... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 18, 2015

Un Natal Lusitano

O Natal é prova de que a igualdade de género ainda não chegou às casas portuguesas. No Natal, enquanto os homens estão sentados a comer, a ver televisão, a conversar, a beber e a descansar de terem comido e bebido, as mulheres estão a preparar comida e a limpar, a embalar presentes, a decorar, e a preparar mais comida. No meio de tudo isto, não percebo porque é que há tantos homens que dizem que não gostam do Natal. Parece-me a mais completa expressão – se não talvez a expressão remanescente – do Homos Lusitanus primitivo.

Há os que procuram fazer a festa. A quantidade de porcaria nas paredes da cozinha faz pensar que o pobre perú foi abatido ali e não num matadouro. Felizmente, os congelados afastam essa ideia. Outra questão higiénica muito comum é a lavagem dos vegetais e leguminosas – os homens não lavam nada; “assim, até se sente mais o sabor!” Prazos de validade de molhos pré-feitos, mostardas e outros que tais são amplamente ignorados. No arriscar é que está o ganho. Finalmente, e para não perder tempo com “mariquices”, levam para a mesa tudo nos recipientes em que foi cozinhado. Não há cá travessas “para ficar bonito”. A justificação é a de que assim há menos louça para lavar. Aquele que pedir “um bocadinho de sal” pode apostar que vai levar com um pacote de sal (grosso, naturalmente) em cima da mesa.

Apesar da ironia anterior, estes homens têm a minha mais profunda vénia. Exceto no que diz respeito à parte da limpeza posterior… pois se é verdade que encontramos muitos homens que apreciam cozinhar, não conheço nenhum que limpe a cozinha a seguir. Tornam-se logo ursos peludos e desajeitados que partem os pratos todos em que tocam por absoluta falta de jeito (dizem eles… mas na verdade, chama-se falta de vontade; é a mesma falta de vontade que os ataca quando lhes pedem para alimentar um bebé de 3 meses e eles replicam “Pode ser uma fatia de pizza?”) É também por falta de vontade, i.e. para não se chatearem, que as mulheres decidem ir logo limpar a dita cozinha. Caso contrário, deixavam a parede e os pratos sujos criar crosta até serem limpos. Aliás, se repararem, as cozinhas e as casas dos homens que vivem sozinhos são sítios absolutamente impecáveis e limpos. De forma que não, senhoras, eles não sofrem de nenhuma inépcia genética que os impeça de passar uma esfregona nos azulejos.

O que me desgosta é que, nas casas portuguesas, as mães geralmente educam as meninas a servirem os meninos, seus irmãos. É no Natal que esta diferença educativa salta à vista. Estão as meninas muito afadigadas, limpando, carregando e os manos à espera, sentados como lordes. Mas espera-se que depois, na juventude e na idade adulta, o mundo prime pela igualdade!


Há uma citação, alegadamente de Aristóteles, que diz “Dêem-me uma criança até à idade de sete anos e eu mostrar-vos-ei o homem”, que demonstra bem o valor da educação e dos exemplos nos tenros anos. Por isto mesmo, o meu desejo é que as mães (quer se queira quer não, as maiores educadoras dos filhos) promovam o respeito e a igualdade desde sempre, com naturalidade… E não como se fosse um acontecimento que aparece quando se cresce, assim como as borbulhas.  

Friday, December 4, 2015

Come here and you'll see how they bite!


A língua portuguesa sempre recebeu palavras vindas de outros idiomas, incorporando-as no seu vocabulário corrente, ora sem aportuguesamento (como “croissant”) ora aportuguesando-as (como “basquetebol” que deriva de “basketball” como sabem). Embora haja várias origens para os estrangeirismos da língua portuguesa, não há dúvida que os tempos comandam as modas e se no século XX muitos foram os galicismos que os portugueses importaram - “chic”, “bouquet”, “toilette”, “biberon” e expressões como “laissez faire, laissez passer” - no século XXI são os anglicismos que imperam. A isto não é alheia a queda do francês e a ascensão do inglês como língua global de comunicação. O inglês é gramaticalmente mais simples, mais técnico e direto e favorece a comunicação rápida e straight to the point que é a pedra de toque do novo milénio. Mas não pensem que estou a desvalorizar a francofonia: eu falo ambas e só encontro vantagens em se falar o máximo de línguas possível.

Nestes últimos anos, há uma curiosa tendência que apareceu sub-repticiamente em conferências académicas e também nalgumas empresas. É a comunicação em “portinglês”. As pessoas que comunicam em “portinglês” seguem apropriadamente o modelo de integração que é ditado pelas próprias instituições – as empresas são multinacionais e as academias funcionam no mundo global. A modernidade e a globalização são dois conceitos que andam a par como duas metades de uma laranja – “googlem” um e encontram logo o outro; façam pesquisa académica sobre um e fatalmente terão de falar sobre o outro (enfim, já perceberam…) Juntem à modernidade e à globalização a questão da tecnologia. Agora juntem o conceito de identidade e podem fazer um doutoramento. PS: Não façam, a ideia já não é original. Voltemos ao “portinglês”.

O “portinglês” é um idioma que já não causa espanto. Uma pessoa vai a uma conferência dada em português e, a páginas tantas (at so many pages), ouve falar do “assessment” e da “endurance” e do “retrieval”, perfeitamente enquadrados em frases cuja restante gramaticalidade é portuguesa. E o público percebe – pelo menos, acena afirmativamente com a cabeça. Já nenhum orador em seu perfeito juízo diz “capacidades”; todos dizem “skills”. Há ainda os “soft skills” e os “life skills” e os “social skills” e os “people skills”, todos termos absolutamente qualificativos – e usados! Também há os “hard skills”, mas desses ninguém fala (os próprios tipos que trabalham no hardware têm vergonha de dizer que não são do software…)

Em Portugal, as pessoas já não têm um alvo; têm um “target”. Não há gestão empresarial; há “management”. Os funcionários não acumulam experiência, mas sim “know-how”. Os contatos foram substituídos por “networking”. Ninguém tem prazos, mas todos têm “deadline”. E nem falo de coisas tão corriqueiras como “briefing”, CEO, e “benchmarking”…


Proponho animar as conferências um bocado e traduzir velhas expressões portuguesas, para os mais velhotes que andam por lá como que “watching ships”. Não podem estar com aquele ar de “always with the olive oils”… Não sei se já perceberam mas pouco interessa se é Passos ou se é Costa; têm mais é de aprender inglês. Rely on the Virgin and don’t run!

Friday, November 20, 2015

Estrangeiro em casa própria


Segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2013 o número de portugueses emigrados por esse mundo fora era de 128 000. No entanto, é preciso que se note que o INE distingue entre emigrantes permanentes e emigrantes temporários, sendo os segundos os que tencionam voltar ao país dentro de um ano (i.e. vão só “arranjar uns dinheiritos…”). Também convém que se diga que as estatísticas valem o que valem e que, se é verdade que o número de emigrantes é hoje muito maior, também é preciso frisar que antes se emigrava sem deixar rasto e que é muito natural que haja batalhões de emigrantes de anos anteriores que não façam parte de estatística alguma. 

Podia fazer uma crónica só com isto, mas tenho outra intenção que é a de falar dos emigrantes portugueses que moram cá dentro, isto é dos onze milhões de portugueses que, morando em Portugal, falam sempre deste país como se morassem no Gana. A coisa é de tal modo flagrante que estou convencida que é por isso que o Turismo de Portugal inventou o slogan “Vá para fora cá dentro”. Os portugueses não deixam de olhar para Portugal como se fosse, de facto, um país estrangeiro.
Tudo os espanta, a começar pela própria geografia. Ao contrário de outros países, nunca ninguém sabe onde fica nada. Um tipo que more, por exemplo, em Lisboa desconhece onde seja Tomar (mais ou menos a uma hora dali de automóvel) e escusado será perguntar-lhe se existe uma ilha de Porto Santo perto da Madeira.

Mais ainda os espantam a cultura e os costumes. É vulgar ouvir um português dizer “isso é mesmo à portuguesa!” para criticar algo, seja esse algo a bur(r)ocracia de um serviço público, o atraso de um transporte ou um trejeito de personalidade menos profissional. A expressão implica desdém e um abanar de cabeça. Enquanto outros povos se orgulham fervorosamente das suas características, os portugueses auto criticam-se e são bem capazes de ajudar os restantes povos a criticá-los também, de forma genuína. Não há perigo do português médio cair num exagero de nacionalismo – é por isso que a todos fazem rir aqueles livrinhos do tempo do Salazar que as criancinhas da Primária tinham de ler e que falavam constantemente n’A Pátria. “A Pátria” é um conceito que é facilmente muito inflamado (e inflamável!) noutros países, cuja persona cultural tem um mal disfarçado orgulho em tal. Mas em Portugal, o português encolhe os ombros e resmunga “A pátria? Está bem….” E come uns tremoços.
Não é que o português não goste de Portugal ou não veja qualidades no seu país. O português reconhece as belezas naturais que há em Portugal por toda a parte – e elogia-as. Adora o clima. Acha a comida soberba. Orgulha-se da época dos Descobrimentos, d’Os Lusíadas, de Fernando Pessoa, do Prémio Nobel de Saramago… enfim, de todas as coisas que fascinam os estrangeiros. O português sente por Portugal o que um estrangeiro sente – mas mora por cá.


Para culminar, todos sabemos como é difícil falar (e falar bem) a Língua Portuguesa. É certamente por isso que – novamente, tal como acontece aos estrangeiros! – ela é tão mal falada por milhares de portugueses… 

Friday, November 6, 2015

Dá um beijinho à tia...

Jennifer Connell é tia de um rapazinho chamado Sean Tarala, que agora tem 12 anos. No dia em que Sean fez 8 anos, a tia Jen foi convidada para a festa de aniversário e foi então que se deu um acidente e a tia Jen partiu o pulso. À conta disso, a tia Jen levou agora o sobrinho a Tribunal na tentativa de o processar em 127.000 dólares, já que, segundo a tia Jen, não só ele é responsável por um pulso partido mas por uma data de dificuldades derivantes posteriores na sua vida. A tia Jen, que explicou ao Tribunal que “nunca deixou de amar a criança” mau grado a achar “negligente e descuidada”, acaba de perder o caso na passada semana no Tribunal de Westport, New York – porque ainda há quem tenha lógica e racionalidade neste mundo, felizmente.

A história é a seguinte: quando a tia Jen chegou à festa, Sean lançou-se a correr para ela, gritando “I love you, aunt Jen!”. Esta expressão de afeto foi, no entanto, feita com o impulso de 25 kg em movimento e, na força do abraço que se seguiu, a pobre Jen desequilibrou-se e caiu, partindo o pulso. Poder-se-ia perguntar porque é que a querida tia Jen não processou este perigoso miúdo logo ali, mas Jennifer Connell explicou ao tribunal de Westport que “não o quis perturbar tendo em conta que era o seu aniversário”. Nota-se que é uma tia dedicada.

A sensibilidade de Jen esperou até o miúdo ficar órfão de mãe e depois meteu-lhe um processo em Tribunal. Assim como assim, agora o puto tem mais condições de pagar (isto é, teria caso Jennifer Connell tivesse ganho).

A tia Jen explicou ao Tribunal que a questão não estava apenas num pulso partido. A pobre vive num terceiro andar sem elevador e torna-se complicado subir as escadas com um pulso partido. Eu, particularmente, subo as escadas com os pés e não com as mãos mas compreendo que nesta época de Halloween há de haver quem o faça ao melhor estilo “O Exorcista” com os pulsos nos degraus e a cabecinha virada para baixo.

A tia Jen também disse ao Tribunal que a sua vida social nunca mais foi a mesma porque agora sempre que ia a uma festa era complicado “segurar nos pratos de hors d’oeuvres” visto que o seu pulso tinha ficado severamente danificado mesmo depois de se ter soldado. A sério, Jen? Se é nessa tua qualidade que as pessoas reparam, é fácil de perceber porque é que a tua vida afetiva é pobrezinha.

O que se pode dizer para desculpar a tia Jen? Não me ocorre nada. Que a tia Jen sabe pouco sobre miúdos é visível. Qualquer pessoa que veja um miudinho a correr na sua direção, prepara-se para aguentar um embate de ternura (e corresponder, já agora…). Que a tia Jen é uma criatura repugnante erat demonstrandum. Só assim se compreende que queira ensinar uma lição ao sobrinho através do Tribunal – só isto já denota um problema de arrogância grave - e que acuse uma criança de 8 anos de descuido, tentando culpabilizá-la de uma situação que não envolve intenção. Que a tia Jen é estúpida, disso não restam dúvidas porque arruinou para sempre a sua relação com o sobrinho. Que a tia Jen tem mau fundo, idem aspas… Não só fez o que fez como esperou que a criança ficasse menos protegida e seguramente triste, por estar órfão de mãe.

Mas tendo em conta o grau de estupidez da tia Jen, talvez ela até espere que passem todos juntos o Natal (desde que num rés-do-chão e sem pratos pesados).


O que interessa, para já, é que o Tribunal não deu razão à “melhor tia do mundo”. Disseram simplesmente “não consideramos que Sean tenha sido negligente”. Eu teria dito à tia Jen para ir a um sítio lá longe em vez de fazer os Tribunais perderem tempo com processos deste género. O que vale à tia Jen é que a generalidade das pessoas são mais educadas do que ela. 

Friday, October 23, 2015

Almoço, uma instituição "tuga"


Em Portugal, o almoço é uma instituição. Experimentem ir trabalhar para outros países e vão ver como tenho razão. Aqui, todo aquele que se contentar em almoçar uma sandes ou – pior ainda – todo aquele que se contentar em almoçar uma sandes na companhia apenas de si mesmo é imediatamente olhado de lado pelos colegas. É um anti-social e um anorético. Aquilo que na Holanda (por exemplo) seria um comportamento regular, em Portugal é um caso de psiquiatria. Por cá, o almoço é um momento (con)sagrado, e entre o meio-dia e as três não há quem escape a uma fartura de comida que na Etiópia daria para alimentar várias famílias.

O português, nomeadamente o empregado de mesa, fala dos alimentos com insuspeitada ternura. É “um arrozinho”, “um peixinho”, “hoje temos franguinho”, “não quer uma saladinha de frutas?” Mas não se pense que o uso de diminutivos é compatível com o tamanho das doses. De facto, ao encomendar um arrozinho de frango, pensaria qualquer estrangeiro que ia receber um pratinho nouvelle cuisine com duas colherzinhas de arroz e uns fiozinhos de frango por cima. Desengane-se. O português não faz a coisa por menos de uma travessa, onde vem metade de uma ave de capoeira e uma pratada com meio quilo de arroz.

Antes disso, já se comeu uma “sopinha”. Ao contrário da maioria das nacionalidades, o português não come sopa como sendo uma refeição. Não, senhor. O português apenas inicia a refeição com sopa (antes, aliás, já comeu umas entraditas, sendo estas uns queijos, pão com manteiga, azeitonas e rodelas de enchidos - para abrir o apetite). A sopa constitui uma forma de aquecer o estômago. Depois, é que vem o prato propriamente dito que é o quando o português considera que começou, finalmente!, a comer.

Quando chega o prato principal, o português assegura-se que ele tenha vários acompanhamentos. Raro é que o bifinho venha apenas com arroz. De facto, o português ofende-se se um bife não vier acompanhado de arroz, batatas fritas, salada e ainda com um ovo a cavalo! Para além disso, há que comer aquele molho e, para tal, o português tem sempre de acompanhar o prato com muito pãozinho.
No fim, há que “desenjoar” – delicioso verbo que pressupõe, de imediato, que a comida não estava lá grande coisa. Assim, há que terminar em beleza com uma coisinha doce.

No decurso da refeição, por imperiosa necessidade de empurrar a comida, teve de se beber alguma coisa. Necessariamente, vinho.

Entretanto, já uma pessoa está cheia até à gola, e há que tomar um café, não raro acompanhado de um digestivo – outra deliciosa expressão, já que o álcool, em si, nunca ajudou o estômago a digerir coisa alguma.


Se acham que exagero, haviam de ter visto a expressão da minha amiga norueguesa quando, recentemente, a levámos a almoçar. Depois das entradas de rissóis e pastéis e carnes frias e do vinho português, ela agradeceu muito, tinha adorado. Foi aí que explicámos que era só o começo. A pobre ia tendo um colapso quando viu trazerem um cabrito para a mesa. 

Friday, October 9, 2015

A Rapariga da Banda

O Verão passado, uma amiga minha respondeu ao anúncio de uma banda que procurava vocalistas. Não foi aceite, porque “a banda só aceitava homens”. Eu entendia isto perfeitamente se a banda quisesse uma voz masculina. Podia ser que preferissem uma voz mais grave (sobretudo se fossem uma banda de doom ou de trash metal, o que até nem era o caso). Mas não era essa a razão. Acontece que numa banda de rock alternativo constituída apenas por rapazes, eles achavam “estranho” (sic) ter ali uma rapariga. A minha amiga fez um vídeo com excertos de estilos vários, com bandas onde há uma miúda -  Smashing Pumpkins, Fleetwood Mac, No Doubt, Evanescence, Nightwish, Garbage, Cranberries, Jefferson Airplane… - e depois mandou-lhos, com uma notinha a dizer (traduzo): “Incomoda-vos o facto de eu não ter um pénis ou incomoda-vos a hipótese de não conseguirem controlar os vossos comigo por perto?” 

Não houve resposta. Se acham que ela exagerou, imaginem que alguém tinha dito à Janis Joplin: “Ouve, miúda, cantas mesmo bem, mas estamos à procura de uma cantora negra, e embora cantes como uma, queremos mesmo é alguém com um tom mais escurinho…” Ah, pois é. Fica tudo a arrepelar os cabelos.

Quando as pessoas me dizem que já não há discriminação de género hoje em dia e que as mulheres imaginam (porque “imaginar” é o verbo que usam para falar destas coisas) que a discriminação baseada no sexo existe, gosto de lhes dar exemplos práticos. Uma banda formada por homens entre os vinte e os vinte e sete anos. Músicos, gente supostamente virada para o futuro. Acham “estranho” ensaiar e tocar com uma mulher. Um deles até confessou que ele, pessoalmente, não se incomodava mas que a namorada dele ia importar-se. Tradução: sou um tipo emancipado e progressista mas namoro uma mulher altamente ciumenta que odeia as outras mulheres todas e deixei o meu progresso e a minha virilidade fechados dentro da mala dela.

Eu podia dissertar imenso sobre a velha frase “o pior inimigo de uma mulher é sempre outra mulher menos dotada do que ela” mas é sempre uma frase que me entristece… pela verdade que contem.
É por estas coisas que fiquei muito contente por ter um filho e não uma filha. Em princípio e generalizando, a vida será, para ele, mais fácil porque nasceu homem. Eventualmente, nalguns aspetos – guardo-os para uma próxima crónica – nascer homem é uma complicação (da qual não estarei tão apta a falar). No entanto, se o meu rebento tivesse nascido mulher, seria convictamente mais complicado o seu percurso.

Espero, sobretudo, que um dia, ele seja um homem a sério. Um homem que tenha orgulho em si e nas suas escolhas. Se ele tocar numa banda, que toque com quem quiser, sem se preocupar com a opinião dos amigos e da namorada e da mãe (pode dar-me esta crónica, no caso de eu me ter esquecido até lá). Que não tenha ideias que perigosamente arrumam as pessoas em categorias rotuladas nem sentimentos de posse tão grandes e graves que impeçam as pessoas de quem ele mais gosta de serem livres para viverem, porque – já diziam os Antigos Gregos – o Amor é Vida, nunca o seu contrário.

Porque, afinal, a única forma de estarmos todos melhor é evitarmos o que nos encerra e o que nos enterra, como nos ensinou Savater. 

Friday, September 11, 2015

Do the Evolution


Perdoem-me, desde já, os puristas da língua por eu ter usado um título em inglês, mas os mais atentos facilmente se deram conta que estou a plagiar o título de uma música dos Pearl Jam. Que o mundo está em mudança, não há dúvida: para tal basta que o tempo passe. Que toda a mudança signifique evolução isso já é discutível.

A Washington State University proibiu esta semana o uso de determinados termos na sua cadeira de “Women and Popular Culture”. Entre estes encontram-se “male, female, illegal alien” (macho, fêmea/masculino, feminino e imigrante ilegal). O aluno que usar tais termos “discriminatórios e opressivos” poderá mesmo “chumbar”.

Estas preocupações ficam bem num mundo desejoso de inclusão. No entanto, como mulher e professora universitária, ocorre-me que o nome da cadeira não está lá muito de acordo. “Women and Popular Culture”? Deixamos os homens de fora da cultura popular? Ou será que as mulheres só servem para a cultura popular? Espero que a ninguém tenha ocorrido uma possível falta de erudição das damas ao fazer este “syllabus”! Não sei, isto causou-me comichão numa disciplina que acha que os termos masculino e feminino são ofensivos. Ofendamo-nos já pela substância: mudemos o nome da cadeira de imediato!

E como lidará a disciplina com o óbvio aspeto biológico dos termos macho e fêmea? São uma espécie de fatalidade (XY, XX) à qual não foge ninguém, nem mesmo os que recusam a identificação cultural de género. Já os termos masculino e feminino aparecem em todas as fichas que temos de preencher na indicação relativa ao nosso sexo. Ultimamente há umas fichas que já incluem – por óbvia pressão social – um quadrado extra para os indefinidos culturais, mas mesmo esses terão de convir que a sua fisiologia, “opressiva” ou não, existe.

O Homem pertence ao Reino Animal. Gosta de pensar que está acima dessa classificação mas a verdade é que não. Contra isso, não há filosofias nem dói-dói. Se a Universidade disser que estes termos estão a ser usados pejorativamente em contextos negativos, isso já é outra conversa… Mas proibi-los de todo em todo é desconhecer a essência das palavras.

Relativamente a “ilegal alien” (“imigrante ilegal”) achou por bem esta cadeira explicar que o termo tem de ser substituído por “undocumented immigrant” (“imigrante sem documentos”). É um preciosismo porque vai dar ao mesmo; não passa de um mero jogo de palavras. Se a ideia é demonstrar que ninguém pode ser ilegal por ser estrangeiro, aleluia, aleluia, meus irmãos, viram a luz - mas não muito, experimentem passar a fronteira dos E.U.A. Para além disso, deixa de se usar o sempre incomodativo “alien” que tanto serve para “estrangeiro” como para “extraterrestre”, o que acaba por ser – convenhamos – a mesma coisa: tudo gente que fala inglês com sotaque e que come coisas que não lembram a ninguém.

A única consequência prática que vejo nesta medida é a música do Sting vir a ser proibida nas premissas universitárias, a não ser que ele mude a letra para “I’m an immigrant, I’m a legal immigrant, I’m an Englishman in New York”… Em resumo, e como já cantavam os Pearl Jam (agora traduzo): o Homem vai à frente, está mais avançado, é o primeiro mamífero a usar calças!… Mas acrescento: olhem que também é o primeiro a borrá-las…



Friday, August 28, 2015

O Paradoxo de Teseu

A história do navio de Teseu é conhecida. Na mitologia grega, Teseu, que venceu o Minotauro na Ilha de Creta, voltou a Atenas por barco. Os atenienses preservaram o navio durante muito tempo. Com a passagem dos anos, o navio deteriorava-se… e as partes que já não estavam boas foram sendo substituídas por outras novas. Assim, madeiras do casco, mastro e velas, todos sofreram substituição. Plutarco, historiador grego que depois alcançou a cidadania romana, levantou, então, uma pertinente questão: até que ponto o navio continua a ser o navio de Teseu se as peças que o constituem já não são as mesmas?

A pergunta incide na questão da nossa perceção sobre o que seja a identidade – a identidade será estrutural ou será mítica? Até que ponto ela subsiste à mudança radical? A mudança das propriedades de um objeto desqualificam-no como sendo esse objeto e passam a qualificá-lo como sendo outro?
A Lei de Leibniz diz-nos que X é igual a Y quando (e apenas se) X e Y possuírem as mesmas propriedades e as mesmas relações. Mas não será que estas mudam, necessariamente, com o tempo? Como podemos inferir que uma propriedade num tempo é a mesma noutro tempo? Afinal, o tempo, se é alguma coisa, é devir, é mudança.

Para os budistas, a questão não existe já que a única essência que os seres possuem é serem, à partida, desprovidos de ser; a nossa perceção é que atribui características ao que é conceptualmente vazio. Mas o nosso pensamento ocidental não consegue aceitar uma existência desprovida de substância intrínseca.

É discutível. Alguns argumentam que sim, seria o mesmo navio, tanto quanto uma pipoca continua a ser um grão de milho. Outros dizem que não, porque os seus constituintes se regeneraram (quase) inteiramente.

Podia complicar isto com política, agora que estamos na época de campanha, usando a seguinte proposição: se apenas mudam alguns (poucos…) agentes, será que mudam as essências das propostas? Mas não vou por aí. A política não me oferece grande pensamento desde que Muriel Barbery, uma das escritoras contemporâneas mais brilhantes, disse a última palavra sobre ela: “é um brinquedo de meninos ricos que eles não emprestam a mais ninguém.”

Então, vou complicar com filosofia, um brinquedo ao alcance de todos. Heraclito disse que um rio é sempre um rio, sendo que as suas águas vão eternamente alterando… E Plutarco refutou que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio. Depois há as características que, segundo o sistema aristotélico, definem os seres: a forma, a matéria, o propósito e a origem. Se o navio tem a mesma forma, já a origem e a matéria podem ou não ser consideradas iguais. O propósito esse já não é, claramente, o mesmo. Mas poderemos inferir daí que é o propósito que define o ser ou o propósito é apenas uma das suas facetas?


Se acharam esta discussão - meramente teórica – uma complicação sem resposta (nem cabimento na silly season), experimentem pensar nisto em termos que envolvam seres humanos. Porque é na Humanidade que o paradoxo de Teseu se complica… Quanto subsiste do rapazinho de calções que ainda ontem andava na escola no adolescente de quinze anos? E quanto desse adolescente está no homem adulto? O que há de comum entre o rapazinho da escola e o velho em que ele se tornou? Serão eles o mesmo “navio”, se já nem as suas células são as mesmas…? 

Friday, August 14, 2015

Os Cinco (revistos e actualizados)

Quando eu estava na Escola Primária, líamos a coleção toda de Os Cinco. Dois rapazes, duas meninas (uma maria rapaz e uma perfeita boneca) e um cão que passavam os verões a acampar e a apanhar malfeitores a quem nenhum adulto parecia capaz de deitar a mão. Os Cinco fizeram as delícias de gerações de crianças - o primeiro livro foi escrito nos anos 40. Quando falei disto a uma criança da primária de hoje em dia, ela riu-se muito e disse que Os Cinco eram histórias sem pés nem cabeça.

Fiquei muito intrigada com isto, porque eu tinha uma visão idealizada desses miúdos aventureiros que faziam um trabalho de detetive melhor do que a polícia e ainda se divertiam a descobrir passagens secretas e tesouros escondidos. Mas a reação da criança foi tão sarcástica que arranjei logo uns livros de Os Cinco para os voltar a ler. À luz dos dias de hoje, tive um grande choque.

Os Cinco já não servem a criançada de hoje em dia. Se nos meus tempos já parecia estranho que não vissem televisão nem ouvissem rádio (os Cinco jamais o faziam), como é possível aceitar agora que não tenham computador nem tablet nem telemóvel nem nada de nada? Os pais deles têm UM telefone em casa e quando as crianças vão de férias mandam-lhes postais. Passam dias e dias sem comunicar uns com os outros (difícil de acreditar nos dias que passam…) “Não se esqueçam que temos de ir aos Correios enviar uma carta à tia Clara para ela saber que chegámos bem” diz o Júlio. Ir onde enviar o quê? Os putos de hoje em dia não se revêem nesta realidade.

Outro ponto: os pais e tios de Os Cinco seriam hoje imediatamente sinalizados pelas CPCJ e ficavam sem a guarda daquelas crianças num ápice. Note-se como apesar dos putos estarem num colégio interno se livram sempre deles assim que eles chegam a casa nas férias. Mandam-nos logo acampar SOZINHOS para os sítios mais perigosos e mal frequentados que há (falésias, ilhas desertas, quintas abandonadas, etc, etc). Se isto não é esperar que nunca mais voltem por obra do destino, não sei o que seja. Note-se como os próprios putos o sabem: “Aposto que a mãe vai ficar satisfeita por se ver livre de nós durante uns dias” é frase recorrente nos livros. E, de facto, fica! “A tia Clara estava aliviada por os Cinco irem acampar”. Os miúdos também, porque “não suportavam o mau génio do tio Alberto”. Sem comentários.

Ademais, aqueles miúdos nunca se lavavam. A higiene era outra coisa naqueles tempos. É difícil explicar aos miúdos de hoje porque é que apesar de Os Cinco passarem o dia a cair na lama, a dormir no feno e no tojo, e a andar de bicicleta sob a chapa do sol, só “lavavam a cara e as mãos nos regatos”. Particularmente os rapazes, não achavam necessário mudar de roupa. Deviam todos sofrer de obesidade porque a importância que é dada à comida naqueles livros é soberana. Não há refeição que não leve ovos com presunto, bolo de frutas, pão e empadão de carne. Dormir a sesta a seguir ao almoço era frequente mesmo quando os miúdos se tornam adolescentes.  

É também notório o sexismo dos livros. São sempre as meninas quem faz as camas (dos rapazes também) e lava a louça. “Tarefas de meninas” é referido constantemente. Pela positiva, é considerado altamente indecoroso um rapaz bater numa rapariga (isso faz dele um “mariquinhas” – a palavra não é usada mas está implícito). Por ser “Maria Rapaz”, a Zé tem uma posição especial mas ingrata: não deixa de ter de fazer tudo o que as raparigas fazem, mas é-lhe permitido fazer o que fazem os rapazes.

Realmente, Os Cinco já não servem os miúdos de hoje. Têm muitos pontos interessantes: a educação britânica virada para a verticalidade, a independência e o ar livre (nunca foram os pontos fortes da educação portuguesa como Eça de Queirós bem sublinhou), mas não estão updated. E não estar updated é fatal para as gerações pós ano 2000. 

Friday, July 31, 2015

Pensamento Positivo, uma ova!

A moda do “pensamento positivo” é recente, compatível com o boom dos livros de auto ajuda e dos workshops que nos auxiliam a libertar energias negativas. Há uma onda social que nos quer fazer acreditar que a realidade é apenas espelho do nosso interior e que podemos mudar inteiramente o curso dos acontecimentos para melhor se tivermos uma perspetiva otimista.

Imaginemos o seguinte cenário: um ser humano desempregado, com um filho deficiente físico a seu cargo e um cônjuge com uma doença terminal. Parece extremo? Nem por isso; acontece. Aí vai ele à Assistência Social e explica a sua situação. O funcionário diz-lhe: “Ouça, o senhor realmente é um tipo que anda bloqueado. Liberte os chakras. Anda sempre com esse ar carregado! Vou-lhe dar aqui o endereço de uns blogs que o ajudam a viver melhor com a vida. Há aí muitos exercícios de auto ajuda para libertar a mente e ajudar a ver a vida de forma melhor.” O tipo sai de lá com umas diretivas porreiras e daqui a umas semanas ou meses, quando ele aprender (porque tudo dele) a ser positivo, tem a vida muito mais facilitada.

Os gurus do pensamento positivo dizem – e com razão – que as pessoas negativas desta sociedade são aquelas que passam por mais dificuldades. É genial como chegaram a esta conclusão. De facto, quando as pessoas têm fome, dificuldade em pagar as contas, ou são massacradas física ou psicologicamente por algo ou alguém tem tendência a tornar-se pelo menos um bocadinho negativas. Há uma explicação para isto: é que são humanas. A solução passa por ir à raiz do problema e não por fazer exercícios de respiração ou ir para a frente do espelho dizer “sou eu que determino a minha vida”. Aliás, esta última é até bastante cruel se pensarmos que, em boa verdade, há muitos fatores que as pessoas não determinam minimamente na vida como seja, por exemplo, a família onde nascem, o tratamento que esta família lhes dá, a sua situação económica… Logo, ensinar às crianças que o pensamento positivo muda tudo é não só uma mentira como um completo divórcio da realidade. Há muitas coisas que não dependem exclusivamente da nossa vontade.

Esta moda do pensamento positivo chega a tornar mais abatidos os que já são deprimidos por natureza. Após lerem dois ou três manuais de auto aconselhamento e gastarem dinheiro em terapias, chegam à conclusão que a vida não melhorou; convencem-se, então, que são umas criaturas ainda piores do que pensavam porque nem sequer conseguiram aprender a ser melhores.

O cenário é tão anedótico e tão global que um estudo recente publicado em “Medical Humanities” (2014, Friedli and Stearn) avança a hipótese de o “desemprego pode[r] ser considerado uma desordem psicológica”, no sentido dos programas de emprego do Reino Unido usarem estratégias de coerção e punição a que denominam “pensamento positivo” para salientar a “falta de motivação psicológica” e a “resistência ao trabalho” dos desempregados britânicos que as entidades combatem com cursos, workshops e trabalho não remunerado - situações vistas pelos desempregados (esses miseráveis negativistas) como “humilhantes, sem sentido e cruéis.”


O pensamento negativo é algo passivo e negro. Mas o pensamento positivo moderno é algo igualmente passivo só que cor de rosinha. Ou seja, não muda coisa alguma; só distrai do essencial. Eu acredito num pensamento construtivo (chamar-lhe-ia revolucionário, se não receasse as consequências da palavra que anda um bocado mal usada). O que é preciso é mudar o que está mal e mudar para melhor. Não é com meditação e programas motivacionais que vamos melhorar as falhas atuais. Quer-me parecer que mais arregaçar de mangas e menos chá de tília é que é o caminho. Esta coisa do “pensa positivo que tudo se há de arranjar” convida as pessoas a ficarem sossegadinhas e a não fazerem nada… coisa que o status quo gosta imenso. Igualmente quer convencer as pessoas que os problemas não residem no sistema; residem (só) nelas. Mas olhem bem para este mundo – vê-se que está mesmo a precisar de um banho. 

Friday, July 17, 2015

Anda comigo ver os aviões


Recentemente, fui aos Açores (“agora, é tão baratinho, não é?”) e constatei que, apesar de viajar com a mesma companhia na ida e na volta, qualquer semelhança no handling era pura coincidência. No aeroporto de Lisboa, siga para o destino. Açores, Irlanda ou Paris, já se está mais do que treinado nisto do low cost, vai, fura e remata, é tudo a mesma intenção, o mesmo expediente, a mesma celeridade, sem problemáticas. No aeroporto de Ponta Delgada, ou seja à vinda, subitamente encontrei-me em Tel Aviv, confusão, problemas, e uma falta de profissionalismo atroz. Só mais tarde – e pelas piores razões – vim a descobrir que, de facto, não é a mesma companhia que trata das operações terrestres do low cost nestes dois aeroportos, se bem que não acredito que seja esta a verdadeira explicação.

Fiz check in online, como é habitual a quem só leva a mala de cabine. Mesmo assim, quando cheguei, e porque já conheço “Tel Aviv” de outros Carnavais, fui até ao balcão e perguntei à sra se me podia dirigir à sala de embarque. Ela disse que sim, mas que tinham muitos passageiros no voo e que eu podia “se desejasse” mandar a minha mala de cabine para o porão sem custos adicionais, como é de uso nessas circunstâncias. “Mas tenho de fazer isso ou não?” Ela olha para a minha malinha e diz que não, só se eu quiser. Curiosamente, o amigo que me foi levar ao aeroporto riu-se e comentou que a sra fardada não tinha dito coisa nenhuma com a sua conversa, ou seja, “faça… mas olhe, faça só se quiser… pode ir”. Mal sabia ele.

Lá fui para o embarque. “Senhores passageiros, vamos dar início…” e eis quando a mesma senhora sai do boarding gate, vem até mim e diz que afinal a mala estava muito gorda e que eu tinha de pagar 50 euros e mandá-la para o porão. “Desculpe, importa-se de repetir?”

Bem, a mala não tinha de ser mais pequena – tinha as dimensões de mala de cabine e, aliás, era a mala com que eu tinha viajado na mesma companhia de Lisboa para Ponta Delgada. Quando fiz notar isto à sra, ela disse-me muito espontaneamente que “as pessoas em Lisboa não trabalhavam bem!”, afirmação que dava uma crónica por si só. Mas a mala podia ficar mais vazia… Podia, mas eu só tinha comigo uma mochila de criança que o meu filho carregava, razão pela qual eu não tinha outra hipótese.

Neste momento, recordei à sra que ainda há duas horas atrás ela me tinha dito para entrar com esta mala para a sala de embarque ou, em alternativa e porque tinham mais passageiros do que esperavam, fazer check in da mala “sem custos” dada as dimensões da mesma. A sra confirmou mas revelou que, entretanto, “as coisas tinham mudado.” Sem comentário.

Pedi para falar com a supervisora. Aqui, tenho de pôr em dúvida se a sra a chamou ou se a supervisora não se dignou aparecer porque o facto é que nunca a vi. Pedi o livro de reclamações. Esta é a parte mais interessante: foi-me negado. Vou pôr toda a minha boa fé aqui e acreditar que a funcionária era tão inexperiente que não faz ideia que negar um livro de reclamações constitui um acto gravíssimo que pode ser mais complicado para uma empresa do que, efetivamente, ter lá uma reclamação escrita. “Reclame em Lisboa, se quiser” disse-me ela, sabendo perfeitamente que reclamar em Lisboa não seria o mesmo já que a empresa de handling não é a mesma. Eu agora sei porque fui reclamar em Lisboa.

Entretanto, no boarding gate paguei os 50 euros. Ainda ficaram irritados comigo porque eu não tinha multibanco, dei-lhes 3 notas de 20 e fiquei a saber que não são obrigados a ter troco.

Gostei de saber que os Açores abriram o espaço aéreo. Fiquei desiludida com a falta de profissionalismo, de respeito e de coerência. É que é bastante fácil perder clientes. Os turistas são apenas isso: clientes. Já a mim, como “emigrante”, o que me custa é que, com coisas destas, possam pensar que nos Açores “as pessoas não trabalham bem!”


Friday, July 3, 2015

Estamos grávidos!


Conhecem esta expressão? É a nova moda para anunciar uma gravidez. Já não é só a mulher que engravida – o seu parceiro também. Aqui há uns anos, esta ideia era moda nas Américas e deixou de ser quando algumas figuras expressaram publicamente o quão ridícula ela é. Agora, em decadência, Portugal importou a moda. É que viajar para Portugal não é só uma mudança de espaço; é também uma pequena cápsula do tempo – mas deixemos isso.

Dizem os defensores que a frase surge porque os homens, coitados, sentiam-se muito excluídos da gravidez e, coitados outra vez, ressentiam-se disso. Convido todos os homens desejosos de experimentar no corpo uma gravidez e um parto a manifestarem-se. É que eu não conheço nenhum. Esta é a minha primeira objeção a uma “gravidez do casal”. Mas outras subsistem.

Podia até argumentar que isto é, claramente, uma tentativa de retirar às mulheres o único privilégio (embora seja discutível classificar a gravidez como tal) que, até agora, lhes era social e culturalmente intrínseco. Entra um bocado naquela onda moderna que diz que os homens são tão ou mais devotados aos filhos do que as mulheres. Se há homens assim? Claro que há como também há mulheres cujo instinto maternal é nulo apesar de serem mães. Mas estes dois espécimes são exceções à regra. Além disso, uma coisa é ser bom pai; outra é ter estado grávido. É tão impossível como as dores menstruais masculinas (sim, também já ouvi esta…)

O Homem segue as regras biológicas de toda a Natureza relativamente às suas “crias”, nomeadamente as da classe mamíferos. Logo, não estou propriamente a emitir uma opinião; constato um facto. Porém, em defesa da gravidez do casal, até já houve quem me dissesse que “o Homem não é um animal”. Bem, um mineral ou um vegetal é que não é… Elucidem-me sobre esta nova classificação das ciências da vida que tirou a espécie humana do reino animal. É que, a confirmar-se, muitos instintos prementes justificados pela biologia – fome, sede, sono, sexo – também deixam de fazer sentido, sei lá.

Há também estudos fantásticos sobre a gravidez do casal. Parêntesis para dizer que desde que li um estudo da Universidade de Chicago que diz que as mulheres com mamas grandes são 10% mais inteligentes do que as outras desconfio muito da seriedade de alguns trabalhos académicos. Estes estudos da gravidez do casal afirmam que, durante a gravidez da sua companheira, o homem sofre um decréscimo de testosterona até ela chegar a níveis meramente residuais e, paralelamente, tem um aumento de progesterona equivalente ao de uma mulher (grávida, ainda por cima). Alguns afirmam também um aumento da prolactina! Dito isto, pouco falta para pôr um tipo a amamentar. Claro que com a ideia de que as hormonas são iguais nos homens e nas mulheres, cai aquela teoria de que as mulheres são umas histéricas – não diziam que era devido às hormonas femininas?

Convido por isso todos esses homens que dizem experimentar gravidez na mesma proporção que a mulher a falarem-me do aumento da sua barriga (mesmo sem nenhum ser lá dentro), da compressão dos órgãos digestivos, dos enjoos sem causa, dos vómitos em público, da sensação de ter pernas pesadas de elefante, das estrias e varizes a rebentarem por todo o lado, da acne que dá a impressão de estarmos a ter uma segunda adolescência, das manchas castanhas na cara, da impossibilidade de dormir por falta de posição, da obstipação constante, da sensação de alguém lhes estar a pontapear as costelas (literalmente), dos mamilos gretados e a sangrar, da fome absurda. Já para não falar das dores de parto porque uma melancia atravessou um orifício do tamanho de um limão e dos pontos em tudo o que se rasgou ou, em alternativa, o corte de para aí uns cinco tecidos abdominais que se pratica na cesariana, a incisão no útero (espera… esta é capaz de ser difícil num homem), a recuperação da cesariana com umas dores monumentais, a expulsão de “restos”. E, claro, o ter de tratar do bebé enquanto isto acontece.


Já me esquecia do pormenor importante que é o considerável aumento das mamas na gravidez. Suponho que, por si só e a confirmar-se a atual “ciência”, isto há de aumentar a inteligência masculina aí nuns 20%. 

Friday, June 19, 2015

"Uma mudança tipo... assim"

Rachel Dolezal, líder da National Association for the Advancement of Colored People nos E.U.A., fez história a semana passada. Ou, por outra, fizeram-na os pais da Sra Dolezal quando vieram a público afirmar que a filha não tinha origens negras – como dizia – e que era uma perturbada a querer assumir uma identidade diferente da sua identidade original. O caso imediatamente levou ao levantamento de vozes de apoio e outras de censura: afinal pode ou não uma mulher caucasiana identificar-se como sendo negra?

As vozes contra dizem estar ofendidas pelo facto de Dolezal ter mentido e assim ter alegadamente conseguido chegar a líder da referida associação. No entanto, James Wilson, antigo presidente, afirma que a etnia não é relevante para esta liderança, embora seja tradicional que seja um/a negro/a a defender os direitos dos negros. Outras pessoas (curiosamente, brancos na sua maioria) dizem ressentir-se pelo facto de Dolezal ter dito repetidamente que conhecia na pele os problemas dos negros, o que – sendo ela caucasiana – não pode ser verídico.

As vozes a favor dizem que Dolezal tem feito um trabalho excelente, e que só isso prova que ela é suficientemente sensível à questão. Quanto ao assumir de identidade, houve quem muito sagazmente referisse o caso sincrónico de Caitlyn Jenner, que com 65 anos passou de Bruce Jenner – homem, estrela de TV e ex- campeão olímpico – a Caitlyn -  mulher, capa da Vanity Fair.

O argumento é: se toda a nação aceitou a existência da trans-sexualidade porque não pode aceitar a trans-racialidade?

Bem, está na moda apoiar a primeira e a segunda não… Mas vamos tentar ser mais objectivos. Surpreendeu-me que a comunidade trans se tenha vindo manifestar contra a Sra Dolezal (depois do comentário feito sobre Jenner, associando ambas as mudanças). O slogan era que a trans-racialidade não existe mas a trans-sexualidade sim. Confesso que esperava maior abertura por parte daqueles que, supostamente, sofreram devido a terem nascido na identidade errada. Mais foi dito que a etnia era algo genético e, portanto irrefutável (esperem… é mais genético do que o género? Estou confusa) e que a identidade sexual era uma escolha mas a étnica não (eu julgava que o Michael Jackson já tinha provado o contrário…). Além disso, foi reclamado que Dolezal não pode fingir que sabe o que é ser negra, porque nunca viveu no corpo de uma nem experienciou a discriminação que uma negra sofre… Alguém me ajude a perceber, segundo esta brilhante linha de pensamento defensivo, como é que Jenner – pai de seis filhos e homem durante mais de 60 anos – sabe o que é sofrer dores menstruais e ter o estrogénio em alta, ou alguma vez ter sido rejeitado num emprego porque estava grávido? Convenhamos: se aceitamos um não há argumento para renegar o outro. Ou seja: se uma pessoa pode mudar de género, porque não pode mudar de etnia? Afinal, resumem-se ambos a uma questão de identidade.

O argumento de que a trans-sexualidade é reconhecida mas a trans-racialidade não o é não pode convencer ninguém. O reconhecimento de algo como realidade é meramente diacrónico e dependente de pressões sociais, como todos sabemos…


Quanto ao caso específico da Sra Dolezal, não tenho opinião porque dele pouco sei. Sei que ela tinha seis irmãos adotivos, todos negros, e que acabou por adotar um deles como filho quando os seus pais foram provados incapazes. Cheira-me que há algo de absurdamente estranho quando os pais de alguém vêm a terreno dizer que a filha é perturbada e disfuncional… Ou, como dizia o médico Scott Peck, “quando um pai me apresenta um filho como sendo doente (i.e. louco), salvaguardo sempre a probabilidade de que a doença venha de quem afirma. Afinal, nada há de mais disfuncional do que um progenitor, idealmente figura protetora, que acusa os filhos de algo.” 

Friday, June 5, 2015

A Mente Descomprometida


Se há alguma doença geracional que afete os chamados “millenials” (os nascidos entre o início dos anos 80 e agora) essa doença é o tédio. Aqueles que convivem com jovens adultos quotidianamente sentem essa realidade em peso. A mais frequente expressão emocional dos jovens deixou de ser a rebeldia, o inconformismo, a luta geracional ou – noutro lado da balança – a paixão, a coragem e o ardor próprios da juventude. Nada disso. A emoção mais usualmente expressa é o tédio. Estão cansados e não sabem bem de quê. Não se interessam muito por nada em especial, porque “nada vale a pena”, tudo é efémero e capaz de produzir desapontamento em grande escala. Interessam-se menos ainda pelos seus pares, porque, se acreditam nalguma coisa, é que não se pode confiar em ninguém. Poder-se-ia chamar a esta uma geração de cínicos, mas na realidade não o são. São apenas tão desiludidos de tudo (mesmo do que não experimentaram) que não acreditam que nada vá fazer diferença. É como se estivessem automaticamente fadados a um destino de infinda monotonia. E lá vão, passando os dias, arrastando-se de aulas para trabalhos e de discotecas para casas, com o mesmo ar aborrecido de sempre – uma espécie de supremo desprezo por tudo e, ao mesmo tempo, de auto comiseração. Queriam fazer e ser diferente, mas para quê? Não há resultado que valha a energia. A apatia é o estado geral de uma geração que, paradoxalmente, tem tanto para dar ao mundo.

Poder-se-á argumentar que existiram outros períodos assim na História recente. Imediatamente nos vem à ideia o “spleen” romântico, por exemplo. Mas os Românticos tinham crenças e, se exageravam no “spleen” a verdade é que também carregavam noutros sentimentos, nomeadamente em conceções amorosas – ainda que mitificadas. A questão dos “millenials” é que não sentem lá muito por nada em particular.

George Steiner disse que o tédio é um dos grandes perigos de qualquer civilização e o despoletar de muitas guerras. A passividade física e a lassidão intelectual seriam o resultado de uma facilidade do mundo-toca-num-botão aliada à desesperança de sair das misérias atuais (sejam estas de que natureza forem).

A primeira geração de “millenials” que teve a sua adolescência no fim dos anos 90 era um pouco diferente – basta ouvir a música da época e recordar o conceito do “grunge” para observar que sim, havia um sentimento de “mundo horrível” mas a par de uma grande revolta (nomeadamente uma revolta de cariz familiar contra o deixa-andar dos seus pais neo-hippies). Dessa primeira geração – na qual me incluo – saiu o núcleo Eddie Vedder e o núcleo Kurt Cobain, isto é, uma onda de evolução que racionalmente acabou numa revolta mais mística e outra onda que não consegue aguentar com o peso do mundo e desiste. Foi esta última que parece ter sobrevivido para contar a história destes “millenials” atuais, tão descomprometidos com o mundo como com o seu próprio sentir. Já não se pode falar apenas do erro de Descartes, mas também e infelizmente no de Damásio, porque nem as emoções são capazes de ter força motriz.

Em 2013, Goetz e a sua equipa de investigadores chegaram à conclusão que havia um novo tipo de “boredom” na juventude atual, um nível de aborrecimento intrínseco, apático de nascença. Um nível de tédio tão forte que ultrapassava o “ennui”, não acordava com qualquer tipo de estímulo e só era comparável à palavra desamparo. 36% dos jovens inquiridos não sofria de depressão; eram deprimidos, desta forma incapaz de remissão.

Para nós, a “effed up generation” (como chamou Vedder à senda sobrevivente dos anos 90), a apatia é difícil de digerir. E é por isso que é tão triste ouvir jovens de 19 anos falar da vida como se ela fosse um intervalo bocejante entre nascer e morrer em efetivo. Sou suspeita, mas preferia a revolta do grito contra o mundo do que este sussurrar agastado. Uma geração deve querer mudar o mundo. Preocupa-me um nihilismo que nem tem força anímica para chorar.



Friday, May 22, 2015

Beijinhos, amiguinhos e docinhos

O desacordo semântico é tantas vezes aplaudido e incentivado pela nossa sociedade. Os erros sintáticos e semânticos perturbam-me bastante mais do que os ortográficos, embora a moda corrente seja investir na ortografia. A meu ver, quando há erros na relação e ordenação das palavras no discurso ou quando há incoerências de sentido, a comunicação fica bastante mais comprometida do que ficaria pela existência de um erro de escrita.

A este respeito, tenho um “pet peeve”, algo que em português seria traduzido como “odiozinho de estimação”. Perturba-me o uso de adjetivos e de advérbios que são absolutos pleonasmos do nome ou verbo que caracterizam. O mesmo se aplica aos que caracterizam por antagonia. O problema é que o seu uso – extremamente vulgarizado, aliás – acaba por retirar significado real ao nome. Alguns exemplos concretos explicam melhor.

Primeiro, “beijinhos grandes”. Por regra, qualquer diminutivo aponta para uma forma menor do nome. Logo, um beijinho será sempre menor do que um beijo. Se os queremos caracterizar como grandes, a primeira coisa a fazer seria livrarmo-nos do “inho”. Irrita-me terrivelmente quando se despedem de mim com esta fórmula. Querem ser grandes? Mandem-me beijos. O “beijinho grande” não existe por impossibilidade empírica. A resposta aos meus argumentos costuma ser “ah, mas sabes que beijinho é a despedida comum enquanto beijo já soa mais íntimo”. Posso concordar. O que não concordo é que quem me quer dar um beijinho queira paradoxalmente transformá-lo em grande. A nível imagético, um beijinho pode ser um leve roçar de lábios mas aumentado (errada e ridiculamente) para grande já vem lambuzadíssimo de saliva e torna-se demorado. Beijinho grande é uma contradição gramaticalmente impossível.

Segundo, “amigo pessoal”. Também está na moda distinguir entre os amigos pessoais e os outros, os que são só amigos sem nada de pessoal. Ora, isto também não encontra lugar na realidade. Um amigo (“amicus” em latim) possui em comum com o verbo amar (“amare”) uma raiz gramatical. Logo, um amigo é aquele que ama. Se ama, é seguramente algo de pessoal. É incompreensível a distinção entre um amigo e um amigo pessoal. É que os amigos são todos pessoais; caso contrário, não podem ser amigos. O que costumam argumentar é “pois, mas nós dizemos isso para separar os amigos daqueles que apenas conhecemos de passagem”. Mas pessoas que conhecemos e amamos menos não são amigos… são conhecidos. O conhecimento produz (ou não) amizade. É por isso que em hebraico os verbos “amar” e “conhecer” (“yodea”) são sinónimos. E como bem sabemos não há tempo para conhecer toda a gente.

Terceiro, “brutalmente agredido”. Não há agressão que não seja brutal. Se alguém foi agredido, isto é atacado, magoado, etc, impossível é pensar que o terá sido à força de carícias ou de meiguice. Só se concebe qualquer agressão se esta for feita com recurso à violência. Caso contrário, não é agressão. Irritam-me profundamente as notícias que dizem “X foi brutalmente violada por Y”. Mas há lá forma de ter sido suavemente violada? Enfim, se calhar o tipo deu-lhe um abracinho enquanto a penetrava à força. Ou, melhor ainda, agiu contra a liberdade de X, magoando-a, mas disse “é tudo para teu bem, amor”. Tenham paciência mas não pode ser. Qualquer situação de abuso é brutal. Ao dizerem “brutalmente agredido” estão a implicar que há casos de agressão que não são brutais. São mais fofinhos. E esses, eventualmente, podem perdoar-se porque não chegam a ser duros. Apetece dizer a estas pessoas que advogam a “agressão amorosa” que se sujeitem a ela.


É urgente reformular o uso dos adjetivos e dos advérbios. Isto anda a empobrecer a língua e a trazer conotações estranhas e não verídicas. Venham os beijos, os amigos e as agressões na sua pureza linguística. Sem contradições. 

Friday, May 8, 2015

A Teoria dos Anéis

É natural não sabermos o que dizer a alguém que está a passar por uma situação absurdamente difícil. Primeiro, porque, na maior parte das vezes, não fazemos ideia do que seja passar por isso e por outro lado porque é fácil esquecermo-nos do que é verdadeiramente importante: a outra pessoa e a sua experiência, não nós e a nossa.

A pensar nisso, Emily McDowell lançou recentemente uma série de postais que ela cognominou de “postais empáticos”. São para oferecer a alguém que está a atravessar problemas sérios, como doenças terminais, por exemplo. A ideia é que a generalidade dos postais convencionais que se veem por aí não são apenas totalmente desadequados; podem chegar a ser ofensivos. Por exemplo, dar a quem tem cancro um cartão que diz “Get well soon” ou “I wish I could be as brave as you are”.

Pesquisando sobre este tema, em breve se chega à conclusão que as pessoas que passam por situações complexas sentem que a maior parte do que lhes dizem é absolutamente deslocado ou até torna as coisas piores. Alguns dos seus amigos têm consciência disso mesmo e é (também) por isso que quando se está a viver um mau momento há tanta gente que se afasta – nem é por mal, é porque não sabem qual seja a melhor maneira de reagir. No entanto, sentir-se só também não é o que alguém em dificuldades precisa. Então o que fazer?

Um artigo de Silk e Goldman no LA Times “How not to say the wrong thing” tem a resposta para as crises médicas, legais ou existenciais. A regra de ouro é o conforto do outro, esse que está no centro do problema. A título de exemplo: X tem cancro, está no hospital e não quer receber visitas. Mas a amiga que quer muito visitá-la diz “This is not only about you!” Ah não?! Espera aí… X está doente mas isso diz respeito a quem quer satisfazer os seus desejos de compaixão? Ou não será que diz respeito a X, que sente e lida com o assunto e tem direito a fazê-lo da melhor maneira que entender?

Silk faz uso daquilo a que chama a Teoria dos Anéis. Segundo esta, no centro de um primeiro anel está a pessoa que sofre o problema na pele - um cancro, um aborto, uma violação, uma morte. Outro anel mais largo à roda do primeiro diz respeito às pessoas que, embora não sofrendo diretamente o problema, são afetadas por ele dada a sua relação de intimidade com quem sofre. Outro anel ainda mais largo diz respeito aos familiares e amigos mais distantes, e assim por diante. Então, quem está no centro do anel pode queixar-se de tudo a todos, dizer o que lhe passar pela cabeça, porque o sofrimento dela é isso mesmo: é dela. As pessoas que estão no anel seguinte podem ter essa atitude com as que estão nos anéis mais largos, mas não com ela. E assim sucessivamente: há que “explodir” com quem está nos anéis mais largos que o nosso e ajudar quem está nos anéis mais restritos. Portanto, a pessoa no centro do anel pode gritar “Mas porquê eu?”, culpar o mundo e insurgir-se contra Deus. Os restantes também podem falar de como se sentem mal eles próprios… mas não com quem se sente ainda pior do que eles. Não têm esse direito.

Da mesma forma, conselhos e “eu sei o que sentes” são absolutamente dispensáveis. As pessoas a passar por um processo de trauma não ficam melhores com conselhos, mas sim com apoio.  Sim, “this is not about you people; it’s about the suffering one.”


Sumarizando, encontrei entre os postais de McDowell um que eu gostaria de dizer aos amigos que passam por momentos maus – e que, paralelamente, também gostaria que me dissessem. É só isto: “Deixa-me ser o primeiro a dar um soco na próxima pessoa que te disser que tudo neste mundo acontece por uma razão.” 

Friday, April 24, 2015

Je suis un migrant africain


Ainda não ouvi ninguém a dizer “Je suis Lampedusa”. O que moveu cordões e cordões de pessoas a andarem de cartazes “Je suis Charlie” não parece surtir o mesmo efeito quando se trata de um número mais elevado de mortes em condições tão sub-humanas. Se calhar é porque a revista Charlie Hebdo era, a seu modo, famosa e também porque há sempre um bom motivo para alimentar o ódio ao que dizem ser a grande ameaça de paz mundial. 

Pessoalmente, estou convencida que a fome e a miséria são ameaças tão grandes ou maiores do que o terrorismo. E se é pela paz que tememos, imaginemos o que podem fazer grupos de pessoas que querem sobreviver a todo o custo – o instinto mais humano que há. Quando as pessoas não têm nada, não há nada que possam perder. Há uma margem perigosamente grande de vazio em qualquer desespero. 

Em 2013, todos recordamos dois naufrágios de navios com emigrantes que ocorreram ao largo de Lampedusa. Já na época o Primeiro Ministro italiano admitiu publicamente que havia naufrágios consideráveis desde 2009. Em 2013, os dois naufrágios aconteceram ambos em Outubro e a Europa não teve remédio senão prestar atenção, já que tanto Itália como Malta destravaram a língua para falar do assunto. 

Na época, os emigrantes vinham da Líbia, do Sudão, da Somália, da Palestina, da Síria e mesmo da Tunísia. As autoridades italianas e maltesas prenderam algumas pessoas por tráfico humano. De facto, todos os emigrantes tinham dado tudo o que tinham para vir ilegalmente para a Europa e os que não tinham podido pagar pagaram literalmente com o corpo (as violações de mulheres e os raptos de crianças foram uma das “moedas de troca”). Na época, a Europa disponibilizou cerca de 30 mil euros para apoio aos refugiados que procuravam abrigo em Itália. 

O recente naufrágio que envolveu mais de 2000 emigrantes voltou a acender a discussão. Mas não vi nenhuma marcha de líderes mundiais – semelhante à de Charlie, onde apregoavam o direito à liberdade de expressão. Vá lá, compreendo que seja uma coisa “somenos” para os senhores de gravata: afinal, falamos apenas de alguns africanos que provém de países miseráveis; ninguém chegará a capa de jornal pela sua defesa. Só os incomoda um bocadinho que isto seja tudo gente a querer entrar na Europa. 

O Primeiro Ministro italiano, Matteo Renzi, tem apelado a esforços conjuntos da Europa e da ONU para dar cabo desta “escravatura moderna”. Renzi opina que nunca se viu um surto de foragidos e / ou de tráfico assim e que toda a Europa se devia mobilizar para responder aos pedidos de asilo bem como a ONU devia intervir nos países de origem. Joseph Muscat, Primeiro Ministro de Malta, junta-se em coro e pede que o mundo olhe para África com olhos de ver. A União Africana solicita uma legalização da emigração ao passo que a Interpol promete ajudar a acabar com a situação. O programa Triton – introduzido recentemente – serve para patrulhar o Mediterrâneo e ajudar os refugiados, mas já provou ser uma solução absolutamente insuficiente. 

A Europa – preocupada com as situações precárias da Grécia, de Portugal, de Espanha e até da própria Itália – não tem muito vagar para se preocupar com a pobreza de algumas nações africanas. Mas parece bem claro que terá de o fazer. Este é um mundo declaradamente em mudança. A mesma Europa que franze o nariz à situação financeira da Grécia - país que não deixa de ser o berço cultural da Europa - é a Europa que tem de enfrentar a realidade que o Mediterrâneo deixou de ser apenas o mar por excelência dos barcos de cruzeiro e do turismo; é também um cemitério.

Friday, April 10, 2015

As Pessoas Preocupadas


Preocupam-me as pessoas preocupadas. E elas são muitas. Cresceram com a sociedade de (des)informação. Têm muita teoria e nenhuma prática. São especialistas sem chegarem a usufruir plenamente do seu estatuto de seres pensantes. Não agem mas discutem – embora os seus argumentos careçam de racionalidade – e, sobretudo, têm a testa franzida, o nariz metediço, uma língua que não descansa. Estão, enfim, seriamente preocupadas com tudo sem nada fazer para o resolver.  

Há muitos géneros de pessoas preocupadas. São aquelas que se batem arduamente pelos direitos dos animais, mas são incapazes de recolher um cão da rua; são as que têm uma proclamada pena dos miseráveis refugiados que aparecem na televisão, mas têm um asco muito particular pelos imigrantes que vivem na sua zona; são as que acreditam na igualdade de direitos, mas só desde que possam continuar a dominar; são as que têm afilhados num país do Terceiro Mundo, para onde enviam uma contribuição anual, mas ficariam incomodadas de lhes tocar; as que teorizam, plenas de certezas, sobre os interesses das crianças e o que lhes faz bem, mas cujos filhos têm olhos infelizes e medo de abrir a boca ao pé delas; as que estão aflitas com a venda e o tráfico humano no Gana mas fecham os olhos ao caso do vizinho que, claramente, abusa dos filhos; são aquelas que fazem grandes posts no Facebook e tweetam como loucas sobre as injustiças deste mundo, achando que isso é o seu contributo para as minorar; as que dizem acreditar na força e beleza da arte, mas vão a concertos para serem fotografadas nas revistas sociais e bocejam com a música; as que defendem a educação mas não contribuem activamente para que ela exista; as que advogam o bom aspecto e se esquecem da essência; as que são sempre presentes em todas as missas e celebrações religiosas mas são incapazes de um rasgo de atitude benevolente ou justa; as que falam sobre a saúde para todos mas se enojam com as feridas dos que vêem na sala de espera do Hospital; as que falam no brilho da juventude mas não conseguem lidar com o facto de já não serem jovens ou as que falam no muito que há a aprender com a maturidade mas fecharam a mãe num lar onde não voltaram a pôr os pés; as que dão conselhos sobre exercício e dieta, mas rebentam-lhes as costuras dos vestidos e os botões das camisas; as que defendem a paz e o amor, mas nem em sua casa os promovem; as que enchem a boca com o direito à alegria mas incomoda-as a alegria dos outros; as que tomam posições sem saber dos conteúdos; as que falam de generosidade e têm as mãos fechadas; as que dão conferências sobre o papel da mulher e secretamente desconsideram todas as mulheres só por o serem; as que rotulam os filhos de autistas porque eles são tímidos ou de hiperactivos porque são, simplesmente, crianças; as que falam de igualdade de direitos dos homens, sendo reverentes ao poder e tiranas para com os restantes; as que têm um título e muitas entradas enciclopédicas mas descuram a ideologia e a profundidade das obras; as que acreditam em tudo o que lhes dizem e não páram para pensar; as que riem a todos e a todos desdenham; as que enchem sacos para as associações e orfanatos mas não dão um ovo ao vizinho quando lho falta; aquelas a quem Sophia de Mello Breyner chamava “as pessoas sensíveis, que não gostam de matar galinhas mas gostam de comer galinhas”; ... 

Preocupam-me. São as pessoas preocupadas que me causam uma testa franzida, uma reserva em as escutar, um espanto pela sua falta de sensibilidade e de coragem. As pessoas preocupadas são muito preocupantes.

Friday, March 27, 2015

A Luta Pela Vida de Ashya

Ashya King é um menino nascido em Espanha com nacionalidade britânica, agora com cinco anos, a quem foi diagnosticado um tumor cerebral. Em Agosto passado, Ashya foi submetido a uma operação no Southampton General Hospital. Infelizmente, o tipo de cancro do qual Ashya sofria era um meduloblastoma agressivo, e embora a cirurgia tivesse corrido da melhor forma, os riscos de “recaída” foram sempre admitidos como bastante grandes. De acordo com as indicações do Hospital, a criança devia iniciar um tratamento de quimioterapia quatro semanas após a cirurgia.

Os pais de Ashya, Brett e Naghemeh King, fizeram uma coisa pouco popular em qualquer parte do mundo: decidiram pensar pela sua própria cabeça e tentar saber quais eram as hipóteses do filho mediante os tratamentos possíveis. Foi assim que descobriram que os tratamentos de quimioterapia em crianças pequenas com esta patologia não tinham evidências de sucesso desde 2013 – isto para além de serem altamente debilitantes para uma criança fraca e jovem. Mais importante: as hipóteses de sobrevivência de Ashya não seriam mais otimistas do que 5%.

Na sequência desta pesquisa, os King também repidamente descobriram que havia outro tratamento possível: a terapia de raios de protões. Esta terapia pertence às radioterapias possíveis e é um dos mais recentes tratamentos para o cancro. Como tal, apenas se faz nalguns locais do mundo e, ainda assim, dados os seus elevadíssimos custos, é necessário riqueza pessoal para custear o tratamento… Ou, em alternativa, ser referido por um Hospital para o fazer e, consequentemente, ser re-encaminhado para os centros de tratamento existentes. O Southampton General Hospital recusou a possibilidade que os pais de Ashya colocaram, e explicou que desde 2008 apenas 400 pacientes tinham sido elegíveis para esse tipo de terapia.  Os King decidiram, então, vender o que tinham e embarcar eles próprios no que consideraram ser mais correto.

Levaram a criança para Málaga, primeiro. Ao fazê-lo, foram contra ordens médicas inglesas e contra o Governo Britânico.  Como tal, o Tribunal emitiu um mandato de captura e os King foram presos – é provável que ninguém tenha pensado que um menino de cinco anos, com meduloblastoma ficou sem a sua referência e companhia no que podiam ter sido os seus últimos tempos de vida. Mas adiante: os King acabaram por ser libertados porque o Crown Prosecution Service emitiu um comunicado dizendo que não havia “provas suficientes para condenação por uma ofensa criminal.” Os King acharam necessário dizer que não estavam contra a Inglaterra porque a opinião pública atirou com a ideia de que eram ingratos aos seu país e que eram Testemunhas de Jeová. Se eram ou não, não sei. Mas não me parece o mais importante neste caso.

Aí, os King levaram Ashya para Praga na Rep. Checa, onde lhe foi feito o tratamento de raios de protões, uma terapia também muito forte, como são todas as destas patologias. Inicialmente, Ashya continuava sem movimentos e sem fala. Três meses depois, começou a andar e a ter resposta verbal. Esta semana, foi comunicado que Ashya está livre do meduloblastoma. Aqui há uma salvaguarda, visto que todos sabemos que este tipo de doença pode voltar a re-aparecer… Mas, no momento, Ashya não a tem e as suas chances de sobrevivência aumentaram para 80%. A opinião pública – tipicamente sempre do lado do vencedor – virou ao contrário: agora os King são uns heróis que lutaram contra o sistema pela cura do filho pequeno.

Não sou médica, pelo que me inibo de emitir opinião clínica. No entanto, como ser humano e mãe interrogo-me: não faria eu, também, tudo o que achasse mais provável ser benéfico para a criança, independentemente das ordens de um país?

A opinião pública é irrelevante, mas fica-me a questão: até onde deve o Estado interferir neste tipo de decisões? 

Friday, March 13, 2015

Só quando é preciso...




Das melhores campanhas contra a violência que vi foram aquelas em que entram as personagens encantadoras dos filmes Disney.
O autor é um artista que usa o pseudónimo Saint Hoax e cujos trabalhos versam destruir o que chama de “enganos maliciosos que se repetem ao longo da História humana”, uma revolta contra aquilo de que ninguém quer falar por ser demasiado chocante.

A primeira campanha versava o tema da violação de crianças pelos seus familiares, nomeadamente progenitores. Saint Hoax, que colheu inspiração para este trabalho ao descobrir que uma amiga sua tinha sido violada pelo pai aos 7 anos de idade, escolheu chamar à campanha “Princest Diaries”, um jogo de palavras entre Princess e Incest. O objectivo da campanha era encorajar as pessoas a não se calarem perante esta situação, salientando que mesmo as histórias de encantar que nos vendem desde o berço podem esconder verdades assustadoras. A campanha mostra personagens Disney – Ariel, a Bela Adormecida, Jasmine, Pinóquio, Hércules – a serem beijados na boca pelos pais, estando eles aterrorizados com a situação. Nos posters, pode ler-se “46% dos menores violados são vítimas de familiares. Nunca é tarde demais para reportar um ataque.”

Esta campanha foi absolutamente criticada por muitos progenitores, sobretudo mamãs, que se indignaram pela fantasia ideal da sua infância estar a ser utilizada como expressão de uma realidade tão escondida quanto cruel. Fizeram-se campanhas contra o autor, argumentando “nunca mais verei a Disney da mesma forma”; “ele destrói as nossas mais puras ilusões” e “como vou explicar à minha filha que a Bela Adormecida está a ser abusada pelo pai? Isto é nojento e indecoroso.” Compreendo que as pessoas não queiram ver destruídas as suas fantasias – tanto no que toca ao imaginário Disney como no que toca ao imaginário da família enquanto instituição ideal de amor puro. Mas estas pessoas não pararam para pensar no seguinte: se lhes custa perder estas ilusões infantis (e sublinhe-se ilusão) quanto custará a uma criança a realidade (realidade!) de ser abusada por quem a devia proteger? Um milhão de vezes mais. E quanto custará o silêncio de quem sofre só para não perturbar o ideal podre de quem não quer encarar uma crueldade de frente? Uma mentira cor de rosa ajuda a suportar uma realidade atroz? E, se sim, a quem ajuda a viver?

A segunda campanha de Saint Hoax chama-se Happy Never After. Mais um jogo de palavras evidente, desta vez para retratar a violência doméstica. Várias princesinhas Disney aparecem com nódoas negras e ensanguentadas sobre a mensagem “Quando é que deixaram de te tratar como uma Pirncesa? Nunca é tarde demais para pôr um fim a isso.” Sait Hoax explica querer demonstrar que nem mesmo as figurinhas que parecem viver um conto de fadas estão livres de ser maltratadas. O artista levou esta mensagem mais longe no Dia Internacional da Mulher, mostrando personagens Disney (como a Cinderela no fim da sua história, já liberta de farrapos e vestida como um sonho) tendo por companheira… a si própria, em vez do Princípe. O poster diz “Porquê esperar para ser salva quando te podes salvar a ti própria?”

A campanha do abuso relativamente a adultos foi bem mais tolerada e até encorajada. De facto, a sociedade admite já este problema e começa a sentir-se relativamente à vontade para o expôr. Mas o abuso de crianças continuará ser uma verdade bem mais escondida e contra a qual muitos se insurgem por isso lhes destruir um conto de fadas que é o seu arquétipo interno. Será assim por muito tempo porque as crianças não têm voz activa na nossa sociedade nem são consideradas em seu pleno direito, mas sim como seres humanos de segunda, subordinadas a familiares “proprietários”.

Toda esta mentalidade me recorda uma menina açoriana que andava sempre visivelmente maltratada e a quem perguntaram certa vez “Diz francamente… Batem-te?” Ao que ela, muito resignada e obediente, respondeu “Não. Em minha casa são meus amigos. Só me batem quando é preciso.”


Friday, February 27, 2015

Mendigos

A Noruega vai aprovar uma lei que proíbe a mendicidade e que, para além disso, pune – com pena até um ano de cadeia – quem ajudar um sem-abrigo. A lei de proibição da mendicidade já tinha estado em voga no país, sendo abolida em 2005. Volta a ser retomada pelo governo que foi eleito em 2013. Os apoiantes desta lei advogam que o grande objectivo é “criminalizar a mendicidade organizada”, seja isso o que for. Os próprios admitem que não é fácil descortinar o que é um mendigo e o que é um mendigo que pretence a uma, chamemos-lhe, organização de mendicidade. De qualquer forma, quem for apanhado a mendigar ou paga multa ou segue para a cadeia.

De um ponto de vista puramente pragmático e tendo em conta que na cadeia há um tecto, comida e demais amenidades básicas, talvez o mendigo se sinta melhor lá do que a morrer de frio (na Noruega, não será difícil morrer de hipotermia na rua).  Mas duvido que esta ideia tenha sequer passado pela cabeça dos legisladores, ou teriam optado por casas de abrigo em vez de prisão, dado que a última implica uma privação de liberdade. Além disso, se o problema do Governo é o “crime organizado” não parece muito inteligente que coloquem estas pessoas na cadeia, onde hão-de conhecer verdadeiros criminosos.

De um ponto de vista humanitário e até ético, é desastroso que uma lei destas seja aplicada. O governo norueguês diz que os mendigos andam em grupos e que a esmagadora maioria são imigrantes no país. De facto, falam apenas nestes, pelo que fiquei em dúvida se um cidadão norueguês nunca mendiga e, caso assim seja, temos de perguntar à Noruega sobre as suas fantásticas políticas sociais…. que não vão querer revelar porque somos estrangeiros e, logo, gente não confiável, a julgar pela opinião demonstrada.

A lei é tão mais castradora e insensível que diz que as associações e centros que tenham por missão ajudar os sem abrigo também terão de rever o que querem fazer da vida, já que as punições legais também se lhes aplicam – excepto (e vejam bem a hipocrisia) se o donativo ao sem-abrigo for feito numa época festiva.

Ou seja, se eu der uns euros ou um prato de sopa a um sem abrigo na Noruega, sou criminosa; no entanto, se o fizer no Natal, passo a ser uma boa alma. É por estas razões  que o Natal acaba por ser a época mais anti-cristã e mais egoísta que existe – perdoem-me os devotos da quadra.

Estas ideias não são unicamente noruguesas nem peregrinas em termos governamentais. O governo francês já tinha expresso umas opiniões singulares quanto aos sem-abrigo, nomeadamente o conselho que lhes deu a Secretária de Estado da Saúde que, ao verificar que as temperaturas estariam especialmente baixas em França, maternalmente aconselhou os ditos a “ficarem em casa”   – alguém, por favor, lhe explique a semântica de “sem-abrigo”.

Paralelamente a esta mania, apareceu uma campanha americana na internet que tem como objectivo fazer-nos olhar os mendigos com outros olhos, para além de alertar as pessoas para a facilidade com que se pode vir a ser um sem-abrigo. Nessa campanha, vários sem-abrigo foram entrevistados, e foi-lhes pedido que revelassem a maior meta que já tinham alcançado na vida. Há respostas surpreendentes de pessoas que têm Doutoramentos e já trabalharam em organizações como a NASA, pessoas que já foram artistas ou desportistas de mérito ou pessoas que fugiram com sucesso de situações de tortura. Logo, um mendigo não só podes vir a ser tu ou eu como pode bem ter sido alguém muito maior do que nós.


Porém, no caso norueguês segue-se a política da personagem Susaninha da banda desenhada Mafalda de Quino que dizia que ver mendigos lhe cortava o coração… Quando Mafaldinha concorda e começa a debitar políticas sociais, Susaninha não tem dúvidas: “Para quê tanta coisa? Bastava escondê-los da minha vista!”