mais fracos podem, no entanto e apesar disso, ser excelentes pessoas para com esses mesmos seres noutras situações. De facto, a nossa sociedade sofre de Síndroma de Estocolmo quando passa sentenças tais como “Bate na mulher mas olhem que é muito bom pai…” São situações à Paco Bandeira: mesmo que um tipo aponte uma pistola à cabeça da mulher quando ela está com a filha ao colo (e sublinho este por-maior circunstancial), o mais normal é considerar-se que é um progenitor às direitas, mas que se desnorteou porque o fizeram perder a cabeça.

A história da Lisa é antiga – a menina já não tem 6 anos, tem 24 e confirma tudo aquilo que sabemos sobre violência doméstica. Tanto ela como os irmãos acabaram por ter sequelas do que viram, ouviram e passaram – são, alias, perfeitamente utópicas as concepções de que um homem que bate na mulher não bate nos filhos. Quem objectifica os seres humanos como seus pertences não se fica por um cônjuge.

A maior questão é a postura das autoridades. Portugal assinou uma Convenção Internacional que diz que as crianças vítimas de violência doméstica têm de ser respeitadas e que os agressores dos parceiros não podem conviver com os filhos – a quem, directamente ou por proxy – também agrediram. Mas quantas vezes isto é respeitado? Não conheço nenhum caso. Dos que conheço, mesmo se a mulher (e desculpem se pareço parcial, mas o facto é que as mulheres, pelo facto de terem muito menos força física, continuam a ser bastante mais violentadas do que os homens) conseguiu uma ordem de restrição para si, continua a ter de ir entregar os filhos ao fim de semana para, utopicamente, irem passar aquilo a que a Justiça chama “uma vida normal.” A Justiça acredita que “uma vida normal” para um miúdo é viver transido de medo.

Claro que não é apenas em Portugal que esta completa esquizofrenia social se passa. Há um caso que deu brado nos últimos anos nos E.U.A. de uma menina de 14 anos que foi violada e que, ao ter a bebé, se deu conta de que ia reviver psicologicamente a sua violação toda a vida, já que o violador pediu guarda conjunta da bebé e esse direito foi-lhe concedido. Em primeiro lugar, imagino quão difícil será para esta menina ir entregar periodicamente a filha a um violador (chamem-lhe pai, se acharem que um pai ou até que um homem se configura nesses termos) e imagino os receios ulteriores desta mãe que advém do progenitor ter violado uma rapariga de 14 anos e ter uma bebé do sexo feminino à disposição.

Voltando à violência doméstica que não inclui violência sexual, parece-me sempre irreal uma certa postura de avestruz que enfia a cabeça na areia para não ver. Se é certo que Portugal é o país europeu com mais casos de feminicídio e de violência doméstica e que, dentro de Portugal, os Açores ganham a medalha, não é menos certo que os vizinhos dizem sempre que nunca ouviram nada e a sociedade acha-os sempre bons rapazes…. A não ser, é claro, que sejam marginais ou financeiramente falidos, casos nos quais ninguém fará qualquer esforço para os defender. No entanto, no caso do homem violento e bem falante, o mais provável é a vítima receber a seguinte resposta quando vai ao Hospital ou ao Tribunal: “Se ele não lhe partiu nenhum osso, também não pode ter sido assim tão bruto!”



Friday, November 21, 2014

"A mim nunca me fez mal nenhum..."


A notícia sobre a suspensão do jogador de futebol Americano Adrian Peterson da Liga após se ter descoberto a acusação que pende sobre ele por castigos corporais violentos em relação aos filhos veio levantar o debate nos E.U.A. do que se entende por “castigos corporais violentos”. Imediatamente apareceu o clã de fãs – afinal, é uma estrela do futebol local – a dizer que é vergonhoso o estado a que as coisas chegaram no país, alegando que, por levar um estalo, um filho tem logo direito a chamar a Polícia e que isto explica a indisciplina juvenil que grassa por aí… Se eu tivesse ouvido apenas esta informação, seria bem capaz de concordar.

No entanto, basta informarmo-nos sobre a história para perceber que o filho mais novo de Peterson tem 4 anos apenas e que Peterson não lhe deu um estalo – usou um galho de árvore para lhe bater nas pernas, na barriga e nos genitais até os deixar em sangue. São variáveis que fazem toda a diferença. Não faço a minima ideia do que fez a criança para receber o “castigo” em causa – alias, causa-me um certo nojo que se faça esta pergunta, que implica a desculpa ética de que existe a possibilidade de que uma criança de 4 anos possa ter aborrecido o papá de tal forma que mereça ficar com os genitais em sangue. Talvez fosse bastante mais humano e mais lógico indagarmo-nos sobre se o paizinho não precisa de um tratamento de choque antes que se irrite com outra pessoa (ou com a mesma…)

Facto é que, após esta notícia, fizeram-se sondagens (Vide Huffington Post e YouGov) e concluiu-se que 81% dos americanos acredita que os castigos corporais são benéficos na educação das crianças e deviam ser legalizados. O próprio Peterson justificou a sua attitude perante o filho, alegando que ele mesmo costumava ser tratado assim na infância e que essas punições “nunca lhe fizeram mal nenhum…” Curiosamente (ou não!), é exactamente o mesmo argumento usado por todos aqueles que acreditam que uma boa sova faz milagres: “eu também apanhei e não me fez mal nenhum!” Aliás, costumam ir mais longe: tal como Peterson, acreditam que o seu sucesso (profissional e social, já que o emocional parece andar pelas ruas da amargura) se deve à “boa disciplina” que foi exercida pelos seus pais, cuja pancadaria em muito lhes aproveitou. Não sou psicóloga, mas estou em crer que  isto é uma espécie de sublimação – um mecanismo de defesa que torna um comportamento horrível numa situação socialmente aceitável.

Há estudos de sobra que nos demonstram que os castigos corporais abusivos não funcionam, tornam as crianças mais agressivas, causam problemas neurológicos e são apenas reflexos pavlovianos, isto é, não incutem noção do certo e do errado, fazendo com que a criança continue a ter comportamentos “errados” quando a ameaça de agressão não está por perto. Stacy Drury, professor de Ciência do Comportamento na Universidade de Tulane, resume tudo quando diz que “os castigos corporais só vêm ensinar às crianças que a agressão é um método aceitável para a resolução de problemas.”

No caso de Peterson, o problema é mais profundo. Não é uma simples agressão; é uma brutalidade que merece ser legalmente punida, até pelas marcas que deixou e deixará. Também não é um castigo; é um abuso de poder perante um ser humano quase bebé. Finalmente, é a continuidade do que o próprio Peterson estava habituado a ver como “normal” na convivência familiar.


A questão aqui está no quebrar do ciclo. Nalguma geração – esperemos que na do filho de Peterson, já que houve a coragem de desmascarar a situação e acabar com ela – este ciclo de abusos terá de acabar. É a geração que quebra o ciclo que tem em si não só o poder de mudança como a energia da evolução do mundo. Não é nisso que reside o propósito da espécie humana? 

Friday, November 7, 2014

Em jeito de resposta

Tem-me sido perguntado porque falo de tantos assuntos que, eventualmente (ou na opinião de alguns) não dizem directamente respeito aos Açores. É um ponto de vista. No entanto, acredito que os Açores, ainda que insulares, não precisam de estar insulados. Nesse sentido, penso que os casos, as informações, as questões de âmbito mundial pertencem igualmente aos Açores e interessam a quem lá vive. Se não é assim, teríamos de admitir que os Açores vivem de si, em si e para si  apenas – o que seria desastroso, a começar pelo ponto de vista económico e a acabar no cultural.

Outra questão que já me foi colocada é como traduzo as peças jornalísticas originais de que falo para as comentar depois. É uma pergunta um bocado escolar, mas julgo perceber nela um sentido mais profundo de tentativa de fidelidade ao original. Terei de responder com alguma teorização sobre o fenómeno da tradução em si.

Um trabalho de tradução literária ou técnica é sempre um trabalho ingrato porque o tradutor se encontra num duplo papel: primeiro, o de leitor da obra – posição equivalente à de todos os que se interessam pela leitura da mesma - ; segundo, o de intérprete da mesma, versando-a noutra língua e, logo, noutra cultura.

Nas traduções acontece exactamente o mesmo que com a interpretação de uma partitura musical: embora o que lá esteja escrito seja o mesmo para todos, cada qual a vai interpretar a seu modo. Como tal, surgem pequenas diferenças de andamento, de expressão, umas mais subtis e outras nem tanto. Deste modo, resulta que o que para uns é uma tradução excelente não agradará a outros, sem desprimor de pormenores técnico-linguísticos. Por exemplo, no caso de uma tradução literária, o que mais seduz não é a conveniência da semântica ou o rigor da gramática; é sim o estilo, a composição, tudo aquilo enfim que dá ao tradutor a ilusão de ser um segundo escritor da obra em causa.

As próprias diferenças culturais que cada língua encerra dentro do binómio significado-significante seriam suficientes para que essa ilusão se alimentasse. É, sem dúvida, por isso que é mais aliciante (e mais difícil) traduzir peças de línguas conjunturalmente muito diferentes da nossa. É também por isso que, quanto mais diversa a estrutura linguística – à qual corresponde um mundo subjacente – mais “erros” contem a tradução. Ou, como dizem os italianos: “Traduttore, traditore”, adágio célebre para explicar que o tradutor é um traidor... mesmo que não queira!

As crónicas de opinião são para os jornais o que as short-stories são para a literatura, mutatis mutandis. São géneros de eleição da contemporaneidade. Não há tempo para romances, não há alma para poesia,  e as pessoas precisam de narrativas que as preencham sem lhes roubar minutos em descrições, querem algo intenso e evolutivo mas tudo no contra-relógio do coelho de Alice.

No entanto, as crónicas cansam porque hoje todos são cronistas quanto mais não seja em blogs. E é por isso que tento fazer crónicas um pouco além da minha rua, que explorem o nosso interior sem nos roubar tempo para ele.



Friday, October 24, 2014

Onde Estava no 25 de Abril?

Lembrei-me desta frase caricaturada por alguns comediantes portugueses quando li um artigo da People Magazine: “What World Leaders were Doing in their 20s”. Não deixa de ser curioso verificar o que faziam os líderes mundiais na época da indecisão, dos trabalhos precários e da dieta pobre – isto porque quando eles tinham 20 anos, esse seria o tempo da vida para essas misérias. Hoje, as pessoas nos 30s, como eu, vivem as mesmas desgraças numa versão contemporânea lowgrade.
Voltando ao artigo, os líderes abordados são Obama, Putin, Merkel, David Cameron, Bashar Al-Assad (da Síria), Nethanyanu (de Israel), Rouhani (do Irão), Jong-Un (da Coreia do Norte) e Jinping (da China). A lista foi elaborada por uma jornalista americana e, obviamente, é discutível. O que, em primeiro plano, se nota é a escassez de líderes femininos – enfim, salva-se a honra com Merkel, figura germanicamente feminina.

Porém, o que choca na reportagem é a perspectiva da jornalista face à importância do que estes líderes estavam a fazer na idade das escolhas decisivas. Como todos os jovens de 20 anos, esta gente estava a trabalhar e a divertir-se. O que interessa é em quê e como. Claro que a jornalista escolhe o que lhe parece mais revelador de um percurso que se adivinharia luminoso e assertivo.

De Obama, diz ela que este escolheu ajudar num projecto de reconstrução de uma comunidade empobrecida. Além disso, viajou numa senda spiritual e aproveitou as loucuras inerentes à idade. Como se vê, era generoso e mente aberta, como interessa que se mostre. Já Putin trabalhava numa agência de alta segurança e, como tal, tudo o que lhe diz respeito é bastante secreto, só se sabendo que era um agente undercover e que praticava judo. Suspeito e ameaçador q.b. Cameron era um jovem dedicado à política. Mas para que não pensemos que era um tipo precocemente envelhecido, i.e. um jota de gravatinha, sempre se diz que pertencia a um famoso clube universitário de borgas, do qual recusa dar pormenores. O líder da Coreia do Norte é ainda mais misterioso do que Putin, e andou a acompanhar o pai em expedições militares, preparando-se para lhe seguir os passos como filho obediente ao seu senhor. Já o líder da China era um jovem equilibrado, um intelectual que aproveitou os tenros anos para conhecer as virtudes campestres da vida aldeã. O Presidente do Irão foi um esforçado, que pagou a sua educação e se exilou em Paris devido às suas discordâncias com o então poder vigente. O Presidente da Síria estudava medicina; a política inesperadamente caíu-lhe ao colo quando o irmão morreu num acidente. Já o de Israel estava nas forças de elite do exército e até liderava raids. Como se vê, questões que a jornalista escolhe a dedo.

Então e a representante feminina? A jornalista podia ter dito que Merkel esteve envolvida num projecto para a construção do campus da universidade onde estudava; podia ter ditto que ela já pertencia a movimentos politicos; que era uma estudante de Física muito bem sucedida… Mas o facto relevante da vida de Merkel para esta reportagem foi que ela casou pela primeira vez nesses tenros 20 anos e que viviam na pobreza. Ainda nos diz que Merkel casou novamente mais tarde e que apreciava beber vodka com cereja.

Conclusão: os aspectos importantes da vida de um homem são o que ele estuda, onde ele trabalha, a que actividades se dedicou nos tempos livres, as suas viagens. O importante da vida de uma mulher é quando, com quem  e quantas vezes ela casou, mesmo que ela seja, por mérito próprio, líder mundial. Atente-se também que o critério avaliativo vem da parte de uma sua congénere feminina. E é por isto que eu me interrogo muito sobre isso da emancipação da mulher, que me parece completamente torpedeado por uma certa concepção de conto de fada barroco que ainda vive na cabeça dos media e, desgraçadamente, na cabeça da maior parte das mulheres.


A mulher não vive de mérito próprio. Vive para um outro. Caso contrário, nos intervalos - a acreditar neste artigo -  vai bebericando uns vodkas com cereja. 

Friday, October 10, 2014

Mitos olímpicos


Confesso: antes deste episódio do julgamento parcial, eu nunca tinha ouvido falar de Oscar Pistorius. Agora já sei que é uma lenda viva na África do Sul, um grande campeão olímpico, um símbolo das pessoas com deficiência motora e, além disso, um rapaz bonito que enche posters. Como, porém, eu não vivo conectada aos mundos em que Pistorius se move e em que suspiram por ele, a primeira impressão dele foi péssima. Foi a de um tipo a chorar lágrimas de crocodilo depois de ter morto a namorada a tiro.

Pistorius não disse nunca que não tinha morto a namorada. Seria difícil negar, já que era de madrugada e estavam ambos sozinhos em casa. Além disso, as armas não se disparam sozinhas. O que ele afirmou em sua defesa foi que não sabia que estava a disparar contra a namorada – pensava que estava um intruso em casa e, portanto, sacou da arma e disparou umas balas através da porta da casa de banho que estava fechada com o suposto “intruso” lá dentro. Quando voltou à cama, percebeu que a namorada não estava lá e epifanicamente percebeu que a tinha morto, pelo que chamou logo uma ambulância.

Parece-me impossível que alguém que se guie pela lógica acredite nesta história. No entanto, a juíz Masipa acreditou. Agora, Pistorius aguarda uma sentença que será infinitamente mais branda porque se achou estar provado que “ele não tinha intenção de matar”.

Estive a tentar perceber esta história de um ponto de vista ingénuo a ver se chegava à mesma conclusão delico-doce de Masipa. Portanto, vamos imaginar que Pistorius e a namorada eram um casal “regular”. No entanto, a acusação mostrou imensas mensagens trocadas entre os dois em que Reeva (agora morta) lhe dizia que tinha “medo dele e dos seus ataques violentos”. A isto, Masipa contrapôs eufemisticamente que todas as relações são “imprevisíveis e dinâmicas”. Vamos, igualmente, imaginar que Pistorius se levantou e não deu pelo facto da namorada não estar deitada na cama. Ouviu uns barulhos e assumiu que um ladrão estava trancado na casa de banho (onde deve haver muito para roubar) e, portanto, não acordou Reeva nem viu se era ela que estava lá dentro; sacou da arma e tratou do assunto. Vamos pensar que sim, porque o rapaz é um homem de acção. Mas então como se explica que poucos minutos antes de ter morto Reeva, Pistorius tenha feito um telefonema de 9 minutos?... Estava acordado há muito, pelos vistos, o que lhe deu tempo para ver que Reeva não estava na cama. Telefonou para a Polícia? Nada disso. Ligou para uma ex-namorada que, como convém, o defende com unhas e dentes, dizendo que “a outra” (Reeva) era uma exagerada histérica e que Pistorius é um doce de pessoa. Esta questão do telefonema nem sequer foi tida em conta por Masipa.

Vamos, então, pensar que o que convenceu Masipa foi o facto de Pistorius se apresentar bastante pesaroso e de até chorar no julgamento. Isto foi o fundamental já que Masipa relatou que “o comportamento de Pistorius era incongruente com o desejo de matar alguém.” Não é preciso ser um grande criminologista para perceber que Pistorius chorava por si e pelo que lhe podia acontecer, não por quem tinha morto…

Resultado: não consegui perceber a conclusão de Masipa, mesmo com o esforço de eliminação do bom senso. O que consegui perceber é que, tristemente, este caso só vem re-confirmar que o feminicídio – a morte de uma mulher às mãos do companheiro - é irrelevante para a justiça. Tão irrelevante que se procuram dar razões para isso  - vide a defesa  “Ela nem sequer estava apaixonada por ele”! Portanto, esta Reeva merecia umas balas, já que toda a nação da África do Sul está apaixonada pelo seu atleta.


Acontece que a nação conhece o atleta; não conhece o homem. O homem Oscar Pistorius, em plena consciência e vontade, matou. Não devia merecer uma justiça diferente dos outros homens. Eu assino por baixo do jornalista do Guardian que disse: “O resultado desta história faz-me entender que não percebo o mundo em que vivo. Mas Pistorius percebe o mundo muito bem. Tão bem que sabe exactamente que se pode safar, mesmo fazendo o que fez.” 

Friday, September 26, 2014

Obituário


Para o Daniel 


No dia da sua morte, o nome do rapaz não saiu no jornal. A página impressa dizia “Jovem atirou-se de um prédio no centro”. Não havia menção à sua identidade. “Os ricos põem anúncios na coluna social quando um bebé nasce, ou quando obtêm diplomas; os pobres nem quando morrem têm direito ao obituário”, pensava o polícia nessa manhã. Quando o polícia foi chamado ao local no dia anterior, tinha tido muita dificuldade em reconhecer no rapaz caído no chão o seu antigo colega de escola. “Já não o via há muitos anos” disse ele a um colega, mas na verdade pensava que aquilo que ali estava no chão eram só restos, fiapos e bocados do ser humano que tinha conhecido. Custava-lhe fazer a ligação entre o antigo rapazinho de escola e estes esfrangalhos de carne no passeio de um  adulto já vazio de si.

“O que é que leva um tipo a matar-se? A gente nunca há-de saber” resmungou o colega do polícia, chateado com o calor, um indefinido cheiro a sangue que secava ao sol e com o facto da multidão continuar a não arredar pé como se esperasse uma ressurreição. Mas o polícia, calado, cismava no rapazinho triste que conhecera há muitos anos. O rapazinho que passava um frio de rachar no Inverno e que dividia com o irmão uma única camisola de lã – um dia vestia-a um, no dia seguinte vestia-a o outro - ; o rapazinho que comia na escola a refeição social e escondia paposecos no bolso roto das calças; o rapazinho que roubava porque o pai o mandava fazer o “serviço” e que aparecia com marcas de talhos de faca nos braços, nas pernas, nas costas, quando o “serviço” não tinha trazido dinheiro suficiente para casa. O polícia lembrava-se disto tudo e de outras coisas sobre o rapazinho que nem a sua memória queria recordar e resmungou “Ele sempre teve uma vida de cão.” Não disse mais nada, mas lá consigo mesmo pensou que era bem possível que toda a vida deste rapaz tivesse sido assim ou pior e que ele se tivesse, simplesmente, cansado de tanto lutar para sobreviver.

“Nós é que fazemos o nosso destino” vaticinou o colega de turno do polícia. “É sempre bonita esta filosofia quando se nasce num berço de oportunidades”, pensou o polícia que conhecia o rapaz, “Mas um tipo que nasce na miséria, ou na violência, ou em ambos não faz destino nenhum. Tem à sua frente anos e anos de todas as torturas que se podem fazer aos elos mais fracos. Depois, quando cresce, ou consegue miraculosamente arranjar forma de sair daí ou não. Há os que vão para polícias. E há os que se atiram de um prédio.”

Esse rapaz que agora jazia informe na rua já tinha sido um menino que lutava desesperadamente pela vida. Com 9 anos, irrompera pela porta da mãe do polícia, sua vizinha, pedindo protecção porque “o queriam matar”, dizia ele. Esse menino que então fugira da morte corajosamente, era o mesmo que voluntariamente a tinha ido agora abraçar em suspenso. Crueldade irónica.

Uma transeunte - que pertencia à categoria daquelas pessoas sensíveis de que fala Sophia no seu poema (portanto, não suportava ver matar galinhas, mas gostava de as comer) – disse muito alto e com uma expressão de nojo: “Que horror, que egoísta! O homem não se lembrou que ia ficar espapaçado no chão e que íamos ficar com o estômago às voltas e pesadelos pela noite fora? Que falta de consideração!” E esta dama, que nunca na vida fizera algo pelos maltratados, ensaiou um desmaio.

O polícia pensou que era bem fácil a esta gente nervosa julgar um corpo no chão, de intestinos fora da barriga e de mãos quase coladas ao pavimento por força do sangue agora já seco. A ele, polícia com recordações, era só infinitamente triste, porque os olhos agora sem sopro de vida do jovem eram a mesma íris, as mesma pestanas do rapazinho de outros tempos. “O que terá ele pensado naqueles segundos entre o prédio e o chão, quando estava no ar?” torturava-se o polícia, “Será que se arrependeu do salto?”

E nisto arrependia-se também o polícia de nunca mais ter sabido do seu antigo colega de escola, porque quem sabe...talvez... tudo fosse diferente. E, sacudindo a cabeça, engoliu. “Podia ser eu. Só Deus é o juiz deste homem.” E esperou que alguém escrevesse, respeitosamente, um obituário que dissesse que o mundo desse rapazinho fora muito difícil e que, a seu modo, ele fora um herói por ter conseguido fazer uma vida com a existência que lhe coube em sorte.


Friday, September 12, 2014

Abuso da Liberdade de Imprensa


O Papa Francisco aprovou os estatutos da Associação Internacional de Exorcistas no Vaticano, legalizando os exorcismos. Deste assunto não se fez grande publicidade, talvez porque, dentro da própria Igreja Católica, os padres exorcistas sejam uma espécie de classe à parte – isto sem falar no conceito de exorcismo que leva, de imediato, a questionar a ideia de Diabo e a sua (possível) influência prática nas vivências. No seguimento desta legalização, o Rev. Francesco Bamonte disse à Imprensa que “o exorcismo era um acto de caridade para com aqueles que sofrem” e que “as possessões diabólicas estavam a aumentar porque hoje em dia muita gente se dedicava ao ocultismo.” O Vaticano não se pronunciou. Mutatis mutandis, também eu não me pronuncio porque não pratico o catolicismo e não tenho conhecimentos para opinar.

No entanto, esta contemporaneidade do exorcismo veio-me à cabeça quando li que um jornal inglês estava a ser severamente criticado pela exploração de uma história dita satânica.  O jornal apresentava na capa um menino de 4 anos, cuja barriguinha nua apresentava um sinal, que – segundo o jornal noticiava em parangonas – era “ a marca do Diabo”. No artigo interior, o jornal entrevistava os pais e, para maior exposição, escolheu identificar e nomear a criança. Já estou, portanto, a ver o drama que este menino passou a viver em público, sobretudo no colégio, onde, depois desse artigo, não terão faltado pais histéricos e colegas provocadores...

Em si, o artigo é jornalisticamente pobre e ridiculamente mal formulado - baseia-se numa entrevista aos pais da criança, que parecem desejosos de contar ao mundo a aflição que lhes coube porque “algo sobrenatural visitou o nosso filho”. Também insistem em que não sabem como foi feito um símbolo tão bem desenhado que, eventualmente e noutras circunstâncias, nos faria pensar porque raio andariam eles a marcar a criança como se fosse gado... (perdão pela divagação). Bem pior do que isso é, no entanto, a utilização completa da criança cujo nome e cara estão estampados no jornal. Será que ninguém pensou que um ser humano com 4 anos é um ser humano de pleno direito? E que, portanto, não pode nem deve ser  usado para fins publicitários e muito menos “endemoninhado” publicamente? O que isso lhe pode trazer de prejudicial numa sociedade conservadora e desejosa de uma caça às bruxas é assustador, sobretudo se tivermos em conta que a criança não está a ser protegida por ninguém – são os pais que o consideram marcado pelo Demónio e o expõem como tal...

A questão dos direitos do menino foi levantada por diversos Membros do Parlamento dos dois principais partidos  – já disse que isto foi na Inglaterra? – que denunciaram o caso à Press Complaints Comission, afimando que o jornal fora completamente “inapropriado, irresponsável e errado”; “será que não se envergonham disto?”. O jornal respondeu dizendo que “a história tinha chegado até à redacção [são sempre misteriosos os caminhos da informação] e que nunca encorajaram os pais a dar a entrevista, até porque os pais já tinham explorado a história nas redes sociais sem qualquer preocupação pelo bem estar da criança em causa.”

Obviamente, os principais “culpados” desta situação são os pais, cuja insensibilidade está à vista. Mas isso advém do velho mito que alguns pais têm de que são donos dos filhos como são donos de um poodle ou de um carro. No entanto, também critico o editor, claro. Sendo o jornal da sua responsabilidade, a escolha de publicar uma fotografia do rosto da criança bem como de publicar o nome do menino é sua. Podia fazer a história sem lhe apontar o dedo. O consentimento paterno não inviabiliza a sua óbvia falta de ética.

Por outro lado, saúdo esta cultura inglesa que não receia apontar o erro quando isso fere a sua noção de “honour”. Em Portugal, podemos fazer queixas e reclamações pela falta de ética da imprensa, pelas suas falsas informações, podemos lutar pelos direitos de quem não pode falar por si, que o mais que nos acontece é sermos silenciados por algum editor cuja capacidade de resposta é igual à sua capacidade redactora.  

Friday, August 29, 2014

A mulher no comboio

Vinha sentada à minha frente. Tinha aquele ar fatigado e distante que se encontra em certos rostos ao fim do dia, que eu atribuí ao cansaço e também à barriga proeminente de grávida, sinal de que ela não era um mas dois. Para se distrair da viagem longa, começou a jogar com o telemóvel até que este tocou e ela atendeu apressada com “Sim, amor?” O som do aparelho era tão alto que se ouvia também o que dizia o “amor” do outro lado. Depressa se tornou evidente que a conversa não era de carinho, apesar das tentativas públicas da mulher para a tentar fazer passar como tal (ou, talvez, as tentativas fossem para si mesma, isso não sabemos porque pouco se conhecem aqueles com quem partilhamos algo, muito menos os que vimos uma vez num comboio de passagem).

“Mas, querido, se estou demorada é porque tive de esperar 15 minutos a mais na estação. Mandei-te mensagem a dizer que o comboio estava atrasado. Como não recebeste? Tenho relatório de entrega! Mas que pensas tu que estive eu a fazer em 15 minutos? Claro que estive na estação!” E a mulher justificava sem cessar os 15 minutos de atraso, como se tivesse feito um crime (bem sabemos que ela nem dá por isso, de tão habituada deve estar a dar razões e mais razões para tudo o que lhe acontece e a ver-se como efectiva criminosa por chegar 15 minutos mais tarde... quem sabe não estará a duvidar se o “amor” terá mesmo recebido a mensagem que ela mandou já que ele garante que não recebeu nada).

“Não estou com ninguém. Com ninguém! Por favor, com quem havia de estar? Bem sabes que ando sempre sozinha! ... Não, junto a mim vai sentada uma senhora com uma criança.” (e olhava-me, já desconfortável, altura em que achei por bem deixar de fingir que não ouvia a conversa e respondi-lhe com um sorriso compreensivo.)

“Mas não, não falei ao telefone com ninguém! Juro-te que estava a jogar no telemóvel! Palavra de honra, com ninguém.” E já um pouco chorosa (ela saberá melhor do que nós porquê, talvez antevisse o que a esperava a ela e à barriga quando chegasse a casa) ofereceu ao “amor” esta alternativa: “Podes verificar o meu telemóvel à vontade!”

Foi aí que o “amor” a apelidou de vários nomes que não coloco aqui e lhe disse que saísse imediatamente na próxima estação e apanhasse um táxi, que ele não era parvo nenhum, e ela tinha 10 minutos para chegar se tinha amor à vida. E a mulher, com o corpo muito cheio e os olhos muito vazios, carregando a custo a barriga, saíu, apressada e obediente.

Não a censuro. Às vezes, não há mesmo alternativa. Talvez ela não tenha família a quem recorrer; talvez na “família” dela abunde o mesmo tipo de “amor”, em que o controlo se mascara socialmente de preocupação e em que os castigos e as torturas físicas são aceitáveis porque “doem tanto a quem dá como a quem recebe”; talvez não tenha recursos que a permitam sobreviver; talvez receie a morte, porque os “acidentes” estão sempre a acontecer. E ela não é só um, são dois. A mulher são duas vidas. Talvez sejam até mais.


Gostava de a ter parado e de lhe dizer que saia dali enquanto pode. Que apanhe o comboio sempre em frente. Saia na paragem onde já não tenha medo de entrar em casa nem tenha de justificar o que não fez. Que vai haver sempre quem lhe diga que ela não soube apreciar o que tinha – quando não sabem que vida tinha. Que vai haver sempre quem faça coro com o “amor” e a apelide de coisas inomináveis, porque as pessoas se protegem fazendo coro com os mais fortes. Talvez um dia os filhos da mulher ouçam esses nomes e tenham dificuldade em acreditar que esses atributos são para referir a mãe que eles conhecem. Mas, infinitamente pior do que isso, será passar a vida com medo do “amor” e do que ele vai fazer. Um medo que não vai dizer a ninguém por receio de que ninguém acredite e que vai crescer também pelo silêncio dela e pela cooperação dos outros. Será pior ver os filhos a crescerem no mesmo pavor. Até ao dia em que alguém fará algo: talvez o “amor” cumpra a ameaça contra um deles; talvez ela se revolte e desapareça; talvez a criança cresça e enfrente o que nunca antes conseguiu enfrentar. Nessa altura, as pessoas dirão: “Ah, eu sempre achei que ali havia qualquer coisa invulgar...” Mas, lamentavelmente, farão o que eu fiz no comboio. Calam-se e não fazem nada. 

Friday, August 15, 2014

Gilette Cor de Rosa

Começa quando somos fetos. As nossas famílias (ou quem por nós vela) compram-nos roupinhas a condizer: rosa para as meninas, azul para os meninos e a parafernália de branco, amarelo e verde enquanto não se descobriu ainda o sexo do bebé. Depois, na infância, há todo um ambiente caseiro e social que define o estatuto macho ou fêmea comme il faut. Daí que se dêem bonecas às meninas e carrinhos aos meninos e tanto uns como outros sejam energicamente desencorajados de brinquedos contrários ao seu género, para que as meninas estimulem a doçura e os rapazes a força. Claro que há brinquedos andróginos, como os puzzles e os blocos de construções... Mas mesmo esses ultimamente aprenderam a segmentar o seu público consoante o género. A Lego, por exemplo, deixou de ter Lego unissexo (como tinha); agora tem Lego boys e Lego girls e, surpreendentemente (ou não!), expandiu as suas vendas globais em 25% por causa disso e triplicou o número de meninas que brincam com Lego. Isto porque a opção Girls está cheia de bonequinhas e casinhas fofinhas. Que influenciáveis são as crianças, certo? Errado. Quem compra o produto não são elas...

Os adultos adoram produtos exclusivos para o seu género. Numa pequena volta ao supermercado, reparem como está organizada a secção de higiene: shampoo para homem, shampoo para mulher; lâminas de barbear para homem, lâminas depiladoras para mulher; desodorizante para ele e para ela; enfim, a lista é interminável... Agora, tirem um tempinho e verifiquem como os ingredientes do tal shampoo tão específico são iguaizinhos quer diga Man ou Woman. A razão pela qual raramente se dá por isso é que nem entramos na ala do supermercado específica para o género oposto ao nosso.

Nem só na higiene e beleza isto se verifica. Outro campo vasto é o das vitaminas e suplementos alimentares ou cápsulas para desportistas. Ainda recentemente um anúncio de vitaminas “para homem e para mulher em separado” deixava claras as necessidades diferentes de um e de outro sexo após a meia idade, sublinhando que  “para além de necessitarem de vitaminas para fazer frente às alterações da menopausa, as mulheres necessitam de ter uma mente sempre activa.” Esta deliciosa publicidade não só esquece que a andropausa existe - embora com menos fúria hormonal - como, sub-repticiamente, lá vai dizendo que os homens não precisam de ter uma mente activa depois dos 50.

Mas, afinal, que ganham as marcas com isto? Vendem mais. Os lucros de todas as marcas que fazem distinção de género nos seus produtos são consideráveis, exactamente a partir do momento em que fizeram essa distinção. Além disso, aumentam os lucros não só pelo número de vendas mas também pelo aumento de preços, considerando que um produto específico tem de ser mais caro (apesar de ser igualzinho...). Neste particular, note-se que os produtos para mulheres são geralmente mais caros do que os produtos para homens e não é difícil perceber porquê: de forma geral, as mulheres vão mais às compras. Só que, contrariamente aos anos 50, já não querem comprar produtos que sirvam “para toda a família” (e.g. Pasta Medicinal Couto), talvez porque a noção familiar se estilhaçou completamente. Em boa verdade, isto dava um estudo muito mais profundo.

A febre já alcançou o mundo da eletrónica. A Fujitsu lançou um laptop para mulheres chamado “Floral Kiss”. Tem adornos com brilhantes e flores, horóscopo integrado e é especialmente desenhado para as “unhas longas das senhoras”, esse atributo secretarial de excelência.


Para cativar o seu público-alvo, as companhias apostam também nas embalagens. O velho estereótipo das cores continua a funcionar bastante bem. De igual modo, linhas curvas, flores e texturas suaves estão nos produtos para mulheres; embalagens quadradas, ângulos rectos e, se possível, poucos desenhos e a inclusão de números – os homens acham que os números validam seja o que for – encontram-se nos produtos masculinos.  Ainda assim, é mais comum ver uma mulher usar um produto “for men” do que o contrário, provavelmente pela mesma razão que faz com que uma mulher não se sinta muito chocada por ir ao WC masculino se estiver aflita mas um homem prefere ir a um cantinho da via pública do que ser visto a entrar no WC feminino. Coisas... 

Friday, August 1, 2014

Requiem para os viciados em chocolate


Uma estação de televisão holandesa mostrou uma experiência curiosa: um apresentador foi até à Costa do Marfim, principal exportador de cacau, dar a conhecer o chocolate aos agricultores de cacau. As imagens impressionam sempre mais do que as palavras mas eis a minha tentativa de contar a história. O apresentador começa por se dirigir a Alphonse, proprietário de umas terras que produzem cacau. “Proprietário” quer dizer que ele tem 4 trabalhadores a colher frutos e a secar grãos, porque o próprio Alfonse vive muito pobremente: ganha 7 euros por dia e tem uma família de 15 pessoas, não esquecendo que tem de pagar aos 4 empregados.

Quando confrontado sobre “que se faz destes grãos?” Alphonse responde que sabe que dali se faz comida, mas não sabe dizer o quê porque nunca a viu. Ele vende os grãos a um produtor.  Alphonse é o primeiro a provar um dos chocolates que o apresentador levou consigo. Fica entusiasmado com o sabor doce – para ele inesperado! - e decide que os seus amigos têm de provar aquilo. Na roda de amigos, seguem-se exclamações fantásticas sobre o dito chocolate, como por exemplo “Então é por isto que os brancos são tão saudáveis!” Que diria a Organização Mundial de Saúde se ouvisse esta frase?...

O documentário explica que o chocolate existe na Costa do Marfim mas é muito caro: 2 euros por barra o que, tendo em conta os salários, é um valor absurdo. Isso explica o porquê destes homens nunca terem provado um chocolate que, aliás, ali não é um produto tão disponível como na Europa e na América.

Em seguida, o apresentador conversa com os trabalhadores de Alphonse, cuja alegria ruidosa no trabalho é contagiante. Questionados sobre o destino dos grãos após fermentação nas folhas de banana, eles também não sabem, embora tenham ouvido dizer que servem para fazer bom vinho. Estão mais desconfiados sobre a verdadeira origem do chocolate que lhes é apresentado mas também mais curiosos. Querem saber exactamente como se passa dos grãos ao chocolate e acham graça ao facto dos “brancos serem viciados” nos quadradinhos que provam agora. Fazem piadas com a relação entre comer chocolate e ficar com a pele branca. Finalmente, dizem querer guardar o papel do chocolate para mostrar aos filhos porque é inacreditável e também porque estão orgulhosos – “Nós queixamo-nos porque cultivar cacau é um trabalho difícil. Mas agora provámos o fruto deste trabalho. Que maravilha! Que privilégio!”

E isto é que impressiona. Porque estas pessoas podiam ter dito algo como “Andamos aqui a trabalhar como escravos para que outras pessoas possam comer chocolate todos os dias!” ou “Como é possível que os nossos filhos nunca tenham comido isto quando somos nós que trabalhamos para dar isto ao mundo?”

Mas não. Ficaram felizes com o facto de terem provado o simples fruto do seu trabalho. Deram graças por um direito que não sabiam que tinham. Que, vendo bem, não têm nem voltarão a ter apenas devido à gritante injustiça do mundo. Mesmo as pessoas que viram este documentário e se emocionaram em breve esquecerão como é horrível que o mundo seja dividido em apanhadores de cacau, que nunca comem chocolate e que nem sabem o que isso seja apesar da dureza da labuta,  e em viciados em chocolate, que nunca tocaram o fruto duro e amargo de cacau por curiosidade e nem muito menos por necessidade.

Amanhã vamos ao supermercado e havemos de comprar uma barrita, já de consciência limpa. Os problemas dos outros, a fome dos outros, a suas dores... não é nunca um drama nosso. Até ao dia em que tivermos nós problemas, fome, dores. Seguramente não será hoje, portanto se comermos um chocolate até encaramos a vida melhor.


Mas interrogo-me: agora que provaram o chocolate e sabem que estão a perder uma delícia; agora que perceberam que metade do mundo come abundamente algo que eles produzem com sacrifício e que a eles lhes está vedado... é bem possível, parece-me a mim, que os apanhadores de cacau já não trabalhem com tanta alegria. É que, às vezes, a ignorância traz felicidade. 

Friday, July 18, 2014

Só boa gente


O “The Independent” noticiou recentemente o caso chocante de uma jovem Sikh, residente no Reino Unido, que foi espancada pelo sogro em frente aos seus filhos (netos deste), ficando com sequelas graves para a vida. O espancamento deu-se porque o sogro pensava – injustamente – que a jovem estava a ser infiel ao seu filho com um muçulmano. São conhecidas as guerrilhas entre sikhs e muçulmanos, que, para o caso, não interessam. Facto é que, neste momento, a senhora está parcialmente cega e com dificuldades de mobilidade, sendo todas estas lesões irrecuperáveis. Felizmente, as crianças têm o apoio deste pai e deste avô para a sua vida diária (insiram aqui a pontuação que vos parecer mais adequada... não encontrei nenhuma que expressasse os meus receios).

Como era de esperar, os comentários que choveram a esta notícia online centravam-se todos nos abomináveis costumes “dessa gente”, no modo execrável como tratavam as mulheres e os filhos, na sua obediência cega a religiões desumanas e outras conversas no género. Até que alguém se lembrou de outra notícia, também recente, sobre dois casais de ingleses que tinham assassinado os seus filhos, sem motivo aparente (e que motivo haveria que fosse suficiente para essa acção à laia de Cronos ou de Medeia?) A partir daí, cilindrados por um comentário que lhes mostrava que há “animais” em toda e qualquer cultura (inclusivé na sua), os britânicos middle –class deixaram de incitar a que os sikh fossem mandados de volta à sua terra e passaram a apelar a penas mais duras para casos do género, não mais mencionando a etnia dos criminosos.

Entretanto, e como é sabido, sempre que aparecem notícias sobre uma violação na Índia – e reparem que ultimamente se fazem muitas manchetes sobre o assunto, como se só agora começassem a ser violadas mulheres e apenas na Índia... mas adiante – Portugal fica eufórico. Ele é petições na internet, ele é posts no Facebook a que só faltam lágrimas, ele é comentários onde até já li menções a novenas (!!!). Portugal abraçou a causa de salvar as mulheres indianas do flagelo da violação.

Há poucas semanas, foi violada uma jovem de 19 anos perto do Metro do Marquês de Pombal em Lisboa. Sempre é mais perto do que a Índia e, em termos de salvação, estou em crer que seria mais fácil ao povo português dar uma ajudinha. No entanto,  a atitude portuguesa foi imediatamente a de uma postura completamente diversa. Os comentários públicos online eram qualquer coisa como isto, e transcrevo: “Mas o que é que estava uma mulher sozinha a fazer na rua às três da manhã?” ou “Andam vestidas como andam, na passeata, e depois queixam-se...” e esta pérola: “Sempre ouvi dizer que quem é violado é porque não colaborou!”

Se pensam que foram só homens a ter esta postura, desenganem-se. As mulheres são as maiores e mais ferozes críticas de uma outra mulher, cujo pecado é ser jovem, ter ido sair com amigos  e, eventualmente, ser atraente. Isto dava um estudo sociológico que não é de desprezar.

Estou em crer que a jovem só não foi cilindrada em público porque afirmou à Polícia que o violador tinha pronúncia estrangeira. Isso sempre ameniza um pouco as coisas. Está visto que o “suposto criminoso” (se se pode dizer tal de quem  não pôde resistir a uma provocadora tentação ou de um homem que foi obrigado a usar a força porque não teve colaboração!) não era dos nossos. Sempre a moça admite que ele era alguém de fora. Portanto, podem os portugueses descansar - não foi ninguém com quem partilham vizinhança ou com quem almoçam, por Deus! Continuem com as novenas e os apelos no Facebook porque é bem capaz de ter sido um indiano.


Friday, July 4, 2014

Chiellini al dente


-Então, continua a afirmar que foi mesmo mordido por Suarez?

-Toda a gente pôde ver que sim nas imagens televisivas!

- Meu caro, o árbitro nada viu... Quanto às imagens televisivas, lembro-lhe que há um relatório da Federação de Futebol do Uruguai que demonstra claramente que a suposta mordidela que se vê nas imagens é obra de esquemas de montagem, ao melhor estilo Photoshop.

- Esse relatório é ridículo! E o árbitro não viu porque estava de costas.

-Ridículo? Falamos de um documento oficial de 17 páginas... Tenhamos consideração pelas instituições e seus técnicos especialistas.

- Mais provas fossem necessárias, eu tinha uma marca óbvia!

-Caríssimo, uma marca que, como bem disseram publicamente muitos defensores de Suarez, pode ter sido feita por outros dentes que não os dele... Ninguém fez uma prova dental à marca! Imagine, em último caso, que você foi mordido por outra pessoa – sabe-se lá em que situação – e depois usou isso dentro do campo quando lhe deu jeito. Ou mesmo que você se auto-mordeu nos balneários para depois causar este sururu...

- Está a acusar-me de loucura?

-Tenha calma e não se exalte. Estou a demonstrar que há muitas formas de se ver este incidente e que a sua versão não é a única. Percebe?

-Realmente não! Isto é claríssimo!

- Suarez disse à nossa Comissão Disciplinar que perdeu o equilíbrio e que à conta desse desaire – que pode acontecer a qualquer um – caíu com a boca aberta em cima de si.

- Realmente quando se quer desculpar um homem inventam-se as teorias mais absurdas! O Suarez até tem um historial.

- Não chamemos para aqui o passado que não interessa.  Espero que não esteja a insinuar que nós somos parciais ou corruptos! Teria de o sancionar a si... Até parece que você quer estragar a carreira ao homem, que diabo! Por causa de uma dentadinha... Qualquer jogador está sujeito a coisas piores, sei lá, fracturas expostas... Que má vontade a sua!

- Cada vez percebo menos. Ele é que me agride e eu é que tenho má vontade?

- Claro, há quem se ponha agora a dizer que o homem é um canibal!

- Mas isso é culpa dele, que fez o que fez, e não minha!

- Lá está o amigo a exaltar-se outra vez. Olhe, vamos então supor que você levou mesmo uma dentadinha. Qual é o grande drama? O futebol não é para meninas. Sabe que o Presidente do Uruguai disse isto mesmo. O Suarez é um jogador e não uma princesa. São coisas naturais...

- Natural é levar com a bota no nariz! Uma dentada à traição não é natural! É coisa de uma criança pequenina. É humilhante, é ridículo. Não faz parte do jogo. O Suarez tem de ser visto por um psiquiatra. Andar a morder pessoas não é de homem adulto.

- Deixe de se armar em psicólogo! Alguém lhe pediu opinião? Andar aí a choramingar por causa de uma dentada é que não é de italiano nem de homem. Ouça... Parece coisa de maricas.

- Nem acredito no que ouço! Quer dizer que eu é que agi mal, afinal?


- Aceite o meu conselho e esqueça. Uma ou outra pessoa – como os fifis dos ingleses – dá-lhe razão, mas a maioria do poder está com o Suarez. Vamos dar ao Suarez um castigo breve... E depois volta tudo ao normal. As pessoas esquecem e você é que vai ficar mal visto por se ter queixado. Olhe que o Suarez até se magoou quando o mordeu! Você tem uma couraça de ombro! 

Friday, June 20, 2014

"O país insustentável"


Nas jornadas parlamentares do PSD em Março foi dado o alerta que Portugal estava em risco “super vermelho” no que à natalidade dizia respeito. Assim disse Joaquim Azevedo, professor da Universidade Católica do Porto e coordenador do grupo de trabalho para a natalidade em Portugal. Disso não se fez lá grande notícia, apesar do professor ter salientado que, a continuar nesta tendência, Portugal terá sete milhões de habitantes antes do fim do século. Como razões, apresentou não só a fuga da população activa mas o facto das mulheres em idade fértil serem socialmente prejudicadas por questões ideológicas no Portugal de hoje, vide o trabalho e a jurisdição. Ninguém prestou lá grande atenção. O presente é tão duro que do futuro se há-de tratar a seu tempo.

Mas, quando anteontem, o mesmo professor deu uma entrevista à Antena 1 e disse que havia várias empresas em Portugal que obrigavam as mulheres em idade fértil a assinarem declarações em como não engravidariam durante 5 anos levantou-se um burburinho.

Logo vieram os teóricos do costume afirmar que tais declarações não possuem valor jurídico e, como tal, batatas. Isso é irrelevante. O relevante é que as empresas cometem uma ilegalidade e não são punidas. Além disso, em tempos de crise económica, as pessoas a muito se prestam no trabalho, desde condições desumanas a regulamentos ilegais, para conservarem o emprego. É aproveitando-se desse facto que tais cláusulas aparecem e são assinadas. É também sabendo que não há dinheiro para ir a Tribunal que depois as empresas se dão ao luxo de despedir funcionárias caso elas engravidem mesmo – pois todos sabemos que não há método que funcione 100% excepto a castidade...

Aparte a ilegalidade, há dois factos importantes. 
Primeiro, nem o Estado nem os privados têm o direito de imiscuir-se nas decisões pessoais de cada um, mormente no “ter filhos”. Isto vem sendo moda (veja-se o caso da senhora a quem foram retirados os filhos porque recusou o conselho do Tribunal de fazer uma laqueação de trompas...). Soa tão bizarro como se tivessemos voltado aos tempos da Inquisição. É, pois, uma questão de Direitos Humanos fundamentais. Segundo, há aqui uma questão de desigualdade premente. A lei em Portugal estima que, em caso de divórcio, os homens e as mulheres têm direito aos filhos em parte igual – é uma lei salomónica: filhos, propriedade e dívidas a 50%. Ora, assim sendo, muito me espanta que sejam só as mulheres a ter de assinar um papel que diga que não podem ter filhos! Afinal, está instituído por lei que tanto os homens como as mulheres “sempre tratam” dos filhos em partes iguais... Portanto, seria lógico que os homens também assinassem um papel a dizer que não vão ter filhos, já que, do ponto de vista jurídico, se assume que os pais gozam de licença de paternidade, têm direito a dias para tirar quando os filhos estão doentes e põem a sua carreira em segundo plano para tratar dos filhos tanto quanto as mães. Todos sabemos que assim é, não é verdade? Pois.

Aliás, a última moda é dizer “Nós engravidámos” em vez de “eu engravidei”. Muito criticada é a mulher que diz “eu engravidei” porque isso destitui e empobrece o papel do homem. A este propósito, leiam as críticas feitas à actriz Mila Kunis (“O Cisne Negro”) por ela ter dito que incluir o homem na gravidez era ridículo e irreal, equivalente a dizer que as mulheres sabiam o que era ter próstata.

Porém, não assumam que são os homens os primeiros críticos das mulheres-mães que trabalham. De facto, do que me é dado ver, mulheres cuja maternidade foi mal conseguida ou é inexistente são as primeiras a criticar as mães que trabalham e que lá por isso não deixam de ser Mães.

Para efectuar um bom trabalho, não é preciso ser um tipo gelado e férreo, à laia de Angela Merkel (sei que não é mãe e creio que foi uma óptima opção, a propósito! Antes isso do que sê-lo por convicção burguesa). Para ser mãe, também não é preciso e nem é desejável que esse seja o único interesse da nossa vida. De facto, basta apenas que seja o mais importante.


Friday, June 6, 2014

Engenharia

Certo empresário português disse recentemente que Portugal acreditara que a “educação para todos” era a receita para o País ser informado e civilizado lato sensu; mas, 40 anos depois, verifica-se que hoje todos são licenciados e continuam sem instrução [sic].

Não sei se isto é verdade (até porque tenho menos de 40 anos e não sei o que sejam “passagens administrativas”) mas uma coisa sei eu, por experiência: os erros de Engenharia e os de Educação pagam-se muito caros e ambos pela mesma razão. É que depois de estarem construídos os edifícios, sejam eles materiais ou humanos, é muito mais difícil descontrui-los até aos alicerces para os refazer do que tê-los feito bem da primeira vez... Além disso, subsistirão sempre erros da primeira construção.

Penso que foi Martinho Lutero quem disse “Dêem-me uma criança antes dos 7 anos de idade e eu dir-vos-ei em que homem o torno”. Há nisto muito de verdadeiro. A educação fulcral do “caroço” de um ser humano é bastante prematura. Quando inicia a escola, não só o carácter do indivíduo está bem marcado como a sua personalidade já teve tempo para ser moldada por acontecimentos que fizeram o barro tomar forma. Além disso, cognitivamente, de modo formal ou informal, já foram exploradas muitas coisas. Na escola, toda essa matéria pode ser bem ou mal guiada... Mas o que é difícil é esperar que o ensino superior realize um milagre quando recebe indivíduos já adultos – ou seja, a Universidade pode e deve abrir horizontes, fomentar curiosidade e conhecimentos; mas não vai “transformar” diametralmente um indivíduo se a apetência inata deste para a vida intelectual for quase nula.

Com isto não quero dizer que a educação (no sentido de instrução) não leva ninguém a lado nenhum – uma conversa fácil com o fantasma do desemprego que a todos assusta. A instrução não é garantia de nada, hoje em dia, é certo; mas leva-nos sempre mais longe do que a sua ausência.

Tive esta conversa quando fui assistir à palestra do Ex-Presidente dos E.U.A., Bill Clinton, na Universidade onde lecciono. Fiquei surpreendida por ouvir falar Clinton com tanta percepção e agudeza de espírito sobre vários países, tanto sincrónica como diacronicamente. A inteligência cultural, essa sim, cultiva-se. Do que ouvi, fez eco em mim a questão da Identidade, questão que sempre me interessa, pois sou – como dizia Petar Petrov noutra conferência recente sobre quem vive noutra cultura – “um ser humano traduzido”.

Entre outros, Clinton falou do Human Genome Project (projecto científico internacional que originalmente nasceu para determinar a sequência base do ADN humano). O estudo chegou à conclusão que o “genoma” de cada humano é único... mas 99.5 % do que faz um humano é igual. Logo, o que nos diferencia uns dos outros do ponto de vista biológico é apenas 0.5%. Porém, os nossos cérebros estão eternamente preocupados com aquela pequena parte que nos diferencia. E a razão é simples: a busca humana é sempre pela sua identidade.

A luta por uma identidade, seja pessoal, nacional, cultural, nunca é fácil. A própria expansão de uma identidade é um desafio. É motivo de orgulho quando tudo corre bem e é sempre conflituosa quando esbarra com dificuldades - veja-se o caso da ideia de Europa como um todo único, exemplo perfeito para definir o “mundo inter-dependente” em que vivemos e cujo segredo do equilíbrio está em definirmos os termos dessa inter-dependência.

Como disse Clinton, “A identidade é o que nos define. Só há uma coisa mais importante do que a nossa identidade: é a nossa humanidade comum.”

Imagino que devem estar a interrogar-se sobre o título desta crónica versus o conteúdo. Para isso, também tenho uma frase de Clinton: “É preciso muito cuidado com os news headlines nesta era da informação. Às vezes não correspondem nada à realidade...” 

Friday, May 23, 2014

A supremacia do WASP

Frazier Glenn Miller voltou a ser preso recentemente. Para um europeu, este nome talvez não diga nada... No entanto, nos E.U.A. é conhecido por ter fundado o White Patriot Party, anteriormente denominado os Cavaleiros do Klu Klux Klan. Contrariamente ao que se possa pensar, o Klu Klux Klan não morreu nos idos de 1800. Apesar de hoje em dia, os seus membros não andarem encapuçados a queimar negros nas pradarias, o KKK está vivo e, lamentavelmente, de saúde. Tem site na internet; é uma organização hierarquizada e ritualista, como dantes, e – se possível – ainda mais ridícula. Isto porque alargou o seu leque de raivas. Hoje em dia, o KKK não persegue apenas os negros; depois da Segunda Guerra, passou a perseguir os judeus e, mais recentemente, decidiu que todos os imigrantes eram para exterminar, porque isso feria a “supremacia branca” da América (esquecendo, naturalmente, que antes dos colonos britânicos chegarem aos E.U.A. já havia lá gente...)

Miller já fora preso por assassinar pessoas exactamente com o intuito de assegurar a limpeza étnica do Missouri. Mas, desta vez, a sua prisão tem tanto de inesperado como de invulgar. Miller foi apanhado num carro, em pleno acto sexual com um prostituto negro. Esta detenção apanhou toda a gente de surpresa, sendo que os agentes quase não acreditavam que um racista como Miller estivesse envolvido com um miúdo negro em “actos dos quais não queremos revelar os pormenores porque são demasiado depravados.” A incongruência desta acusação com as suas (igualmente absurdas) convicções levou  a que o próprio Miller se sentisse na necessidade de se justificar perante os seus seguidores. Agora reparem na razão do grande líder do KKK: “Na verdade, eu convenci o miúdo a encontrar-se comigo porque queria dar-lhe uma grande sova. Simplesmente, uma coisa acabou por levar à outra...” Não contente com esta frase lapidar, que denota espantosas perturbações de vários níveis, Miller ainda diz “Continuo a achar que um branco não deve nunca deitar-se com uma negra, porque o filho daí decorrente é a degeneração da nossa raça.”

Este senhor de 73 anos não tem remissão possível. Não só acredita estupidamente na supremacia de uns seres humanos em relação a outro por genética de fototipos, como não tem problemas em admitir que a sexualidade desde que feita de forma humilhante está muito bem como meio de punição. De facto, serviu melhor do que uma sova.

Miller admitiu, ainda, que essas coisas modernas, como sejam os movimentos de libertação feminina são tudo ideias para retirar ao homem o que lhe é devido, como dono que é. “São ideias de mulheres judias, falsamente interessadas nos direitos das mulheres; o que elas querem é espalhar a raça.” O homem (desde que branco, protestante e descendente de saxões) tem direitos fundamentais de posse e comando. Caso não consiga exercê-los, parece que lhe resta sodomizar miúdos negros economicamente desfavorecidos, a julgar pelo exemplo de Miller – e sempre com o nobre intuito de os fazer pagar pelo que são!

Mas não é só na América que estas coisas se passam. Basta ouvirmos as declarações de Jean-Marie Le Pen, da Frente Nacional Francesa, que declarou agora que um surto do vírus ébola seria boa ideia para acabar com o problema da imigração. Le Pen, um candidato às Europeias. Tal como Miller, ele próprio ex-candidato ao Senado, não é um tontinho da sua vila. É um homem que pode bem sentar-se a assinar papeis que decidam exterminar uma parte de nós. De mansinho e acidentalmente, claro. Para que não se perceba.


Passamos o tempo preocupados com o Ambiente e o clima e o pobrezinho do planeta. Mas muito antes de darmos cabo do planeta, havemos de dar cabo uns dos outros, por ignorância, raiva e sede de comando. 

Friday, May 9, 2014

Bernardo


A notícia de Bernardo Boldrini, a criança de 11 anos que foi morta pela família no Brasil depois de ter avisado as autoridades que o estavam a tentar matar em sua casa, parece ter chocado essas mesmas autoridades que não fizeram nada para o proteger.

O Bernardo foi sozinho à Procuradoria queixar-se de que o tinham tentado assassinar e que iriam matá-lo, na primeira oportunidade. A Procuradoria tomou nota mas achou que o Bernardo não podia ter razão; só podia ser um exagero fantasioso infantil.

Não é que estejamos à espera que um decisor acerte sempre. O problema é a falta de atenção e de crédito que é atribuída a alguns em detrimento de outros – razão pela qual o Bernardo foi encontrado morto numa valeta, estrategicamente a 80 km da casa de onde tinha suplicado que o tirassem.

O Bernardo tinha um duplo azar: cronológico e social. O seu primeiro problema foi o de ser criança. O que as crianças dizem não tem grande interesse perante a lei porque é sempre possível apelidá-las de tontinhas e confusas ou então imaginativas e irracionais (pleonasmos para mentiroso e mentalmente pouco saudável, porque não é bontio apelidar assim os inocentes). Portanto, quando a Procuradoria do Rio Grande do Sul recebeu um menino que pediu que o tirassem de casa porque o iam matar e que suplicou uma nova família, começou logo a pensar nestes adjectivos todos. Seguiu a mentalidade vigente. A criança “percebe mal, inventa”, é um tolo ou um diabo. Roça a deficiência ou a malvadez, sem que parem por um momento para pensar que tanto a mentira credível como o maquiavelismo retorcido requerem mais experiência de vida.

O segundo problema tem a ver com o facto do Bernardo ser de uma “família modelo”, segundo o próprio Tribunal. O pai é um médico conceituado; a madrasta, enfermeira competente. Ambos pertencem à nata social de um país no qual ser da elite ou da favela faz toda a diferença. “A lei não favorece a acção nos casos de uma criança de família de classe alta”, disseram.

A mãe do Bernardo suicidou-se há alguns anos. Aliás, apareceu morta, no consultório do sr. Boldrini. Agora, com o assassinato do filho, volta-se a questionar esse suicídio... O Bernardo nunca se sentiu muito confortável com a família “nova” mas, segundo o Tribunal, aceitou (tinha outra escolha?)

Mesmo depois do Bernardo aparecer morto, as autoridades só pensaram que ele podia ter tido razão no que disse porque a cúmplice do casal – uma assistente social a quem pagaram 8 mil euros para ser conivente com o caso – revelou os planos da família para acabar com a criança.

Não seria que pelo simples facto de um menino contar ao Tribunal uma situação tão escabrosa devia ter merecido que se tomassem providências? Não é estranho que uma criança tenha tido coragem para falar, indo contra os seus próprios parentes (claramente protegidos perante a criança, que foi mandada para casa, após o seu relato)? Que mensagem mandam às restantes crianças com esta atitude?

Neste momento, as autoridades empurram umas para as outras a responsabilidade de ter protegido o menino. Empurram até para a comunidade inteira porque, como diz a Procuradoria, “antes ninguém sabia de nada, mas agora que o Bernardo morreu já todos dizem que ele era maltratado. Isso é crime de omissão.” Além de que algumas pessoas recusaram ajudar o Bernardo “para não quebrarem o relacionamento com o pai dele.” Esperemos que essas pessoas não tenham filhos porque, caso tenham, já se viu que não dão crédito nenhum ao que os miúdos dizem e sentem, o que pode sair-lhes caro no futuro.

No entanto, não é verdade que ninguém tenha feito nada pelo Bernardo. A lei não fez. A sociedade não fez. Mas o Bernardo, com 11 anos, foi queixar-se da família ao Tribunal, dormia em casa de amigos, protegeu-se. O Bernardo fez tudo o que podia. Era “uma criança amadurecida, não fazia chantagem emocional.” Fosse ele adulto e estaria vivo.


Friday, April 25, 2014

O Povo é Quem Mais Ordena?


A melhor conversa sobre os 40 anos do 25 de Abril ouvi-a eu da boca de uma criança de 7 aninhos. O pai estava a explicar-lhe a Revolução e disse uma frase de pacote que foi, ipsis verbis, isto: “Antes do 25 de Abril, o nosso país vivia na pobreza, na tristeza e no medo.” Aqui, o pai parou um bocadinho a ver se o miúdo tinha entendido e ele, muito sério, perguntou: ”Então e hoje vivemos ricos, felizes e corajosos?” Pois.

Sou mais jovem do que o 25 de Abril e, por esse facto, muitos dirão que não posso sequer opinar sobre a Revolução e muito menos sobre a Ditadura que a antecedeu. Até certo ponto, concordo porque também eu sou da opinião que só quem vive as situações – sejam elas quais forem - é que sabe como as coisas realmente se passaram. No entanto, se há coisa sobre a qual posso opinar é sobre o dia de hoje.

Nos últimos anos, deixou de ser tabu falar-se de pobreza em Portugal. Apesar do novo-riquismo há poucos anos ostentado um pouco por toda a parte (deixo de lado as considerações sobre se terá sido isso que contribuiu para a situação actual), agora os portugueses perderam a vergonha de admitir que há fome, há degradação, há condições sub-humanas. Se antes estas condições afectavam apenas uma franjinha da população, sabemos que hoje uma boa parte desta se encontra na miséria. Há um ano e um trimestre atrás, publicou-se uma sondagem na qual se revelava que mais de 30% da população portuguesa vivia na pobreza real, sem dinheiro para comer. Entretanto, os números foram subindo e cada vez vemos mais notícias que, para além dos números, revelam que a face da pobreza mudou. Agora não são apenas os pedintes, os desempregados e as famílias numerosas. São os idosos – “temos os idosos mais pobres da Europa” era manchete do Diário de Notícias  recentemente – as pessoas cujo salário não chega para satisfazer as necessidades mais básicas de saúde, alimentação e habitação e as famílias monoparentais em que a monoparentalidade se traduz nos filhos serem sustentados por um só progenitor.

E felizes, vivemos? Para não dar a minha opinião e armar-me em cientista munida (novamente) de estatísticas, vou socorrer-me de um estudo da Universidade de Columbia para a ONU que mede a felicidade mundial por países. Portugal também tem vindo a descer a pique – só num ano desceu 12 posições, e está agora na 85ª. Interrogaram-se as pessoas acerca da família, educação, saúde, liberdade de escolha, capacidade económica e relações com a comunidade e instituições públicas. Pelos vistos, os portugueses acham que estes sectores se têm deteriorado muito. Dirão os que gostam da desculpa da crise que a culpa é da “crise económica”, entidade abstracta com a qual ninguem parece ter nada a ver. Bem, se a culpa é dessa senhora, porque raio os países europeus em crise – Grécia, Espanha e Itália – se sentem todos mais felizes do que Portugal? A título de exemplo, a Grécia, com aqueles tumultos todos que se vêem na televisão, está 15 posições à nossa frente.

Então e o medo? O medo é o tabu que resta em Portugal. Alguns têm medo de serem ostracizados o que, num lugar pequeno, já não é dizer pouco; outros têm medo de perder o que lhes custou a construir; outros têm medo que os torturem ou lhes magoem os filhos; enfim, a lista de medos é tão grande que se pode escrever um livro. A prova disso é que um corajoso é algo tão anormal que é olhado como se fosse um doente. O que é não ter medo em Portugal? É dizer, frontalmente, o que muitos sabem e calam. Os que se calam, ameaçados ou não, perpetuam o medo. Não sei se, lato sensu, estávamos preparados culturalmente para a Democracia, pois que a nossa mentalidade continua a subsistir em muitos pontos apoiados na Ditadura.


Um povo pobre, triste e com medo “ordena” alguma coisa – como profetiza a tal canção de Abril? É que já nem as criancinhas enganamos... 

Friday, April 11, 2014

A Banalidade do Mal

Adolf Eichmann era um homem comum. Vinha de uma sólida família, o pai e a madrasta eram protestantes convictos, foi um rapazinho obediente e regular, fazia desporto e tocava violino. Na adolescência, compensou a sua falta de brilhantismo sendo terrivelmente trabalhador. Juntou-se às SS, casou, teve 4 filhos. Era tão dedicado ao trabalho que chegou a tenente-coronel e ficou responsável pela logística de deportação dos judeus para os campos de extermínio. Eichmann fez o que sempre tinha feito: cumpriu as ordens excrupulosamente sem jamais as questionar. Ou melhor: Eichmann nunca parou para pensar pela sua cabeça.

Ontem como hoje, há milhões de homens como Eichmann. Não são pessoas repletas de maus sentimentos. Não são violentos, maldosos, sádicos, invejosos, cheios de raivas secretas. São pessoas banais, quase apagadas no tecido social. Mas obtêm, por sorte, ligações ou até por via do seu esforço contínuo e burocrata, uma certa dose de poder. Como é perigoso colocar poder nas mãos de quem não exerce pensamento próprio! Logo, esse inócuo autómato sente necessidade de cumprir o seu dever e obedecer aos seus superiores que nunca questiona. Daí resulta, como no caso de Eichmann, que um eficiente funcionário do Estado, cumpridor assíduo da Lei, se torna num monstruoso carrasco... mas nunca dá sequer por isso!

No seu julgamento em Israel nos anos 60, Eichmann não negou o que fizera mas insistiu que era um simples executante de ordens, um leal servidor do seu Estado – visto que as decisões não eram suas as consequências das mesmas não podiam ser-lhe imputadas. Eichmann nunca sequer pensou nas consequências; não era esse o seu papel, como referiu. Estava pois “inocente relativamente às acusações”. É interessante notar que Eichmann nunca negou as suas acções; o que ele nega é a sua consciência acerca das mesmas. A finalidade dos seus actos é inquestionável – mas, para Eichmann, essa finalidade nunca se colocou sequer...

Hannah Arendt, na época jornalista para o The New Yorker a fazer a cobertura do extenso julgamento de Eichmann, fez notar como era calmo e de aparência eficiente e bem inserida esse acusado, sem traços de violência doentia ou distorções de carácter. Homem zeloso, não tinha por desejo destruir, mas apenas fazer o que lhe competia. A questão que subjaz ao mal presente em Eichmann e que o levou a cometer um genocídio é a sua absoluta incapacidade de exercer a faculdade de pensamento. Eichmann não via para além do cumprimento da ordem, não raciocinava sobre esta; em suma, não dialogava consigo próprio sobre o curso das suas acções. A falta de auto-reflexão conduz a que Eichmann não tenha capacidades nem humanas nem morais. Era uma espécie de robot, que não unia causa a efeito e muito menos se colocava na pele alheia para observar o caso do ponto de vista das vítimas.

Desta experiência, Arendt retirou conclusões que modificariam profundamente o curso das suas próprias reflexões enquanto teorizadora política e humanista. Ela concluiu que o mal não é uma categoria abstracta, ontológica, metafísica. É, antes, algo absurdamente trivial, existe no espaço concreto e manifesta-se sempre que um homem escolhe exercê-lo (ainda que não pense nisso reflectidamente). O mal é uma escolha, pensada e muitas vezes não pensada, que encontra espaço num poder, que tanto pode ser pessoal como institucional. De facto, o mal é tão comum que pode até prosperar nas pessoas (cor)rectas. Sobretudo quando essas pessoas passam pela vida serenamente sem raciocinar.


... Só por curiosidade, Eichmann foi condenado por crimes contra a Humanidade. O vazio de pensamento não constituíu desculpa para a morte de milhões. As suas últimas palavras foram “Morro acreditando em Deus.” Não havia dúvidas da sua culpa, mas – ainda assim – muitos foram os que se emocionaram sinceramente com a sua morte. Como é estranho o tecido humano...  

Friday, March 28, 2014

Aqui como no Paraíso

Vejo comentários no Facebook – veículo sem fundamento, é certo - sobre a miséria moral que é viver em países onde as mulheres e crianças não têm direitos que lhes dêem equivalência a seres humanos. A minha questão não é contradizer se em tais locais o azar de ser cronologicamente jovem ou geneticamente feminino reduz as pessoas à condição de escravo – não sei porque nunca lá fui, e a minha opinião será apenas uma opinião. A minha principal questão é saber empiricamente das misérias que no mundo dito civilizado se passam e às quais se fecha os olhos, por ser mais fácil.

Já que hoje tanto se valoriza a internet, vejam igualmente páginas que revelam situações escabrosas no mundo ocidental (não é preciso ser adepto das Wikileaks). Por exemplo, a 22 de Março do corrente o Senador de Massachussets Richard Ross fez uma proposta de lei que, na verdade, não é ideia sua mas de um cidadão comum (é preciso explicar que todo o cidadão ali pode fazer propostas de lei desde que através do seu Senador). A proposta diz que todos aqueles em processo de divórcio e que têm custódia das suas crianças devem obter a permissão de um juiz para terem relações sexuais com terceiros. Giro, não é? Mais giro ainda se pensarmos como raio hão-de os juízes efectivamente verificar se isto foi cumprido ou não.
Pegando no tema, o Juiz Tood Baugh de Montana tinha entre mãos o caso de uma menina de 14 anos que fora violada por um “homem” de 54. A menina cometeu suicídio na sequência do trauma. O juiz considerou ser óbvio que a menina “era mais velha do que a sua idade cronológica, razão pela qual condeno[u] o réu num mês de prisão.”

Outra menina de 14 em Massachussets teve o azar de engravidar ao ser violada. O Tribunal deu ao violador os mesmos direitos parentais que à mãe, pelo que durante 16 anos “partilham” a filha decorrente da violação. Não se teve em conta que a ainda criança de 14 anos tem de se encontrar com o violador frequentemente à conta disto e que o bebé pode sofrer igual sorte. O que se teve em conta é que “a criança é propriedade biológica de X”. 

Aqui, reside tudo. O direito de propriedade. Nos tempos antigos, cada homem livre (não o eram todos, só os privilegiados!) tinha terras, posses, escravos, filhos – este rol era um rol de propriedade. Ainda hoje, o direito de propriedade existe para um pequeno grupo da população. Não existe para aquela cabo-verdiana de Sintra que foi obrigada a entregar os filhos a uma instituição já que não laqueou as trompas por “conselho” da Assistência Social; não para aquela portuguesa do Alentejo cuja filha lhe foi retirada porque não queria ver o pai e o Tribunal assumiu que a culpa era da mãe e não das atitudes do pai relativamente à menina (depois voltaram atrás mas não vi o Tribunal ser responsabilizado até agora); não para aquela portuguesa de Lisboa que foi também forçada a entregar um bebé para adopção porque não tinha trabalho e o pai da criança alegava não poder pagar pensão. Não há direitos de propriedade para quem também é propriedade  - pois na nossa lei subsiste a aura de  um chefe de família, e o resto são coisas adquiridas. Ora, de coisas não há história. A propriedade não se manifesta nem tem voz audível. Quando fala, é desvalorizada porque “não tem consciência do que diz"  - as crianças são só crianças e não se lhes dá crédito, a não ser que dê jeito parecerem cronologicamente mais velhas, e as mulheres são doentes, pois já Freud dizia que só uma mulher sofria dos nervos.


O problema, na prática calculista e fria, é este: Portugal é signatário das Declarações dos Direitos Humanos, dos Direitos da Criança, e de dezenas de Convenções Internacionais que proibem estes jogos de “propriedade”. O que resulta, depois, no pagamento de umas avultadas somas por parte do país por ter violado o que assinou. O dinheiro que Portugal perde para a Europa por violar os direitos humanos é absurdo e cresce exponencialmente. Fossem evitados os casos em que vem um Tribunal Internacional pedir contas a Portugal não deixando a culpa morrer solteira, e Passos Coelho já não precisava de ir buscar tanto dinheiro aos impostos - com isto se prova que este problema é um problema de todos e não só das famílias que, como dizia Quino, não têm chefes porque são uma cooperativa.