... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 21, 2018

Lost in Translation



Não sei quem disse “A História tem a perspetiva do vencedor”. Em boa verdade, jamais conhecemos a versão dos vencidos, pelo menos com latitude suficiente para que esta se possa tornar, também, parte da História. Como tal, é legítimo afirmar que não há um conhecimento real do passado – aliás, nem tão pouco existe um conhecimento do presente, cujas situações também nos são apresentadas somente sob a perspetiva do vencedor, ante o silêncio de um vencido que não interessa às multidões.

Apesar da História ser, afinal, histórias, continuamos a estudar o passado de modo reverencial nas escolas, porque é importante conhecer o que veio antes de nós, já que compreendê-lo é entender o porquê de estarmos nesta linha atual e seria, também, fulcral para precaver futuros (embora isso talvez seja já esperar demais, pois raramente a História ensina algo ao Homem; a Humanidade é bicho que, coletivamente, não aprende muito com a experiência).

Teria eu uns 14 anos quando, pela primeira vez, me dei conta de que a História que eu aprendia não era a mesma que se aprendia noutros lugares. Isto é, o assunto era igual mas a narrativa era bem diversa. Tinha uma amiga dinamarquesa, que frequentava o mesmo ano que eu mas no seu país. Em certo momento, disse-lhe que sabia que os Vikings eram os antepassados dos Dinamarqueses, e, o mais delicadamente que me foi possível, acrescentei “um povo guerreiro, bárbaro, que pilhava tudo à sua passagem, grandes marinheiros mas destruidores e rudes.” Ela admirou-se com sinceridade: “Os Vikings?! Foram a nossa maior glória! Os maiores descobridores de terras, os melhores marinheiros do mundo, os exímios construtores de barcos! Sem eles, os restantes povos nunca saberiam que existem mundos mais além!” Felizmente, éramos ambas de temperamento flexível, mas ficámos bastante confusas quanto ao que tínhamos aprendido nas nossas escolas, e rapidamente nos demos conta que o que na minha cultura era relembrado como “barbárico” na dela era exaltado como “glorioso”. Isso não deixou de nos fazer rir, bem como desconfiar dos manuais que tínhamos…

Hoje em dia, verifico uma história semelhante relativamente aos Descobrimentos portugueses e ao modo como são ensinados noutros países. Em Portugal, é a grande epopeia, o dar novos mundos ao mundo, os heróis das caravelas, enfim, todo um imaginário mítico sob um qual repousa um país que olha para o mar como se esperasse que do horizonte renascessem as suas glórias passadas, mas que no presente vive continuamente na cauda da Europa e sob esse espírito messiânico do que há de vir.

No entanto, noutros locais, a História portuguesa não é vista com esse glamour. Verifico pelos manuais escolares dos meus filhos que Portugal é visto como um descobridor relevante, sim, mas ávido de dinheiro, brutal e primitivo, sem respeito por outras culturas e pelo ser humano em geral, tão sôfrego que tomou más decisões contínuas e assim perdeu o império, tão falho de bons sentimentos que os melhores de entre os portugueses se revoltaram contra a nação e preferiram ficar para sempre fora ou contra ela.

O que é, então, a História quando traduzida de cultura para cultura? Talvez a História não passe, como disse Napoleão, de uma fábula na qual concordamos.

Friday, December 7, 2018

Verdade ou Consequência



John Chau, missionário evangélico, foi recentemente morto pelos Sentineleses quando invadiu a ilha de Sentinela do Norte com o intuito de lhes levar a ideia de Cristo, i.e. a salvação segundo os evangélicos. Pensava eu que os tempos de missionários em busca de tornar povos pagãos mais iluminados já fazia parte dos livros, mas enganei-me. Encontro certa ironia no facto desta morte por um ideal religioso não ser encarada como fanatismo. Se Chau fosse muçulmano e tivesse nascido no Médio Oriente, não seria esse quase-suicídio em nome de Deus visto como tal? Mas é americano e cristão, portanto tal pensamento não é exposto pelos media. Curiosa balança com duas medidas tem a nossa sociedade! Ainda assim, há que admitir que Chau agiu ilegalmente, já que é estritamente proibido pelo governo indiano visitar a ilha. Mas este não é o problema maior, pois várias coisas de bem neste mundo tiveram de ser feitas ilegalmente (e.g.: lutar contra os nazis ou acabar com a escravatura, nenhuma delas comparável a este feito, mas apenas exemplo de que “legal” e “ético” não são sinónimos). O problema é que Chau era pouco inteligente. Primeiro, sabia que estava a colocar a sua vida em risco – ou era um narcisista que desejava ser lembrado como “mártir” ou um completo idiota; segundo, dirigiu-se aos indígenas falando-lhes em inglês quando eles não conhecem o idioma, logo era de esperar que levasse com flechas porque os indígenas não sabiam se Chau falava de canibalismo ou de amor. Como pretendia ele levar-lhes a palavra de Cristo de rajada se eles não percebiam patavina da linguagem?

Noutro espectro religioso, a 2 de dezembro começou Hanukkah, a festa das luzes judaica. Em 2016, coincidiu ser na noite de Natal, o que não é nada comum e levou a que o meu pai contasse algumas piadas. Tudo isto me leva ao tema da tolerância religiosa e do pensamento e direito individuais.
Como todos, eduquei o meu filho dentro das minhas tradições e crenças. Não obstante, procurei dar resposta às suas (inúmeras!) perguntas e mostrar-lhe que há quem acredite noutras coisas, o que não foi difícil, já que convivíamos com outras culturas. Assim, ele foi à sinagoga, foi também à igreja católica, e – mais tarde, com colegas – a uma igreja protestante e a um templo budista. Tem, também, colegas hindus. Disto, resultou algo curioso que foi ele comunicar-me, do alto dos seus dez maduros anos de idade, que “fez uma decisão sobre Deus”. Acontece que a sua decisão… não é a minha. “Espero que não fiques triste, mãe, eu já decidi aquilo em que acredito.”

Não é inusitado ele pensar por si. Já aos três anos, me informou com solenidade que tinha escolhido a sua equipa de futebol, diferente da minha e dos coleguinhas. Apesar do colégio onde andava ser junto do Estádio da Luz, afirmou “Sou dos outros.” Sei que nem todas as crianças têm uma persona tão firme e independente, mas, regra geral, todos lutamos pelo nosso direito à individualidade.

É um direito ser o que queremos. Escolher as nossas crenças e amores. Impor a nossa verdade aos outros não é dar-lhes a salvação. É oferecer-nos um espelho. Tais atitudes costumam resultar pouco com seres humanos, sejam eles nossos filhos ou vivam em ilhas do outro lado do globo. Como a ciência atual tem provado, até um clone tem tendência à revolução.

Friday, November 23, 2018

Mudar de Identidade



Muita tinta fez correr Emile Ratelband, o holandês de 69 anos que decidiu encetar um processo judicial para que passasse a constar nos seus documentos que tem menos 20 anos do que realmente tem. Ratelband alega que a sua idade, com a qual não se identifica nem física nem psicologicamente, o impede tanto de arranjar emprego como lhe dificulta a vida amorosa, sendo que ambas as coisas ficariam sanadas se a perceção que os futuros empregadores e futuras namoradas tivessem dele fosse a de alguém mais jovem. Ratelband apresenta, ainda, relatórios médicos que atestam a sua excelente forma física. Ademais, protesta que o seu caso judicial não é substancialmente diferente do de outras pessoas que decidiram mudar de identidade – simplesmente, nunca antes alguém tinha protestado para mudar “apenas” a sua idade. Mas mudar de género já hoje se tornou comum, baseado na premissa “não me identifico com o género que tenho”, o que dá direito a mudar os documentos que se tem. Assim, Ratelband alega que tendo ele esta mesma razão, ademais sustentada pela medicina e razões de ordem prático-financeira e emocional, porque não pode fazer o mesmo quanto à idade?

A comunidade LGBTI tem acusado Ratelband de estar a fazer troça da grande conquista LGBTI de poder mudar de identidade legalmente. Porém, seguindo a lógica, Ratelband tem uma ambição: também ele quer mudar, não de género, mas de idade, e usa argumentos pragmáticos. Se podem outros, porque não ele? Não me parece troça, mas sim constatação para tentar ganhar o pretendido. Aliás, o tempo (e consequentemente, a idade) é uma construção do homem, que criou os calendários e cuja idade é medida de forma diferente consoante a cultura em que está. Já antes neste espaço expliquei que uma criança de um mês em Portugal pode ter dois anos na China, onde o tempo se mede de forma diferente… Logo, não me choca este pedido nem vejo a idade como algo escrito na rocha mas sim na areia.

Já em 2015, um canadiano de 52 anos, mudou de idade e de género, por alegadamente se identificar como menina… passando a viver como filha adotiva de uma família, na pele de uma menina de 6 anos. Mas aí, ninguém reclamou, todos acharam muito correto, porque reclamar seria, essencialmente, ir contra a identidade transgénero. A mim, porém, é esse caso que me põe reticências, não só porque o facto de alguém na meia idade querer voltar à infância me parece  patológico mas porque acho perigoso deixar esta pessoa em atividades com os reais miúdos de 6 anos, pois quem pode afirmar quais são as motivações que ele teve para assim se colocar livremente no mundo infantil como se fosse um dos pequeninos?

Quanto a outras mudanças de identidade, o mundo em que hoje vivemos é plural e fácil. Em Portugal, não é fácil mudar de nome – há que fazer um requerimento que passa pelo Presidente da República – mas noutros países, é o pão de cada dia; basta pagar uma pequena taxa e nem tem de se apresentar uma razão. Também se pode mudar o nome dos filhos, alegando que pensámos melhor e já não gostamos do anterior. Quanto a nacionalidades, pode-se acumular duas ou três, desde há muito. Já nem falo de mudanças tão volúveis como o estado civil. Locais há onde as próprias crianças podem decidir ser adotadas desde que tenham 10 anos, sem necessitarem do consentimento dos progenitores biológicos. Portanto, definitivamente, a identidade já não é o que era neste maravilhoso mundo novo.

 Se a Justiça serve a realidade, e não o contrário, como afirmam os LGBTI, então Ratelband tem razão: o mundo mudou há muito. Sirva-se essa igualdade a todos os insatisfeitos até porque, com tal mudança, ninguém se magoa. 

Thursday, November 8, 2018

Porque Dói o Amor



Este é o tema e título de um livro de Eva Illouz, socióloga, judia, docente universitária em mais que um continente. O livro é uma análise sociológica profunda, mas, ao mesmo tempo, tem ambições não-académicas, escrito em linguagem clara para um público mais largo.

Acredito que muitos leitores, académicos e não-académicos, terão desistido do livro a meio.

Quanto aos segundos, imagino a sua desilusão ao se darem conta que não se tratava de um popular livro de auto-ajuda, desses que a autora (para minha satisfação) não vê com bons olhos. Aqui, não se encontram receitas de bem fazer para conseguir príncipes e princesas, nem tão pouco ideias sobre os homens serem de Marte e as mulheres de Vénus. Somos todos do planeta Terra, não negando que homens e mulheres são diferentes – e não se pede perdão por essa evidência, que no momento atual da nossa história tende a ser mascarada com pseudo conceitos de igualdade, quando a igualdade tem a ver com direitos (que defendo integralmente) e não com questões biológicas que, caso fossem iguais, impediriam a perpetuação da espécie.

Relativamente aos académicos, é um livro duro para o ramo da Psicologia. Na sua explicação sociológica do fenómeno da dor no amor na Modernidade – pois é da Modernidade que a autora trata - Illouz condena as nossas conceções pós-Freud em que tudo vem com um rótulo problematizante em relação ao indivíduo, sem, no entanto, lhe apresentar uma solução real. Segundo a Psicologia, as pessoas estão condenadas a terem vidas amorosas de angústia incensadas pelos traumas de infância. Illouz discorda, apresentando análises históricas. Traumas infantis sempre existiram mas perspetivas do amor como hoje o vivemos é que não. O problema não é íntimo; é histórico-social-cultural.

Nunca como hoje, por exemplo, foram as mulheres acusadas de serem tão emocionalmente dependentes e, paradoxalmente, tão dedicadas à carreira; nunca como hoje foram os homens tão incapazes de assumir um compromisso afetivo; nunca como agora foi tão difícil assumir uma relação e, sobretudo, assumi-la para si próprio acreditando numa ideia de amor sem lhe misturar cinismo, ironia ou uma finitude mais que certa (já ninguém crê na paixão que move montanhas).

Illouz traça analogias entre questões como a liberdade pós-moderna, o mercado livre, o marxismo, o feminismo, a arquitetura da escolha e do desejo na sociedade, os nossos novos valores em relação ao que é determinante enquanto sucesso e o fracasso da ideia de amor. Melhor dizendo, o fracasso do amor. A expectativa que temos, que em quase nada se coaduna com a realidade vivida. Vale a pena perceber que esta é uma questão abrangente, e determinada pelos valores culturais desta sociedade que construímos, à qual não é alheia o progresso tecnológico, a distância física fácil e uma noção de emoção de deitar fora.

Só as novas gerações entendem este livro. A minha avó não o entenderia. Alguns aspetos não são percetíveis para os nossos pais, porque o mundo hoje muda muitíssimo mais depressa. Experimentem pôr a conversar alguém de 50 e alguém de 25 anos: o abismo cultural é real, muito maior do que há apenas 20 anos atrás. O que tem isto a ver com a desilusão quase certa no amor? Leiam o livro, mas sem dramatismo. Nada como ser crente, apesar de tudo.

Friday, October 26, 2018

Monólogo Interno de uma Insomníaca



Finalmente, chegou a hora de descansar!… Não sei se apaguei a luz da cozinha; devia levantar-me e ir ver… tenho quase a certeza que apaguei. Se me levantar, certamente que não resisto a comer qualquer coisa. Isso não vai ajudar ao meu enjoo. Porque será que dizem que só se tem enjoos de manhã se os meus são à noite? Somos todas diferentes… Por isso mesmo não acredito na religião, que mete todas as pessoas no mesmo saco, muito menos creio num Deus que ama todos da mesma forma mas deixa atrocidades acontecerem aos inocentes que nunca fizeram nada de mal. O que será que acontece depois de morrermos? Não acontece nada, acaba o sopro da vida e pronto. Mas então a vida não tem sentido nenhum! Claro que tem, a espécie continua, assim como o progresso dela. Mas a verdade é que acredito na energia do espírito, só não percebo muito bem como se manifesta na totalidade. Quem falava imenso destas coisas era aquela minha colega do 5º ano… Onde será que andará agora? Recordo perfeitamente aquele dia em que estávamos com imensa fome e tirámos maçãs de uma árvore. Realmente, não devíamos ter tirado maçãs de uma árvore que não sei de quem era. Será que isso é considerado roubo? Se for, será que a causa é justificativa atenuante? Este problema é o início do enredo de Os Miseráveis. Mas aí era um bocado de pão e não maçãs… O problema da sociedade, tal como está organizada, é o capitalismo. Claro que o comunismo também não é solução. É preciso viver nos dois sistemas para perceber que ambos são falácias. Eu podia ser como Thoreau e ir para os bosques “viver deliberadamente para encontrar a profundidade”. Tretas. Sempre detestei picadas de insetos, como é que viveria no bosque? Porque será que as aranhas picam pessoas? Ao menos um mosquito pica para se alimentar. Ao ritmo a que andam as alterações climáticas, qualquer dia não há insetos. O ser humano é a criatura mais destrutiva que existe… Por isso, eu devia ter juízo… é quase criminoso colocar mais um no planeta. Ademais, o Planeta Terra está sobrepovoado. Mas agora há aquela ideia de colocarem pessoas em Marte. Aposto que daqui a cinquenta anos vive lá gente. Talvez não, já me enganei antes. E não foi pouco. Mais uma razão para ir ver se a luz da cozinha está realmente apagada… Se me esqueci? Também não é grave. Seria mais fácil dormir se não houvesse barulho. Incrível como o ressonar dele me incomoda. O barulho dos carros lá fora também. Se calhar, mudar para o campo não é assim tão má ideia. O cão de certeza que ia preferir. Mas eu não! Pfff… O cão e a gata estão fixes como estão. Em qualquer sítio onde lhes deem comida, teto e festas. Não têm qualquer problema no Universo. Metade dessa razão é porque têm casa e comida assegurada sem precisar de trabalhar… A outra metade é porque são independentes. Será que foi boa ideia ter casado novamente? A experiência vai contra, mas a experiência muitas vezes demonstra que não quer dizer nada. Além disso, uma experiência de um é igual a zero para efeitos estatísticos. Os segundos casamentos costumam resultar mais do que os primeiros. Por exemplo, o Saramago. Ah!!! Os pensamentos que se passam na minha cabeça antes de dormir são um bocado parecidos com a pontuação do Saramago. Ou com uma canção dos Beatles, tipo Penny Lane. Será que foram mesmo os Beatles a escrever aquilo? Afinal, as mulheres é que pensam em muita coisa ao mesmo tempo. Quem pensaria numa barbearia, bombeiros, a Rainha, peixe e batatas fritas tudo junto senão uma mulher?… Peixe, que enjoo… Tenho mesmo de me levantar.

Thursday, October 11, 2018

O crítico de arte


O que é um crítico de cinema? É um tipo que não conseguiu ser realizador e, eternamente frustrado, fala mal (ou muito bem se o convidaram para um “pre screening”) de um filme. Isto era uma piada – ou então nada mais que um reflexo da realidade – que se contava na Escola de Artes Performativas onde andou uma amiga minha.

 Se me pedem para analisar peças literárias, sinto um certo desconforto, porque recordo sempre esta frase. Tanto pode estar ali uma obra de arte ou um bocado de lixo, mas convenhamos que raramente o crítico faz boa figura – porque é crítico, e quase o ouvimos a ranger os dentes na sua aspiração de querer ser outra coisa, não raro exatamente autor. Não estou certa? Então está bem. Vão lá perguntar às criancinhas se gostavam de ser atores, atrizes, escritores, pintores, músicos… Estes desejos existem. Mas quantas dizem: eu queria ser crítico de cinema, literatura, pintura, música? Nenhuma. Imediatamente na nossa mente, está reservada a ideia de que o crítico é aquele indivíduo que sabe um bocadinho daquela arte, sim senhor, sabe a teoria da coisa, mas não tem qualquer lampejo de génio criativo que lhe permita fazer cinema, escrever, pintar, compor, etc. Ou se tem, é medíocre, e por isso faz vida a criticar os demais.

Apesar desta característica tida como assente, todo o criativo sabe que deve ser extremamente delicodoce com os críticos. Se não for, pode ser arrasado com críticas teóricas brutais, insinuações terríveis e uma espécie de contra-marketing que funciona como a censura da arte. Desta forma, o que o criativo faz é a cultura da hipocrisia, acabando por dizer ao crítico que admira imenso o trabalho dele, i.e. criticar a arte, e não raro diz que ninguém viu na sua obra o que ele (o crítico) viu. Esta última parte é sempre certa, aliás, até porque o autor não raro se espanta com a parafernália de truques e sentidos que outros encontram na sua obra e nos quais ele nunca tinha pensado. Mas a obra desdobra-se para cada um e assim mesmo deve ser.

Cria-se um círculo vicioso, à maneira da TV dos anos 80 em que só havia um canal em Portugal, em que o Manel do Programa X convidava o Zé do Programa Y sendo que depois o Zé do Programa Y convidava o Manel do Programa X, e estas pessoas ficaram famosas e queridas de todos: daí que tanta gente ainda hoje venere o Carlos Cruz e o Herman José, apesar dos (enormes) pesares, nomeadamente em relação ao primeiro – dos quais nem vou falar. Existe o mesmo ciclo na arte portuguesa, que é um meio necessariamente pequeno: o autor convida o crítico, para compensar o crítico desfaz-se em elogios ao autor, sendo que o autor tem de retribuir os elogios ao crítico… e não se sai disto porque não há pessoas novas, espírito novo nesta roda!

Porém, a internet ameaça de morte os críticos. Espaço excessivamente democrático (com perdão da perigosa hipérbole), a internet veio colocar ao crítico um problema: hoje, toda a gente pesquisa e dá opinião, faz um blogue temático, mediatiza. O crítico perdeu força, exceto para a camada intelectual de gente que vai aos lançamentos, às estreias, enfim, a sua tribo. O crítico é uma espécie em extinção. Secretamente, o autor suspira: “Ainda bem!”


Thursday, September 27, 2018

Cartoons Versão Gay



Recentemente, uma “polémica” encheu as notícias sobre uma dupla da Rua Sésamo, Egas e Becas (em inglês Ernie e Bernie). O criador dos bonecos, Mark Saltzman, disse que a dinâmica entre Ernie e Bernie era a de um casal, melhor dizendo “lovers”. Isto foi tomado como uma corajosa afirmação pró-sexualidade aberta, gay rights, educativa, enfim, uma série de rótulos.

Vamos ser sérios. Os bonecos existem desde o início dos anos 80, e agora Saltzman diz que sempre (sempre!) foram namorados, mas ninguém teve coragem de explicitar (incluindo ele). Naquela altura, não era assim tão comum assumir-se a homossexualidade – exceto Freddie Mercury e outros corajosos. Era a época da SIDA, da ignorância, “olha o maricas”, etc. Agora, não só é comum como é moda, entrou no mainstream, é déjà vu. Hoje, cortam-te a cabeça socialmente se fores homofóbico.  Portanto, Saltzman, deixa de ser cocó. Se querias dizer algo, dissesses quando era necessário ter tomates para o fazer e não agora quando é super fashion fazê-lo.

Mas esta não é a questão, sequer. A questão é: porque é que, nos últimos anos, se assiste à necessidade de inventar uma vida sexual para personagens unicamente destinadas ao entretenimento infantil? As crianças não têm qualquer interesse nem neste tipo de interação nem na orientação sexual de cada um. Costumam ver criancinhas a perguntar se alguém é gay, hetero ou bissexual? Não. Simplesmente porque este é um assunto que só interessa aos adultos. É uma ideia que só aflora o mundo infantil quando foi lá plantada por um adulto. Porque terão os adultos interesse em fazer tal implante? Ademais, porque tem a sociedade interesse nisso? São questões que merecem ponderação

Uma breve pesquisa na net demonstra que estes mesmos bonecos que ensinam os miúdos da pré-escola a contar já foram usados em protesto numa petição online em 2011 que requeria um casamento na Rua Sésamo entre Ernie e Bernie  – não será necessário um génio para saber que os autores e signatários da petição não foram crianças, embora (e tenhamos sempre isto em mente!) os espetadores da Rua Sésamo o sejam. Uma decisão do Supremo Tribunal de Nova Iorque sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo foi noticiada com uma foto de Ernie e Bernie em 2013. Inocente? Só para quem não perceber de marketing ou de psicologia.

Mas não se trata apenas de Ernie e Bernie. Os desenhos animados Sailor Moon, por exemplo, já há muito que têm pares homossexuais de homens e mulheres e fóruns onde estas relações são discutidas ao pormenor. Novamente: os desenhos animados são para crianças, supostamente, mas estes fóruns na net são mantidos por adultos… as crianças não têm interesse em saber se a Sailor Uranus é secretamente interessada nos dois sexos, se é trans ou que raio se passa dentro das suas cuecas. O que interessa às crianças na Sailor Moon é apenas a magia das miúdas que se transformam em guerreiras.

Se vamos extremar as relações dos desenhos animados, arrogo-me o direito de me interrogar agora sobre as relações entre o Snoopy e o Charlie Brown, entre o Garfield e o Jon, entre o Wallace e o Gromit. Será zoofilia?  E que dizer da Heidi e do avô, da obsessão do pai do Pinóquio para ter um filho com aquele suspeito narizinho? Acho que o melhor é ficarmos por aqui e deixar o mundo dos miúdos com direito a ser crianças… sem sexualidade prematura imposta à força.

Thursday, September 13, 2018

Léxico mal-entendido


Um rapaz toca guitarra. Não sei quem é nem o que toca, mas a melodia é desajeitada (ou é ele que é desajeitado, não sei bem definir ainda). 
Estão algumas pessoas sentadas aqui fora, em mesinhas improvisadas, com velas gastas. Nas escadinhas de pedra antiga, há gatos sujos a lambuzarem restos de sardinhas e pares improváveis por entre copos muito sujos com o que se adivinha ser vinho tinto. 
A minha roupa molhada está a secar, pesada ainda e oscila pouco. Não há muito vento esta noite. 
Entre o cão imponente da rapariga atiradiça aqui da frente e o ar intrometido da velhota que espreita pela janela, há muitos risos aos quais se junta o meu. 
Há gente de todas as etnias por aqui. Batem palmas ao rapaz desajeitado, e não é porque ele mereça. Em alguns, poderá opinar-se que talvez o vinho já faça efeito (e, no entanto, é ainda cedo). Melhor assim. Há uma atmosfera de alegria sem razão. A melodia flutuante contribui para isso. Contrariamente ao que se pensa, no meio de uma Babel não são precisos aditivos para florescerem sorrisos. 
Não há propriamente delicadeza nas pessoas, porque existe uma ansiedade breve... Mas existe vontade de partilha. Também eu me desajeito com as chaves e, como é meu costume perante a frustração, rio-me de mim própria. Um rapaz hesitante pergunta-me se quero ajuda. Hesitante porque é a segunda vez que passa por mim mas esperou pela segunda vez para me perguntar. Mas aceito. Já que decidi que é tempo de deixar de ser orgulhosa. É simpático, não é intrusivo. Acho que gostaria dele, caso lhe prestasse atenção. Porque é que não lhe presto atenção? Hei-de refletir sobre isso mais tarde.  
Há uma rapariga que dança algo vagamente tribal, e tão rapidamente que parece perder densidade física; volatiza-se como vapor perante os nossos olhos.
Entretanto, tudo aqui é aconchegante, de calor e de diversão. Se fizesse o exercício de pensar, concluiria que gosto disto.  Até porque existe aqui uma secreta vantagem: isto não me recorda de nada, nem lugares, nem pessoas, nem cheiros, nem sons, nem sequer línguas (já que no meio das várias etnias todos tentam, atrapalhadamente, ensaiar o idioma local, com maior ou menor sucesso). Quanta maravilha se esconde numa tábua rasa!
Como se me lesse os pensamentos, B. atira uma das suas sentenças (sem que houvesse frase que iniciasse a conversação):
- É o que dá termos vindo viver para o fim do mundo!
-… Sabes que o mundo é redondo? -pergunto, com mal disfarçado riso – e, portanto, segundo toda a lógica, o que para ti é o fim do mundo pode ser o princípio do mundo de outra pessoa.
- Para o diabo com respostas de mulheres espertas!
- Sabes o que é que tem mais piada?
- Diz lá! – porque, embora desconfiado e na posição de perdedor deste jogo que jogamos tantas vezes, B. não resiste a continuar com a conversa. É como uma criança que ainda não abriu o brinquedo ao meio.
- É que adoras este sítio!
-… Sim, confesso. Estou mesmo a gostar. Gosto… dadas as circunstâncias.
Neste momento, faço um ar trágico-cómico e dou o mote final:
- Isso não, não digas essas conversas cheias de reticências! Olha que é mesmo muito feio quase pedir desculpa por gostar de uma coisa.

Friday, August 31, 2018

O Bom Colonizador



Um colega inglês dizia-me, orgulhoso do antigo império britânico e da História da Coroa, que nunca um povo colonizador fora tão benevolente e, ao mesmo tempo, oferecera tanto aos povos colonizados por ele como os ingleses. Tem piada, retorqui eu, isso é exatamente o mesmo pensamento e discurso dos portugueses.  

Minha querida (“my dear” soa menos impositivo, mas estou a traduzir), vou tomar como exemplo a Índia, dizia ele. A Índia era um compósito de tribos, de dialetos, de leis até chegarmos. Foi a bandeira britânica que os unificou e os fez o que hoje são: um país. Daquela mais de meia centena de dialetos que possuíam, embora inegavelmente fascinantes, o certo é que não se entendiam e apenas a língua inglesa os fez dar as mãos, língua essa que hoje permanece como uma das línguas oficiais da Índia. Mas como se isso não bastasse, os Britânicos, em apenas dois séculos, dotaram a Índia de fabulosos avanços, seja no campo dos transportes como os caminhos de ferro, seja no campo da política como a Democracia. Calou-se, saboreando a sua bebida, com um ar de triunfo íntimo, que não necessita de demonstração exterior.

Portugal também acredita que foi o melhor de todos os colonizadores, disse eu (que nunca sofri de patriotismos cegos). Os livros de História proclamam-no e passam esse mito às novas gerações, que o vão aprendendo na escola. Julgo até que era uma teoria do Estado Novo, mas esta – tal como muitas outras coisas da Ditadura – é algo que o meu país gosta de manter, sob nova máscara. Mantemos o que nos dá jeito. A escravidão dos africanos levados para o Brasil aparece como uma coisa necessária para o crescimento da economia – não tivemos outra opção. Diz-se que a miscigenação das populações foi resultado da grande capacidade portuguesa para a aculturação, não resultou de violações. A religião nunca foi imposta à força, mas sim um presente da nossa cultura aos outros, que eram bravios e filhos de um deus menor. Não seguimos mar fora motivados por sede de riqueza mas para expandir a língua e a fé. Continua a falar-se em lusotropicalismo e em racismo invisível em Portugal… E até há uma piada famosa do escritor Fernando Dacosta que diz que o homem português tratava o escravo da mesma forma como tratava a mulher e o filho: batia em todos! …. Portanto, o senhor português era muito justo e igualitário.

 O melhor é falar com um indiano para ver se ele tem do Imperialismo Britânico uma opinião tão favorável como a tua… sugeri. É mais que certo que os povos colonizados por portugueses não acreditam na visão maravilhosa do bom colonizador português.

Pelo menos vamos concordar, disse o meu colega inglês já com certo ar plúmbeo, que as nossas nações não foram estúpidas como os belgas que dividiram as tribos da África Central, resultando nas carnificinas que duram até hoje, ou violentas e incultas como os espanhóis que dizimaram as grandes e sábias nações da América do Sul.

 O que têm os espanhóis? perguntou uma vozinha ciciada que acabara de chegar, com um certo sotaque de Barcelona. A discussão não acabou por aqui… E nem cheguei a abordar o polémico Museu dos Descobrimentos que agora, para agradar, mudou de nome e já calou as hostes.

Friday, August 17, 2018

Decisão salomónica



Deparei-me com um vídeo na net onde um alemão corta a meio os seus pertences na sequência de um divórcio. O homem tomou em sentido literal as palavras do juiz que dizia que deviam ser divididos a meio os haveres do casal. Vai daí, muniu-se de uma serra e cortou tudo milimetricamente: cama, televisor, cadeiras, telefone portátil, capacete de moto, ursinho de peluche, enfim os objetos variam no tamanho e intimidade… há, realmente, de tudo (o juiz disse tudo e ele é obediente, como os carniceiros nazis). Inclusivé o carro. Ver para crer. Depois pôs à venda no E-Bay as suas metades – que até atingiram preços bem elevados, porque há malucos para cortar e malucos para comprar.

Este vídeo é bem conhecido e apareceu em várias cadeias de televisão, incluindo Portugal, em 2015. Algumas partes do vídeo original estavam cortadas, nomeadamente quando ele dedica o vídeo à ex-mulher de 12 anos e diz (traduzo do alemão): “mereceste realmente a metade… felicidades ao meu sucessor” antes da medição e cortadeira elétrica.

O que me surpreendeu foram as reações ao vídeo. As pessoas acham hilariante. De facto, em Portugal, a pivot da TVI achou tão engraçado que nem conseguia parar de rir enquanto dava a notícia, desculpando-se porque aquilo era muito divertido.

Fiz, então, uma experiência e mostrei o vídeo a pessoas divorciadas de gente descompensada (eufemismo para gente pouco saudável): ninguém achou piada. Todos identificaram aquele sadismo persecutório das frases do vídeo e o total nonsense aterrorizante das ações. Uma das pessoas era uma mulher cujo marido tinha designado certos quartos em casa onde ela e o filho não podiam entrar; eram quartos só dele. Se entrassem levavam um choque elétrico, com “taser”. Já não tem assim tanta piada, pois não?

Estou a ver as pessoas que leem isto a dizer “pá, isso é gente doida”. A quantidade de doidos que conhecemos vai muito para além do que supomos. Aliás, se estas pessoas não fossem excelentes atores e carismáticos seres sociais, não se teriam casado…

Voltando ao vídeo, viemos a saber que, afinal, o vídeo não passou de uma farsa. A revista da Ordem dos Advogados alemã veio a confessar que foram os próprios que fizeram a filmagem como chamada de atenção, por acreditarem que os divórcios conduzem a situações de disputa que acabam muitas vezes de forma surreal como essa, na ânsia de dividir tudo 50/50. Aconselhavam, por isso, os casais a fazerem acordos pré-nupciais.

Concordo. Mas acho importante referir outro aspeto. Há casais que se divorciam nas calmas e esses nunca vão a Tribunal. Quem vai é porque tem um problema. As pessoas irracionais apoiam-se nas decisões salomónicas ou estapafúrdias para exercerem crueldade ou loucura. Jamais um juiz é responsabilizado pelas crianças que sofrem ou até morrem até porque um juiz não pensa que um irracional vai usar a decisão dele para fazer o que lhe apetece. Mas se o irracional tiver filhos, a coisa complica-se. Sobretudo se for mesmo descompensado… e também tiver uma serra, um taser ou outro daqueles brinquedos que eles têm.

Friday, August 3, 2018

O Imigrante Saudável



Em Julho passado, a revista científica Psychiatry Research publicou um estudo de Salas-Wright, Vaughn e outros da Universidade de Boston sobre os imigrantes e as doenças mentais nos E.U.A. que vem corroborar uma tese já existente chamada “healthy migrant”. Em síntese, esta tese sustem que existe um paradoxo na imigração: apesar de ser este um fenómeno que usualmente acarreta muito stress para o indivíduo / família e onde co-existem diversas adversidades pessoais, sociais e fenómenos de aculturação de dificuldade menor ou maior consoante os envolvidos, o certo é que os imigrantes sofrem de menores problemas comportamentais e menos doenças do foro mental quando estatisticamente comparados com a população nativa.

Esta tese não é nova. Existe, pelo menos, desde o ano 2000 (MacDonald, Universidade de New Brunswick), mas não é muito publicitada, sobretudo porque nos últimos anos a ideia de quase todo o mundo é fechar fronteiras e, como em todos os estudos, promovem-se apenas os que dão jeito à política atual.  

Voltemos à questão inicial. Como explicar esta elevada quota de imigrantes mentalmente saudáveis, mau grado as suas vidas serem mais complexas do que as dos nativos? Segundo os estudos, há mais do que uma razão. A primeira é a seleção inicial no país de origem, ou seja, só decide imigrar para longe quem tem coragem para tal. Muitos tinham as mesmas dificuldades, estavam na mesma situação, mas… preferiram não saltar. Só vai quem já tem um esquema mental de força e pragmatismo para enfrentar o novo e o risco, com o desconforto que isso exige. Desta seleção positiva inicial resulta que as famílias de imigrantes / os imigrantes reportam um baixo ou inexistente historial de problemas psíquicos. A segunda razão tem a ver com a sua vida pós-entrada no país de acolhimento. De forma geral, a situação pessoal e profissional do imigrante é mais dura do que a do nativo. Porém, a sua motivação e resiliência tem igualmente níveis muito superiores, o que faz com que uma situação causadora de ansiedade a um nativo não seja mais do que um encolher de ombros para o imigrante trabalhador.

Os estudos foram feitos em adultos e adolescentes (desde os 12 anos), demonstrando que existem menos doenças psiquiátricas, menos uso de álcool e de drogas e menos nível de criminalidade entre imigrantes do que entre nativos. Apontam, igualmente, para um estilo de vida mais saudável. Quanto às crianças, era esperado o que dizem: as crianças que imigram não demoram muito tempo para acolherem um país novo desde que imigrem com a sua figura de referência. De facto, dá-se o caso de se tornarem mais culturalmente parecidas com o país de acolhimento do que com a sua nacionalidade.

A nacionalidade do imigrante não era fator de diferenciação, pois foram analisados imigrantes da América Latina e do Sul, da Ásia, da África e da Europa. Apenas uma questão fica por saldar: os estudos não diferenciaram entre imigrantes voluntários e involuntários (i.e. refugiados e asilados), embora admitam que os últimos tenham uma (muito) elevada concentração de Stress Pós-Traumático, Depressão e Ansiedade que os primeiros, obviamente, não apresentam.

Dito isto, aquela conversa do imigrante criminoso, mal inserido e coitadinho… é tese que já foi.

Friday, July 20, 2018

Uma Escrita Assim Mais Masculina



Durante alguns meses, tive de combinar uma conferência com colegas com os quais só me correspondi por mail. Visto que o endereço da universidade não contempla o primeiro nome e a nossa assinatura formal tão pouco, o contacto realizou-se sempre nestes termos. Ao fim de vários mails, o meu interlocutor falou-me do “dia livre” e sugeriu que todos dessemos um passeio familiar, acompanhados das nossas mulheres e filhos. Respondi que era uma boa ideia, mas sendo eu heterossexual, restava-me levar o meu marido e filho. Acrescentei um sinal de “smile”. Desfazendo-se em desculpas, ele respondeu que jamais tinha pensado estar a falar com uma mulher, dado que a minha forma de escrever era “tão lógica, tão direta, tão pragmática”.

Claro que estamos a falar de missivas de trabalho, não de escrita ficcional (assim espero, embora haja casos que roçam o fantasioso, mas não vamos por aí). Seria inusitado se eu escrevesse de forma barroca, gótica, maneirista, simbolista ou romântica. Ainda assim, a situação coloca-me o velho dilema, tão discutido, da escrita feminina versus a escrita masculina.

Pessoalmente, não sou a favor da distinção.  Certa vez, assisti a uma palestra de um crítico (por respeito, não digo quem) em que ele defendia que certos géneros literários eram exclusivamente bem escritos no feminino e outros no masculino. Citou o Realismo Mágico sul americano de Isabel Allende e a Fantasia Contemporânea da autora de Harry Potter, J. K. Rowling, como géneros femininos. Mas também podia ter citado Gabriel Garcia Márquez para o primeiro caso e Tolkien e o seu Senhor dos Anéis para o segundo, o que destrói a sua teoria. Também citou o género criminal de Conan Doyle e o seu Sherlock Holmes como género masculino. Então e Agatha Christie?

Existe, claramente, um discurso masculino e um discurso feminino quando se escreve. Mas estes discursos podem ser assumidos por autores de diferentes géneros desde que sejam autores competentes para o fazer. Se “o poeta é um fingidor” então conseguirá fingir o que não é… mas para isso tem de ser exímio no que faz, o que não estará ao alcance de todos.

Outra questão prende-se com a experiência, se formos a favor da teoria que tudo aquilo sobre o que se escreve é previamente determinado (nem que seja um pouco) por experiências vividas de onde se retira um magma essencial que moldará a ficção posterior. Determinados assuntos são exclusivos da experiência feminina, como sejam a menstruação, a gravidez, o parto, o aleitamento, a menopausa, eventuais abortos e uma descarga de hormonas que os ginecologistas explicam bem. No entanto, não basta ser mulher para fazer literatura da experiência de o ser…

Concordo, sem sombra de dúvida, com uma identidade feminina diferente da masculina. Mas não com uma escrita feminina diferente da masculina. Criar divisões na Arte é menosprezá-la. A Literatura não precisa de género sexual para se definir; precisa de se definir em boa ou má. Se assim não for, como continuaremos a dizer que a Literatura que mais nos toca trata de experiências universais que dizem respeito a toda a condição humana?

Friday, July 6, 2018

Dar a Outra Face



Ultimamente, há uma ideia muito popularizada pela Psicologia de cordel (aquela que não se apoia em cientificidade, mas vende livros de autoajuda) e pelos Tribunais (basta vermos as decisões que vêm a público): é a ideia, profundamente cristã, de que a vítima deve perdoar. Por maior que tenha sido o crime, opina a corrente atual que a vítima não encontrará descanso se o perpetrador for culpado; pelo contrário, a paz advém do perdão.

Assim, todo aquele que diz que não perdoa é imediatamente considerado um indivíduo pouco avançado em termos espirituais, nestes tempos em que o Ocidente vê a espiritualidade como escada para o Nirvana – outra coisa da qual pouco percebe, porque os Orientais não concebem o perdão jamais, apenas se desligam a tal ponto que o Outro deixa de lhes interessar (ideia muito mais genial!).

A propósito, a BBC noticiou ontem um curioso episódio de uma mulher, Nancy Shore, que demonstra o ridículo destes perdões modernos. Nancy foi baleada na cabeça por um atirador contratado, negócio bem feito, em que este fingira ser um assaltante. O “assalto” vinha a ser planeado há três anos pelo marido de Nancy, que, vendo o tiro falhado (a bala foi alojar-se no pulmão) ainda fez o papel de ir acompanhar Nancy no Hospital, pesarosa e diariamente. A Polícia apanhou o atirador e chegou ao marido, descobrindo o enredo. Mas a parte interessante é a reação de Nancy.

“Tínhamos um casamento maravilhoso. O meu marido era muito gentil, gostava de mim. Muito dedicado aos meus filhos. Adora crianças.” Logo aqui, começo a suspeitar que a sra Shore sofre de negação da realidade. “Maravilhoso” será, no mínimo, hipérbole... Quanto a ser “gentil”, etc, bem sei que a bitola varia para todos nós, mas parecem-me qualidades incompatíveis com um assassinato planeado friamente ao longo de anos, com a hipocrisia de ser chorado copiosamente quando viu a tentativa lograda.

“Quando ele soube [o que acontecera], começou a chorar, descontrolado, ficou fora de si, como a minha filha o descreveu. Tentou fazer o que podia para me salvar.” A sra Shore não interiorizou que estas lágrimas do marido teriam sido perfeitamente evitáveis se… o próprio marido não a tivesse mandado matar! Mas o melhor está para vir, no modo benevolentemente patético como a sra Shore o desculpa: “Ele confessou, chorando muito [que o tinha feito] porque estava com outra mulher. E ele sabia que eu jamais me divorciaria dele! Claro que não lhe restava outra hipótese senão matar-me!”

Nancy Shore não tem dúvidas: “Ainda o amo. Não romanticamente, mas não se pode deixar de amar o pai dos nossos filhos. […] Ele sempre foi bom marido e pai até deixar de o ser.” Acrescenta Nancy, para rematar: “Tive de me divorciar porque ele foi condenado. Mas se ele sair da cadeia, poderemos voltar a casar. Eu já o perdoei. Se não o perdoasse, viveria amargurada.”

Vítimas assim são o sonho do Sistema atual. O Sistema que manda dar a outra face; que oferece “thoughts and prayers” mas não mexe um dedo para resolver situações. O problema é que pessoas desta qualidade não têm um pingo de auto preservação e instinto de sobrevivência e colocam em perigo também os outros, já que um predador raramente ataca uma presa só.



Friday, June 22, 2018

Imunidade Diplomática



Nos anos 80 e princípio de 90, Boris Becker era o campeão de ténis por excelência: ganhou 13 títulos Masters Series, medalha olímpica de ouro, foi o mais jovem jogador de sempre a ganhar Wimbledon com 17 anos.

Becker tinha um conjunto de qualidades que o fizeram entrar na bolha que o mundo reserva para as suas ilusões. Não parecia agressivo (a sociedade estava farta de tenistas como John McEnroe); chegou a aparecer em causas sociais; tinha um ar tão distante, e com tanta falta de colorido com aquelas pestanas amarelas, que apelou mesmo à publicidade e era fotografado por revistas de moda. À conta de um fenómeno que não é raro nos famosos, tornou-se atraente.

A sua fama declinou quando deixou de ganhar títulos, mas manteve-se por conta da publicidade e histórias da sua vida pessoal. Casou com uma mulher de origem africana, uma união que a sociedade não encarou bem, embora gostasse do contrastante colorido, especialmente quando ambos posaram nus em conjunto para uma revista. A polémica acentuou-se quando se divorciaram e Becker admitiu um confronto físico devido a um episódio de infidelidade. Tudo isto é só uma abertura para o que vem a seguir.

Em 2017, Boris Becker declarou falência no Reino Unido, curiosamente dois meses antes de ser declarado o Head of Men’s Tennis da Federação Alemã. Becker tinha pedido certa soma de dinheiro a um banco privado do Reino Unido, não a pagou e declarou que não tinha quaisquer condições de pagar. Premissa 1: estava falido, estava no Tribunal como réu. Premissa 2: continuava a ser uma estrela na sua terra, e no mundo. E agora Becker, como sair desta? Os advogados de Becker não tiveram dúvidas e fizeram o que qualquer advogado com dois dedos de testa faria: utilizaram a premissa 2 para que Becker se livrasse da premissa 1.

Alguns meses depois, em 2018, os advogados de Becker declararam que as questões em Tribunal estão terminadas porque Becker tem “imunidade diplomática” visto que foi nomeado adido diplomático para o desporto e cultura da República Central Africana na União Europeia.

A primeira coisa que ocorre é “conveniente”.  A segunda é ir procurar ao mapa onde fica a RCA, que, provavelmente, nunca teve na UE tanta importância como tem hoje. Mas eu ainda duvido desta realidade: a RCA serve-se de Becker para ganhar notoriedade na UE? Ou Becker serve-se da RCA para escapar ao Tribunal? Quanto a mim, é a segunda! Aguardo resultados para a RCA, porque até agora quem os obteve foi Becker.

Li o testemunho de Becker (outra coisa negativa é a necessidade de recorrer aos media para estas defesas de caráter), dizendo que tinha aceite o convite “também com intenção de pôr termo a esta farsa criada contra ele”. Por último, note-se que este posto diplomático não existia até agora… não é preciso muito para verificar que foi criado à medida para que Becker o ocupasse!

Imunidade política é conveniente para quem a usa, claro. Mas estas próprias palavras “conveniência”, “uso” e mesmo “imunidade”… não são, por si mesmas, prova de que algo está muito podre?

Thursday, June 7, 2018

Quo vadis Miss América?


O concurso Miss América anunciou que vai deixar de julgar a aparência física. Todas podem concorrer, independentemente das medidas, e não haverá mais provas reveladoras do corpo. Eu abomino concursos de Miss, mas dizer que a Miss América vai passar a valorizar o intelecto e o espírito é mais ou menos como um vegetariano que vai passar a comer bacon com sabor a alface. Temos de ter a frontalidade de não mascarar as coisas e de as assumir como são. Quem quer, participa ou vê; quem não quer, opta por outra coisa.

Estou a falar dos concursos de adultas capazes de fazerem as suas escolhas. Não de outros concursos Pageant que são os concursos infantis, com meninas maquilhadas e em fralda de folhos, bamboleando saltos altos. Este vómito devia ser proibido por lei. Essas crianças não escolheram nada e são vítimas de mães que as vendem nessas exibições. Além disso, esses concursos são uma montra para pedófilos.

Voltando ao concurso de Miss, não posso concordar com a sua existência e regras obsoletas, patriarcais, denegridoras: só podem concorrer mulheres solteiras e sem filhos porque as outras já estão estragadas (já dizia cruelmente certa familiar minha que a única espécie em que a fêmea vale mais depois de ter filhos é a vaca), exibição do corpo feminino em montra como se estivesse num talho em que os compradores escolhem o melhor bocado (continua a metáfora de gado), promoção da competição entre as mulheres e da ideia de que terá sucesso (por um efémero ano!) aquela cujo corpo mais agradar aos homens. Está tudo errado nesse concurso, até as perguntas risíveis às concorrentes em que elas, angelicais, dizem que o mais querem é a paz no mundo e o fim da fome e da guerra. Também eu, o Guterres, e até a claque do Sporting desejamos o mesmo – cada um com a modesta contribuição que se verifica, mutatis mutandis.

Mas não sou hipócrita ao ponto de dizer que estes concursos devem continuar a existir, só que mudando de regras – é isto que se vai fazer. Pretende-se uma Miss América, versão Einstein/ Madre Teresa. Acabam com os desfiles de bikini e vestido aberto, porque “abaixo o corpo”. No entanto, visto que também somos contra a opressão de burkas e afins, interrogo-me como irão as candidatas desfilar? Terão liberdade de escolha? Penso que não. Sem liberdade lá se vão o feminismo e o humanismo.

Pretende-se uma exibição das qualidades intelectuais das candidatas (provas de raciocínio, interpretação? A dúvida consome-me!)  e espirituais (qual a medida da espiritualidade?!). As pessoas menos dotadas fisicamente podem concorrer (quanto mais não seja para sofrerem bullying na internet o resto da vida com memes deste acontecimento).

Esta elevação intelectual a par de uma orientação inclusiva do concurso de Miss não é de louvar… é de rir. Não sejamos politicamente corretos, mas sim verticais e acabemos com os concursos em vez de os transformar numa palhaçada diferente, sem sentido. Entra nesta moda atual de tudo poder ser outra coisa, uma moda perigosa porque vai acabar, em última instância, com o método científico, a lógica, a racionalidade do ser humano. Dou um máximo de dois anos para o concurso Miss América aceitar também homens concorrentes. Afinal, a palavra Miss pode ser tanta coisa se tivermos a mente aberta - e o dicionário fechado.


Thursday, May 24, 2018

A aldeia global versus o pé da Luisinha



“A mesma dura lei física rege a acústica e a sensibilidade” dizia Eça de Queiroz, para expressar que quanto mais distantes as coisas se encontram de nós no espaço menos nos impressionam.

A este propósito, Eça escreveu um delicioso texto que bem o demonstra, em que numa sala portuguesa um grupo de amigos, ao serão, ouve distraidamente uma dama que folheia o jornal e vai lendo alto as notícias. As notícias são desastres que a loira e serena narradora desfia com mansidão.

 Na ilha de Java, um terramoto matara duas mil pessoas – o que a ninguém da sala interessou, mau grado o supremo infortúnio que caíra sob esse obscuro formigueiro de gente indonésia. Continua a narradora loira, desta vez falando de um rio que transbordara na Hungria, destruindo vilas e homens. Aqui, já alguém reage, bocejando com preguiça “Que desgraça!”. De facto, da remota e vaga Java (sabe-se lá onde seja ao certo) para a europeia Hungria, a diferença faz-se sentir. A delicada senhora prossegue, e a desgraça aproxima-se no mapa: na Bélgica, tropas tinham atacado uma greve operária, matando crianças e mulheres. Já um maior número de interlocutores se anima: “Que horror, pobre gente!”  Continua a descrição: na fronteira do sul da França, um comboio descarrilara, três mortos, alguns feridos. Desta vez, a comoção é sentida. Um comboio, onde muito possivelmente viajavam portugueses! Quem sabe se se destinava mesmo a Portugal! O lamento, geral ainda que breve, partiu de todas as poltronas onde os convivas gozavam a sua segurança.

É aqui que a delicada senhora vira a página e se emociona, dolorida, ao dar de caras com a notícia de uma desgraça local: “A Luisinha Carneiro da Bela-Vista… esta manhã… desmanchou um pé!” Toda a sala vibra em desgosto e comoção. Eça descreve, com muita verve, “a sombra ligeira e remota” dos “dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes, guerras… tudo desaparecera. Mas o pé da Luisinha esmagava os nossos corações! Pudera! Todos a conhecíamos!”

Passados dois séculos sobre este texto, o que mudou? A aldeia global trazida pelos media, o conhecimento à distância de um click proporcionado pela internet, que efeito tiveram no nosso afecto? É verdade que, mesmo quem nunca viajou, pode hoje sentir-se mais próximo de Java e da Hungria e talvez já lá tenha “estado” de certo modo, vendo fotos e filmes. Mas dificilmente isso fará com que tenha maior comiseração por esse povo, cuja distância sentimental continua a ser enorme, sem um conhecimento quotidiano de trocas e vivências. Foi também Eça quem falou sobre a “abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração”, exatamente para referir que “a distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia.”

A sabedoria popular diz “olhos que não vêem, coração que não sente”. Este adágio explica o porquê de não sentir com arrepio, não entender com empatia povos distantes. As pessoas e os acontecimentos interessam-nos na medida em que nos são próximos. Assim, a guerra na Síria ou o drama dos milhões de refugiados interessam-nos menos do que o pé torcido de alguma Luisinha amiga durante a procissão do Senhor Santo Cristo.


Friday, May 11, 2018

Síndroma de Resignação



Não sei o que tem a Suécia, mas há síndromas peculiares que por lá nascem e se tornam famosos no mundo inteiro (vide o de Estocolmo). Este é mais um deles.

Os primeiros casos apareceram nos anos 90, mas só na década seguinte se começou a dar importância médica às centenas de casos que afetam apenas crianças e adolescentes de famílias de refugiados ameaçados de deportação. Na primeira década de 2000, havia tantos casos que os refugiados foram acusados de estarem a drogar os filhos bem como as crianças e adolescentes afetados foram sistematicamente acusados de estar a fingir. Mas nenhuma destas teses foi provada. Pelo contrário. Testando os pacientes com toda a sorte de estímulos, os observadores não conseguiram nunca obter deles nenhuma reação e renderam-se às evidências: os pacientes estavam resignados a não viver, como se tivessem escolhido um coma voluntário.

O que é o Síndroma da Resignação? É uma espécie de apatia que vai evoluindo até à catatonia absoluta, de tal forma que a criança/adolescente afetado passa a ter de ser alimentado por tubo. Não fala, não abre os olhos, não demonstra sede, fome ou outra necessidade básica.  Não responde à dor, ao toque, ou à luz, perde os reflexos. Vive como um comatoso, completamente desligado do mundo, não fosse o cuidado da família que o mantém em casa.

Todos os afetados mantêm um pulso normal, condições cerebrais e cardíacas normais e eram crianças/jovens fisicamente saudáveis antes do episódio. Em comum, têm todos também o facto de terem passado por situações muito violentas e terem vivido em ambientes extremamente inseguros, situações das quais ambicionavam poder escapar através do pedido de asilo das famílias na Suécia. A todas estas famílias o pedido foi negado, o que só ocorre um par de anos após o pedido ser feito, e é depois desta negação que o paciente começa a sofrer do Síndroma, rapidamente evolutivo.

Não é preciso ser génio para perceber a ligação entre a expectativa gorada de uma vida nova, livre do trauma, e o início desta misteriosa “morte em vida” que só afeta juvenis. De facto, há casos reportados de jovens cujas famílias conseguiram ganhar o caso de asilo posteriormente, através de apelação, e assim que estes comatosos souberam que não iriam voltar à vida anterior mas iriam, sim, ficar na Suécia, o Síndroma entrou progressivamente em remissão e a recuperação foi completa!

Os céticos dirão já que os miúdos estão a tentar compadecer o próximo. Mas os médicos afirmam o contrário. Quem conseguiria ficar sem reação à dor, sobretudo uma criança? E qual a criança consegue ficar anos sem se mexer e sem abrir os olhos?

Os estudos são ainda poucos sobre este Síndroma da Resignação, mas diz-se que não é novidade no mundo. Já nos campos nazis havia algo semelhante e entre os refugiados no Reino Unido há algo com os mesmos sintomas a que os ingleses chamam Síndroma de Recusa Generalizada. Pessoalmente, porque acredito que estes meninos não estão esquecidos de viver, mas sim a lutar pela vida com as armas que possuem, prefiro a designação inglesa.


Thursday, April 26, 2018

A falsa liberdade do Diploma dos 16


Foi aprovado na Assembleia da República o diploma que permite no Registo Civil a mudança de nome e de sexo aos 16 anos, sem necessidade de relatório médico (mas não de outras autorizações).

Antes de esclarecer, reflito sobre contradições legais portuguesas relativamente à maturidade e poder de decisão que é conferido às pessoas jovens – não gosto do termo “menor” porque parece que estamos a falar de lilliputianos ou de seres efetivamente menores que os outros (em quê?).

Se o diploma aprovado for em frente, um jovem de 16 anos que não se sinta bem na sua pele masculina ou feminina pode, sem necessidade de aprovação médica, dirigir-se ao registo e mudar de sexo e de nome. É uma questão civil, pois mudanças cirúrgicas não serão efetuadas.  

Em Portugal, o mesmo jovem de 16 anos se for violado ou maltratado não pode apresentar queixa do crime. Visto que é “menor”, têm de ser os seus guardiões legais ou o médico que o viu a apresentar queixa. Só a partir dos 18 é que o jovem pode apresentar queixa de qualquer crime que lhe tenha acontecido. Antes, não tem autonomia sequer para dizer “ai”.

O mesmo jovem de 16 anos pode ser institucionalizado (como qualquer menor sujeito à lei de proteção de crianças e jovens - é discutível o quanto e de quê realmente protege). Logo, o jovem pode ser afastado da família e fechado numa instituição até alcançar a dourada idade de 18, desde que um Tribunal assim o entenda – e não, não é necessário o jovem ter cometido um crime; basta que o Estado o queira proteger, ainda que o jovem recuse ser protegido.

Esse tal jovem de 16 anos nem tão pouco tem capacidade na conjuntura legal atual para dizer com quem quer ou não estar/falar dentro da sua constelação familiar. Os jovens, como as crianças, são obrigados a manter contacto com todos os seus familiares (mesmo aqueles que os maltrataram) até aos 18 anos. Dão-se casos absurdamente caricatos, como o da jovem A.L. que, forçada a manter contato com o pai, instaurou um processo de abuso contra este assim que atingiu a maioridade (pois o abuso não prescreve e a obrigação da manutenção do contacto “incendiou” a revolta).

Voltemos ao diploma aprovado. Segundo o diploma, continua a ser necessária autorização parental para esta mudança de sexo e de nome no cartão de cidadão por parte de um jovem de 16 anos; só não é necessária autorização médica.

Jovens, vocês costumam discutir com os vossos médicos ou com os vossos pais?  Não vejo em que reside a apregoada autonomia do jovem de 16 anos prometida pela Assembleia. Se os pais não quiserem, não muda de sexo nem de nome e pronto! Que liberdade de fachada é esta? Com a agravante que a Assembleia não explicou isto a ninguém e passou a todos um atestado de ignorância.

Portugal vive em dissonância cognitiva. Por um lado, quer ser pioneiro, moderno, pró LGBTI. Por outro, não reconhece nem autonomia nem maturidade aos jovens se os progenitores não disserem ámen. Dá-lhes aqui um falso rebuçado, numa operação de cosmética partidária e pôs o país todo a discutir sem saber o que discute.

Thursday, April 12, 2018

O Efeito Dunning-Kruger


Ninguém é bom avaliador das suas capacidades, sejam quais forem. As palavras de Confúcio “O verdadeiro conhecimento é conhecer a extensão da nossa ignorância” encontram eco em Sócrates “Só sei que nada sei” mas, tirando os realmente dotados, os restantes não conseguem aceitar e nem sequer capacitar-se de que sabem, efetivamente, pouco.

Este aparente paradoxo não é constatação minha; é antes uma teoria comprovada por Dunning e Kruger, investigadores da Universidade de Cornell, no ano 2000. Os cientistas inspiraram-se em McArthur Wheeler que, em 1995, roubou um banco sem qualquer tipo de disfarce, convencido de que por se ter vaporizado abundantemente com sumo de limão seria invisível para as câmaras de segurança. Após ser apanhado e confrontado com as imagens, Wheeler continuou a negar ser o ladrão e afirmou que tudo se tratava de uma montagem. Este absurdo, que roça o ridículo, levou a que Dunning e Kruger se interrogassem sobre excesso de confiança e realizassem uma série de experiências nas quais pediram que os sujeitos avaliassem as suas capacidades de sentido de humor, conhecimento gramatical e raciocínio lógico. Na tentativa de estudar a metacognição dos indivíduos, pediram-lhes que pré-avaliassem os seus resultados. Conclusão: os que obtiveram piores resultados foram os que mais se sobre-estimaram (em proporção estatística) – por exemplo, para uma taxa de sucesso de 12%, os participantes avaliavam o seu sucesso em 62%. Em oposto a esta tendência, os que melhores resultados obtinham sub-estimavam as suas auto-avaliações, embora não de modo tão drástico.

Posteriormente, os participantes eram confrontados com o resultado real. Os incompetentes eram absolutamente incapazes de reconhecer a sua incompetência. Esta característica era tão mais relevante quanto sobressaía relativamente ao grau, isto é quanto mais incompetente o sujeito era menos capaz era de o reconhecer, mesmo confrontado com factos. Por outro lado, quanto mais competente mais capaz era de receber feedback negativo em relação às suas falhas e de as modificar, incorporando mecanismos e ações necessários para tal.  Relativamente aos que obtinham os melhores resultados, era curioso verificar que o feedback positivo era benéfico para o intelectualmente mais dotado, que, de forma geral, tem tendência a menosprezar-se. Conclusão importante: a pessoa estúpida realmente não tem consciência da sua estupidez.

Muitas experiências posteriores foram feitas com o mesmo objetivo teórico (Ehrlinger, 2008; Ferraro, 2010; Schloesser, 2013; Sheldon, 2014). Verificou-se sempre o mesmo resultado, sendo que inclusivamente se notou que a pessoa pouco dotada reage de forma agreste quando confrontada com as suas limitações, colocando a “culpa” na própria questão ou questionando a validade do teste que lhe fazem.

O inteligente reconhece que é inteligente, mas coloca sempre muita ênfase em tudo aquilo que não sabe; por sua vez, o tolo sofre de uma ilusão de competência em tudo paralela ao seu grau de tolice.

Mas se o tolo comete o erro de se propagandear especialista, já o mais dotado comete também um erro: não raro quanto mais inteligente é mais inteligentes julga os seus pares, daí resultando que tem muita dificuldade em relacionar-se com a falta de lógica que depois encontra neles por pensar que advém de uma brincadeira ou má fé e não de verdadeira estupidez.

Segundo os estudos, a parte menos inteligente da população constitui a parte esmagadora. Mas haja esperança: é possível combater (alguma) tolice por meio da educação, mas só desde que haja abertura de espírito para receber informação porque quem acredita já saber tudo nunca aprende. Assim, agradeço ao meu colega Brian que me explicou o que é o efeito Dunning-Kruger - até ontem eu não sabia!